Rei africano se senta em trono levado pelos alemães durante visita a museu
Momento simbolizou a reivindicação do rei de Bamum, Nabil Njoya, ao trono
Nesta semana, o rei africano e líder do povo Bamum, reino localizado no oeste camaronês, Nabil Mbombo Njoya se sentou no trono de seu povo durante visita ao Museu Etnológico de Berlim.
A atitude foi motivo de celebração para os camaroneses presentes no local, além de representar a vontade dos povos africanos de reivindicarem novamente os tesouros e monumentos levados pelos europeus durante o período de colonização.
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A cena ocorreu no último domingo (1), quando o rei Njoya, o embaixador de Camarões na Alemanha e sua comitiva foram convidados a visitar o Museu de Berlim, que guarda diversos artefatos de povos africanos, asiáticos e latino-americanos.
Para a visita do rei, a direção do museu separou um trono contemporâneo do povo Bamum para que Njoya se sentasse, ao lado do assento original que foi levado pelos alemães em 1908. Mas ao entrar na sala, o monarca ignorou a peça preparada pelo museu e se sentou no trono histórico.
O ato é uma tentativa do atual rei de reaver o trono, que foi originalmente do seu bisavô, o também líder Ibrahim Njoya. Em entrevista à National Geographic, o rei Nabil destacou o momento que representa tanto para ele e seu povo.
Eu vejo a mim e aquele trono. Eu vejo muitas pessoas de Bamum ao meu redor. E estou vendo, ao meu lado, o diretor do museu de Berlim apertando minha mão, e nós dois dizendo: ‘Conseguimos! Fizemos isso não por nós, mas por nossos filhos.
Nabil Njoya, rei de Bamum
A embaixada de Camarões, em nota, também comemorou a atitude do monarca. “O rei Nabil Njoya se sentou no trono para a satisfação de toda a comunidade bamum e dos camaroneses”.
A história do povo bamum
Como o filósofo grego Heródoto (485 a.C – 425 a.C) disse, temos que “pensar o passado para compreender o presente e idealizar o futuro”. Por isso, o ato protagonizado pelo líder Bamum ganha ainda mais importância quando compreendemos a história do seu povo.
Em entrevista à CNN, o professor e mestre em História Social Flávio Muniz, explicou a origem do povo Bamum.
Segundo o professor, a nação étnica dos Bamuns surgiu na região oeste de Camarões, em meados do século 14. O povo foi se desenvolvendo principalmente em áreas próximas aos rios e, por isso, uma de suas principais caraterísticas é o domínio da agricultura.
A região que se fixaram também foi primordial para a construção da cultura Bamum, voltada principalmente à terra. O professor explica que essa caraterística pode ser vista inclusive pelo trono original. “É um assento de madeira, feito com imagens que simbolizam a fertilidade e a liderança”, afirma.
Flávio ainda ressalta a estrutura política do Reino Bamum, que desde os primórdios se destacou por conter uma organização governamental complexa em relação aos outros reinos da época.
A política da nação era formada principalmente pela figura do rei, que era herdado da mesma família de governantes – uma dinastia. Apesar do poder centrado no reinado, os bamums também contavam com um grupo de conselheiros que também influenciaram a política local. Na constituição da nação também se destacavam movimentos de diplomacia e comércio.
Além da forte agricultura, os bamums se tornaram especialistas na mineração de ferro e produção de armas feitas com o elemento. O governo utilizava os equipamentos avançados para fortalecer o exército nas disputas territoriais com reinos próximos.
O auge do Reino de Bamum
O bisavô do atual rei Nabil Njoya foi um dos principais personagens da história do povo. O Rei Ibrahim Njoya governou de 1887 até sua morte em exílio após a colonização francesa, em 1933.
Diferente dos predecessores, o Rei Ibrahim era conhecido por ser pacífico e carismático, sendo profundamente amado por seu povo. Considerado um grande intelectual, ele até mesmo criou uma religião inspirada em crenças locais, o islamismo e cristianismo – ele também marcou os princípios fundadores da religião em um livro chamado Bíblia do Rei.
Para fortalecer a cultura Bamum, o Rei Ibrahim também inventou um sistema de escrita derivada da língua shü-mom. O alfabeto consistia em 80 caracteres.
Segundo Flávio, ele fundou uma escola em 1898 para alfabetizar o povo. “Inicialmente, os príncipes e nobres começaram a ser ensinados e, logo depois, ele começou a fornecer aulas formais para estudantes de ambos os sexos”.
O professor ressalta que Ibrahim fazia questão de ensinar o povo e, sobretudo, as mulheres. Na época, a educação em geral era restrita apenas aos ricos e homens.
O rei ainda criou um programa de alfabetização e construiu mais de 20 escolas por todo o reino – que atendia cerca de 300 estudantes.
As escolas também promoviam um ensino profissionalizante, que ensinavam medicina na própria língua do povo.
Ibrahim Njoya ainda era um notável escritor, redigindo mais de 15 livros que incluiam romances, contos e guias medicinais.
O professor Flávio Muniz destaca que Ibrahim acreditava que os bamums “poderiam ser fortes, independentes e livres se fossem educados”.
Ibrahim entra em concordância com Nelson Mandela, que disse que a educação é a ferramenta mais poderosa para a construção de uma sociedade livre para um mundo melhor.
Flávio Muniz, professor e mestre em História Social
A relação entre o Reino de Bamum e a Alemanha
Dois anos antes de Ibrahim se tornar rei, colonos alemães chegaram ao território Bamum no final do século 19, após a Conferência de Berlim, em 1885, que separou a África em diversos territórios. Os europeus traçaram linhas coloniais buscando lucro com comércio, sem respeitar quaisquer limites territoriais de reinos, culturas e etnias.
Buscando não sofrer com as opressões da Europa, o já líder bamum Njoya decidiu não enfrentar os invasores europeus.
Prezando pela diplomacia com os alemães, o rei decidiu promover uma relação de amizade e até aliança. Ibrahim se destacou por trocar presentes com o governo alemão como demonstração de boa vontade e organização colaborativa.
Inclusive, em 1908, o Rei Ibrahim foi aconselhado a dar um presente que demonstrasse a importância da aliança com a Alemanha. Ele ordenou, em comemoração ao aniversário de 50 anos do kaiser alemão William II, a construção de uma réplica do trono Bamum para presentear a nação europeia.
Contudo, a réplica não ficou pronta a tempo. Por isso, os alemães forçaram Ibrahim, que temendo sofrer represália da Alemanha, entregou o trono original para William II – que acabou indo parar no Museu Etnológico de Berlim.
O declínio do povo bamum
Enquanto a relação do Reino de Bamum era relativamente amigável com a Alemanha, tudo mudou após o fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918.
O país germânico havia sido derrotado por uma aliança que incluía a França e o Império Britânico. Forçados a deixar a região ocidental africana, a França assumiu o território camaronês e, consequentemente, Bamum.
Os franceses puseram fim ao reinado de Ibrahim Njoya e o enviaram para o exílio em Yaondé, capital de Camarões, onde morreu em 1933.
O atual Reino de Bamum
O território de Bamum hoje faz parte de Camarões e conta com certa relevância política nacional.
“O estado [de Camarões] coexiste com o Reino de Bamum, que está sujeito às constituições do país. Hoje, logicamente, conta com uma estrutura bem reduzida”, explica Flávio.
Apesar da redução de poder, o Rei Nabil Njoya ainda conta com grande prestígio e influência entre o povo de Bamum.
Nabil ainda mantém o status de rei e seus súditos o respeitam muito. Ele representa muito mais do que uma figura política, mas também uma figura espiritual, ligada à sua ancestralidade, manutenção da cultura e a força do povo.
Flávio Muniz, professor e mestre em História Social
A importância de reivindicar o trono
Atualmente existe um processo na Alemanha e outros países europeus que reconhecem os danos causados na África.
“A África foi saqueada pelos europeus, eles são desencadeadores de um processo de ruptura cruel no continente africano, que foi primeiro a escravidão e depois a colonização. Eles são culpados disso”, ressalta o mestre em História Social.
Em dezembro de 2022, o governo alemão devolveu mais de 20 objetos retirados da Nigéria durante a colonização ao país africano. Mas para o professor, a devolução do trono à Bamum pode demorar mais tempo.
Apesar de não haver expectativa de retorno do trono ao reino, Flávio destaca a importância do ato de Nabil Njoya ao sentar-se em seu trono de direito.
Essa visita do rei de Bamum à Alemanha não é somente simbólica. Ela tem um significado histórico muito importante, é um reencontro.
Flávio Muniz, professor e mestre em História Social