Racismo estrutural nas línguas: o preconceito em expressões de uso corrente
Em diferentes idiomas, palavras cotidianas e de uso frequente para algumas pessoas são carregadas de metáforas e origens racistas
Em diversas línguas, expressões e palavras cotidianas e de uso frequente para algumas pessoas, em determinadas situações, são carregadas de metáforas e origens racistas.
Em português, “inveja branca” é inveja boa. “Denegrir” é tornar algo negro e diminuir o valor. “Dia de branco” é dia bom de trabalho. “Mulata” vem de mula. “Criado-mudo” é o nome dado ao móvel como referência à tarefa de negros escravizados que, em silêncio absoluto, seguravam objetos aos senhores brancos.
Em inglês, “blackmail” é sinônimo de chantagem e extorsão e “a black leg” é um trabalhador desprezado pelos outros e que não ajuda.
Em alemão, “schwarz” quer dizer negro. “Schwarzarbeit” é trabalho clandestino. “Schwarzfahren” significa viajar sem bilhete, ou seja, entrar no transporte sem pagar, de forma ilegal.
Em francês, “noir” significa negro. A expressão “faire du marché noir” quer dizer mercado de contrabando de mercadorias ilegais. “Broyer du noir” é a expressão de um pensamento pessimista. “Caisse noire” está relacionado a suborno.
Em russo, uma expressão que ao pé da letra poderia ser traduzida como “trabalho negro” significa trabalho sujo — ou seja, temos a ideia de negro associada a algo ruim, negativo e ilegal.
Apesar das metáforas e origens racistas destas expressões, de forma inconsciente, após séculos de uso, o falante as incorpora e passa a considerá-las “normais e sem intenção negativa”. Por essa razão, os falsos valores que permeiam esse tipo de linguagem fazem penetrar nos usuários um preconceito racial.
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O filósofo francês Jean-Paul Sartre, no livro “Reflexões sobre o Racismo”, afirma que é difícil escapar das armadilhas da linguagem. O negro vai aprender a dizer que algo “branco como a neve” significa inocência. E também vai falar da “negrura de um olhar e de uma alma” no momento em que alguém comete um crime.
Na civilização ocidental, do ponto de vista simbólico, a cor preta está associada a uma mancha moral e física ou à morte e à corrupção; enquanto a branca tem relação com a vida e a pureza. Na África Ocidental, por exemplo, a figura de Deus foi representada por um ser branco, velho e de barba; enquanto o Diabo é desenhado em um menino negro com chifrinhos e rabinho.
A palavra ‘escravo’
A língua russa não foi citada neste texto sem um motivo, no mínimo, intrigante.
A palavra escravo, em português, tem por origem as formas latinas medievais “slavus e sclavum”. Esses termos chegam no inglês como “slave” (escravo).
O uso latino para “slavum” e “sclavum” está diretamente relacionado ao nome que era dado às famílias de povos da Europa Central, que eram “mantidas” pelos germanos e bizantinos, durante a Idade Média: os eslavos, um povo originário da Rússia que se espalhou pelo leste da Europa. A denominação “eslavo” veio dos gregos e romanos.
Eles achavam que todos daquela região eram muito parecidos e escolheram uma palavra grega que passasse essa ideia. Portanto, a palavra “escravo” tem relação direta com o povo eslavo, considerado branco, descrito como bárbaro e guerreiro, de homens de cabelo e barbas compridas.
No mínimo, é uma origem curiosa se pensarmos na relação entre escravidão e negros, em todo o mundo.
Em seu artigo “Metáforas Negras”, Vera Lúcia Menezes de Oliveira, a professora emérita da Universidade Federal de Minas Gerais, cita Sartre no momento em que ele inverte os valores e usa a metáfora “alma negra” no sentido positivo, de orgulho da raça:
“O preto que chama seus irmãos de cor a tomarem consciência de si próprios tentará apresentar-lhes a imagem exemplar de sua negritude e voltar-se para a sua própria alma a fim de aí captá-la.”
*Rodrigo Maia é editor do Jornal da CNN e pós-doutor em Língua Portuguesa