Príncipe Charles conhece sobreviventes do genocídio em Ruanda
Charles visitou o país durante reunião de líderes da Commonwealth, e conheceu memoriais do conflito entre Hutus e Tutsis
O altar da Igreja Nyamata foi envelopado com um pano manchado de sangue. Seus bancos foram retirados; em seus lugares, estão fileiras e fileiras de roupas e itens pessoais que pertenciam às pessoas massacradas no local há 28 anos. O teto acima é perfurado por estilhaços, após os autores dos assassinatos jogarem granadas no edifício.
Em 1994, extremistas Hutus em Ruanda miraram a minoria étnica dos Tutsis e Hutus moderados em uma sequência de assassinatos de três meses, que deixou cerca de 800 mil mortos, apesar de os locais estimarem números maiores.
No porão abaixo da igreja — que hoje é um memorial ao genocídio de 1994 — os crânios de homens tutsis não identificados estão suspensos sobre o caixão de uma mulher do mesmo grupo étnico que morreu após um ato de violência sexual bárbara.
Os perpetradores atacaram igrejas como esta, nos arredores da capital Kigali. Mais de 10 mil pessoas foram mortas ali em dois dias, de acordo com a gerente do memorial, Rachel Murekatete. Uma vala comum atrás do edifício é o local de descanso final de mais de 45 mil pessoas da área circundante mortas pela violência.
O príncipe Charles parecia visivelmente emocionado ao ser mostrado ao redor da igreja na quarta-feira (22), para onde até agora os corpos descobertos em outros lugares estão sendo trazidos, já que os assassinos identificam outros túmulos como parte do processo de reconciliação que começou em 1999.
O herdeiro do trono britânico está em Ruanda para uma cúpula de líderes da Commonwealth no final desta semana. Mas sua viagem ocorre em um momento difícil, pois o furor sobre o plano radical do governo do Reino Unido de enviar requerentes de asilo para Ruanda irrompeu.
O governo britânico anunciou o acordo com o país africano em abril, mas o voo inaugural há uma semana foi interrompido após uma intervenção de 11 horas do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. O primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, também deve comparecer ao encontro dos líderes da Commonwealth e deve encontrar o príncipe Charles na manhã de sexta-feira (24).
Após conhecer a área dos túmulos, o membro da família real de 73 anos ofereceu uma coroa em homenagem às vítimas enterradas no local. No cartão, havia uma nota do príncipe escrita na língua local de Kinyarwanda: “Sempre iremos lembrar das almas inocentes que foram mortas no Genocídio Contra Os Tutsi em Abril de 1994. Seja forte Ruanda. Charles”.
Ele então visitou a vila de reconciliação Mbyo, um dos oito vilarejos semelhantes em Ruanda, onde sobreviventes e perpetradores do genocídio vivem lado a lado. Os perpetradores desculparam-se publicamente por seus crimes, enquanto os sobreviventes professaram seu perdão.
O primeiro dia da sua visita a Ruanda foi focado em aprender mais sobre os massacres de quase três décadas atrás. O jogador de futebol de Ruanda e sobrevivente do genocídio Eric Murangwa encorajou o príncipe a incluir Nyamata no roteiro da viagem de três dias pelo país.
“Estamos vivendo o que chamamos de ‘último estágio do genocídio’, que é a negação. E ter alguém como o príncipe Charles visitando Ruanda e visitando o memorial…destaca como o país conseguiu se recuperar daquele passado terrível”, ele disse à CNN no início do mês, durante uma recepção no Palácio de Buckingham celebrando as contribuições de povos da Commonwealth.
No início da quarta-feira, o príncipe Charles e sua esposa Camilla, a duquesa da Cornualha, conheceram o presidente de Ruanda, Kagame, e a primeira-dama Jeannette Kagame — e visitaram o Memorial do Genocídio em Kigali, e o museu em Gisozi, onde um quarto de milhão de pessoas estão enterradas.
“Esse memorial é um lugar de lembranças, um lugar onde sobreviventes e visitantes podem vir e prestar suas homenagens às vítimas do genocídio contra os Tutsis”, disse Freddy Mutanguha, diretor do terreno e sobrevivente do massacre. “Mais de 250 mil vítimas foram enterradas nesse memorial e seus corpos foram coletados em diferentes lugares…e esse lugar tornou o destino final para nossos amados, nossas famílias”.
Entre essas famílias, está a sua própria, que uma vez viveu na cidade de Kibuye, na província oeste do país.
Mutanguha disse à CNN que ouviu invasores matarem seus pais e irmãos durante o genocídio, relatando: “Eu estava escondido, mas podia ouvir suas vozes até que cessassem. Eu e uma irmã sobrevivemos, mas perdemos outras quatro”.
Manter a memória viva é o que impulsiona sua missão no memorial.
“Esse é um lugar muito importante para mim como sobrevivente, porque além de ser onde enterramos nossa família — minha mãe está aqui, nos túmulos coletivos — é uma casa para mim. Mas também é o lugar onde trabalho e eu sinto essa responsabilidade. Como sobrevivente, tenho que falar, tenho que contar a verdade sobre o que aconteceu com a minha família, meu país e o meu povo Tutsi”, continuou.
Mutanguha queria receber o príncipe Charles para que aprendesse mais sobre o que aconteceu ali, e ajudasse a contrariar uma onda online de negacionistas do genocídio, a quem comparou com negocionistas do holocausto.
“Isso é o que realmente me preocupa, porque quando o Holocausto aconteceu, as pessoas não aprenderam com o passado. Quando o genocídio contra os Tutsis aconteceu, pode ver os negacionistas do genocídio…principalmente aqueles que cometeram o genocídio — eles sentem que podem fazer de novo, porque não terminaram o trabalho. Então, eu contando essa história, trabalhando aqui e recebendo visitantes, podemos ajudar a chegar à realidade do ‘nunca mais”.
Um porta-voz da Clarence House, residência oficial de Charles e Camilla, disse que o casal real foi impactado pela importância de não esquecer os horrores do passado. “Mas também foram profundamente emocionados enquanto ouviam as pessoas que encontraram formas de viver com, e mesmo perdoando, os crimes mais hediondos”, acrescentou.
O príncipe Charles chegou a Ruanda na noite de terça-feira (21) — o primeiro membro da família real a visitar o país. Ele está em Kigali representando a Rainha Elizabeth II na Reunião de Líderes de Governo da Commonwealth (CHOGM, na sigla em inglês).
A reunião ocorre geralmente a cada dois anos, mas foi reagendada duas vezes devido à pandemia.