Protestos violentos sobre vacina reacendem discussões sobre fascismo na Itália
Membros da neofascista Forza Nuova foram presos por causa dos violentos ataques em protestos em Roma contra "passaporte da vacina"
Em uma rua estreita e sinuosa no centro de Roma, paralelepípedos dourados brilham nas calçada em frente às casas, gravados com as palavras: “Deportata Auschwitz” (“deportado para Auschwitz”).
Uma das pedras é dedicada a Rossana Calo, que tinha apenas dois anos quando, junto com sua mãe, foi transportada a centenas de quilômetros para o campo de extermínio nazista. Na chegada, ela foi morta nas câmaras de gás.
As placas em homenagem a mais de 1.000 vítimas arrancadas de suas casas no Gueto Judeu da capital italiana em outubro de 1943 são uma lembrança séria do passado sombrio do país.
A Itália entrou na Segunda Guerra Mundial como aliada de Adolf Hitler em 1940, mas o regime fascista de Benito Mussolini já havia abraçado o antissemitismo antes disso. Meses depois de Mussolini ser destituído em 1943, autoridades alemãs começaram a prender judeus em Roma e em outras grandes cidades do norte do país.
Mais de 75 anos após a morte de Mussolini nas mãos da resistência italiana, o debate sobre a ideologia fascista (e seu apelo contínuo a alguns italianos) se reacendeu na esteira das tentativas do governo de controlar a pandemia do coronavírus.
Em 9 de outubro, a sede do maior sindicato da Itália e um hospital de emergência em Roma foram alvos de protestos furiosos contra o Green Pass da Covid-19 no país.
O Green Pass, que entrou em vigor na sexta-feira passada (dia 15), exige que todos os trabalhadores, de atendentes de cafés a cuidadores, motoristas de táxi a professores, apresentem comprovante de vacinação, um teste negativo ou uma prova de recuperação recente da infecção pelo coronavírus. A Itália – que já foi o epicentro da Covid-19 da Europa – agora tem a exigência de vacinação mais forte do continente.
Membros da neofascista Forza Nuova foram presos por causa dos violentos ataques em Roma.
Partidos fascistas banidos
“O fascismo nunca foi embora neste país”, disse o professor de história Simon Martin, autor de vários livros sobre o fascismo italiano. “A Itália não enfrentou seu passado. Não há vontade para isso, eu acho, em ambos os lados”.
Martin disse que milhares de pessoas ainda fazem fila a cada ano em aniversários, como o do nascimento e da morte de Mussolini e da Marcha sobre Roma, e visitam seu túmulo em Predappio, 320 quilômetros a nordeste de Roma – tudo isso apesar de Mussolini ter comandado um estado policial repressivo e ter sido responsável por brutais campanhas coloniais e massacres durante seus 20 anos no poder.
“Há tem um livro de condolências [junto ao túmulo do ditador] que precisa ser substituído regularmente porque fica cheio”, contou.
Uma lei de 1952 proibiu a reconstituição de partidos fascistas na Itália, mas eles se reformaram com nomes alternativos, disse Martin à CNN durante uma visita ao Gueto Judeu.
A violência dos protestos do Green Pass em 9 de outubro levou a crescentes apelos para dissolver os grupos neofascistas no país. Os organizadores cancelaram uma manifestação contra o Green Pass na cidade de Trieste, no nordeste do país, planejada para sexta e sábado (16 e 17 de outubro), e pediram aos manifestantes que não comparecessem por temor de violência.
Nos últimos dias, legisladores italianos no Senado e na Câmara baixa votaram a favor de um requerimento apresentado pelos partidos de centro-esquerda do país. Ele conclama o governo do primeiro-ministro Mario Draghi a dissolver Forza Nuova e todos os movimentos de inspiração neofascista. Draghi e seu Conselho de Ministros agora consultarão especialistas jurídicos antes de anunciar uma decisão.
O advogado de Forza Nuova, Carlo Taormina, disse à CNN que o grupo está atualmente sendo desmantelado e não atua como movimento político há 20 meses.
Em resposta às cenas violentas em 9 de outubro, dezenas de milhares de pessoas protestaram contra o fascismo na Praça San Giovanni, em Roma.
“Vim aqui porque é importante enviar uma mensagem”, disse Jacopo Basili, 30 anos, no comício organizado pelos principais sindicatos da Itália em 16 de outubro. “O que aconteceu foi muito ruim, como se estivéssemos voltando 100 anos atrás na Itália. Hoje devemos dizer não. Não é possível”.
Outro manifestante, Leone Rivara, disse à CNN que não acredita que a ameaça do fascismo na Itália hoje se compare à era de Mussolini, mas que as tensões sociais no país foram “agravadas pela pandemia” e que “forças que se declaram democráticas cruzam fronteiras e exploram a fraqueza, a fragilidade, a raiva, a ilusão do povo para perturbar o equilíbrio democrático deste país”.
Um grupo acusado de fazer exatamente isso é o Fratelli d’Italia, ou Irmãos da Itália, um partido de direita que ganhou as manchetes internacionais quando um de seus membros, Rachele Mussolini (neta de Benito) foi eleita para o conselho municipal de Roma por um segundo mandato no início deste mês. O cargo é equivalente ao de vereadora.
Rachele Mussolini ganhou mais de 8.200 votos, o maior número registrado para qualquer candidato – um grande aumento em relação aos 657 votos que recebeu na votação de 2016.
“Vou me esforçar para não decepcionar aqueles que confiaram em mim e para conquistar aqueles que não me conhecem … Meu objetivo é continuar trabalhando pela minha cidade para devolver a dignidade perdida”, escreveu Rachele no Facebook após sua reeleição.
A CNN contatou Rachele Mussolini, por meio de seu assessor de imprensa, para perguntar se ela acha difícil se distinguir das associações fascistas ligadas ao seu sobrenome, mas não obteve resposta.
Ela não é a primeira descendente do ditador italiano a entrar na política. Sua meia-irmã Alessandra serviu como membro do parlamento na aliança de centro-direita do Povo da Liberdade de Silvio Berlusconi e foi membro do Parlamento Europeu.
Pesquisas de opinião sugerem que o Fratelli d’Italia, que nasceu do partido neofascista Movimento Social Italiano (MSI), é atualmente o partido mais popular na Itália.
Junto com a Lega, de direita, de Matteo Salvini, e a Forza Italia, de centro-direita, o partido Fratelli d’Italia recentemente apoiou o radialista e advogado Enrico Michetti em sua luta para se tornar o próximo prefeito de Roma.
Na segunda-feira (18), Michetti perdeu no segundo turno por cerca de 20%. Durante a campanha, seu escritório foi pichado com a palavra “fascista”.
Questionada sobre o motivo do Fratelli d’Italia ainda ser ligado ao fascismo, a líder do partido, Giorgia Meloni, disse à CNN que seu partido não é um terreno fértil para tal regime.
Andrea Ungari, professor de história contemporânea da Universidade LUISS de Roma, disse acreditar que uma pequena proporção de italianos pode ser definida como tendo crenças fascistas.
“É difícil definir o Fratelli d’Italia como um partido fascista”, pontuou Ungari. “Claro, existem algumas declarações, algumas atitudes duras, é claramente um partido de direita, mas com a diferença entre direita e extrema direita”.
“Na Itália existe a herança do fascismo, é claro, mas às vezes é um termo utilizado pela esquerda para monopolizar o debate político”, alertou Ungari.
Os grupos neofascistas Forza Nuova e CasaPound não participaram das últimas eleições na Itália.
Lembretes do fascismo
Monumentos ligados ao racismo, colonialismo e momentos vergonhosos da história foram removidos de países ao redor do mundo na esteira dos protestos Black Lives Matter.
Na Itália, porém, a arquitetura dos 20 anos de governo de Benito Mussolini é mantida. Diferentemente da Alemanha, que proibiu e erradicou os símbolos nazistas após a Segunda Guerra Mundial, a Itália deixou inúmeras lembranças da era fascista.
O complexo esportivo de Roma – Foro Mussolini, ou fórum de Mussolini – que abriga o principal estádio de futebol da cidade, Stadio Olimpico, foi renomeado para Foro Italico. Mas um obelisco de mármore de quase 18 metros com o nome de Mussolini ainda está de pé do lado de fora.
A estação ferroviária Ostiense, que foi construída para comemorar a visita de Hitler a Roma em 1938 e exibe um mosaico com o tema da ideologia fascista italiana de que a Itália moderna era a herdeira da Roma antiga, ainda é uma das principais estações ferroviárias da cidade.
Por fim, o Palazzo della Civiltà Italiana – uma torre de mármore de seis andares construída como a peça central do novo bairro de Mussolini, Esposizione Universale Roma, no sudoeste da cidade – permanece gravado com uma frase de seu discurso de 1935 anunciando a invasão da Etiópia.
“Acho que o verdadeiro problema com essas estátuas é que não há nada para contextualizá-las. Nada para nos dizer do que se tratava o fascismo”, afirmou o professor de história Martin.
O professor contou que, embora possa não ser prático demolir todos os edifícios da era fascista da Itália, devido ao grande número envolvido, isso “deve ser contextualizado. Precisamos conversar sobre o que eles significam”.
Quanto ao requerimento para banir grupos e partidos neofascistas, “seria uma declaração de intenção do governo”, disse Martin, mas é improvável que a ação mude as ideias das pessoas.
Barbie Latza Nadeau e Nicola Ruotolo, da CNN, contribuíram para esta reportagem.
(Texto traduzido. Clique aqui para ler o original em inglês).