Por que a Alemanha é tão vulnerável à chantagem russa
Quase metade das importações de gás natural da Alemanha vem da Rússia, que é também um destino importante para exportações alemãs
Os primeiros 100 dias estão provando ser particularmente implacáveis para o primeiro governo alemão da era pós-Merkel.
Desde que assumiu o cargo em 8 de dezembro, o chanceler Olaf Scholz e seu gabinete tiveram que enfrentar um aumento sem precedentes de tropas russas ao longo da fronteira da Ucrânia e a perspectiva de uma grande guerra na Europa.
Até o momento, seu desempenho não inspira confiança sobre a capacidade da Alemanha liderar neste momento de crise.
Aproximadamente metade das importações de gás natural da Alemanha vem da Rússia. Essa dependência se tornará cada vez mais importante nos próximos anos, à medida que a Alemanha embarcar em uma redução simultânea do carvão e da energia nuclear.
A Rússia também é um destino importante para as exportações alemãs. E por razões históricas, os líderes alemães há muito desejam estreitar as relações com a Rússia.
Lenta, mas certamente, a Alemanha se manobrou para uma posição de vulnerabilidade em relação ao Kremlin.
A complicada relação da Alemanha com a Rússia é única entre os vizinhos europeus. O primeiro chanceler social-democrata (SPD, da sigla em inglês para Partido Social-Democrata) do país, Willy Brandt, buscou acalmar as coisas com a União Soviética a partir de 1969.
A “Ostpolitik” de Brandt – normalização das relações entre a Alemanha Ocidental e a Europa Oriental – abriu caminho para o Ato Final de Helsinque de 1975, que reconhecia as fronteiras nacionais da Europa pós-guerra.
Este foi um objetivo importante para os líderes soviéticos, ansiosos por escorar seus satélites do Leste Europeu. Mas deu também aos dissidentes e ativistas dos direitos civis no império soviético um manifesto pela reforma liberal.
Mas a Rússia em 2022 – como ficou bastante claro em suas demandas por uma revisão geral da ordem de segurança europeia que ela colocou diante dos Estados Unidos e da Otan em dezembro – é uma fera muito diferente da União Soviética do final da Guerra Fria, que buscava consolidação política e dinheiro vivo.
A Rússia de Vladimir Putin também não está interessada em se juntar ao Ocidente político, como parecia estar durante a década de 1990.
Em vez disso, o presidente russo detesta a presença contínua dos Estados Unidos na Europa, simbolizada pela aliança da Otan. Ele vê a União Europeia como fraca e dividida, e a democracia liberal fadada ao fracasso.
Putin liderou pela primeira vez a acusação contra a hegemonia global dos Estados Unidos na Conferência de Segurança de Munique, em 2007.
Em 2014, apenas alguns meses após a anexação da Crimeia pela Rússia, Putin fez um discurso no Valdai Discussion Club, em Sochi. O tema da conferência sobre política internacional foi: “Novas regras ou um jogo sem regras?”
O espectro de um outro ataque contra a Ucrânia deve forçar uma resposta agora. E isso faz questionar a política da Alemanha com a Rússia nas últimas duas décadas.
Desde 2000, os governos alemães – liderados pelo social-democrata Gerhard Schröder, que tem estreitos laços pessoais e comerciais com a Rússia, e depois pela democrata-cristã Angela Merkel – buscaram aprofundar as relações para benefício mútuo, prosperidade e estabilidade. Enquanto isso, Putin identificou e cultivou pontos de pressão usar essas interdependências como arma.
O presidente russo também manipula a culpa alemã com habilidade. Ele se beneficia do fato de que muitos alemães associam as atrocidades que a Alemanha nazista cometeu contra os europeus orientais em grande parte com a Rússia.
Embora tenham sofrido proporcionalmente mais mortes e maior destruição, os poloneses, bielorrussos e ucranianos, por sua vez, recebem pouca empatia.
Ser ignorado pelos alemães é o preço que os europeus orientais pagaram pela colaboração germano-soviética durante a Segunda Guerra Mundial e a ocupação soviética da Europa Oriental a partir de 1945.
A Alemanha é, portanto, mais vulnerável à chantagem russa e mais disposta a ver Putin como merecedor de respeito e compreensão. Ele é, muitas vezes, visto como um líder poderoso e uma vítima das circunstâncias, encurralado pela implacável pressão ocidental.
Esta não é uma visão majoritária no governo alemão ou nas elites políticas. Mas, ocasionalmente, pessoas importantes, como o chefe da Marinha da Alemanha, expressam tais simpatias por Putin (e o chefe foi forçado a renunciar pouco depois).
Isso ressalta por que a liderança baseada em princípios é tão importante, e a falta de liderança alemã é tão prejudicial para os esforços ocidentais para dissuadir Moscou de uma novo ataque contra a Ucrânia.
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Ainda assim, após assumir o cargo em dezembro, Scholz reiterou sua afirmação de que o gasoduto germano-russo Nord Stream 2 era um “projeto puramente do setor privado” e que não deveria ser confundido com questões políticas ou geopolíticas.
O novo ministro da Defesa da Alemanha e o secretário-geral do SPD apoiaram Scholz, assim como outros líderes políticos que consideram as relações energéticas um importante canal de diálogo com Moscou.
Foram necessárias semanas de consultas com aliados da Otan e da UE para que o chanceler considerasse o gasoduto como parte de um pacote de sanções dissuasivas.
Parecia que Scholz precisava ser trazido para essa percepção, na qual seus parceiros de coalizão, o Partido Verde e o partido liberal Democrata Livre, já compartilhavam com aliados em Washington, Paris e Varsóvia.
Berlim está pisando na bola em relação ao apoio material para a Ucrânia também. Quando a ministra das Relações Exteriores, Annalena Baerbock, do Partido Verde, visitou Kiev em janeiro, ela ofereceu uma parceria de hidrogênio e apoio alemão para reforçar as defesas cibernéticas da Ucrânia.
Nos últimos dias, a Alemanha anunciou que patrocinaria um hospital de campanha e enviaria 5 mil capacetes militares para a Ucrânia – tão útil quanto enviar “travesseiros”, brincou o prefeito de Kiev, Vitali Klitschko, que é bem conhecido na Alemanha, da época quando foi campeão peso pesado de boxe.
Mas as transferências de armas continuam fora da mesa. Baerbock explicou essa postura restritiva em referência à história de guerra da Alemanha.
Outro ministro das Relações Exteriores, Joschka Fischer, também do Partido Verde, defendeu a participação do país na intervenção militar da Otan no Kosovo, em 1999, também com uma referência apaixonada à história alemã: as atrocidades cometidas pela Alemanha nazista obrigaram os alemães a se erguer aos ataques.
As transferências de armas por si só não são uma estratégia para lidar com a grande potência revisionista às portas da Europa.
Infelizmente, nada indica que a Alemanha esteja preparada para formular e implementar uma estratégia competitiva de longo prazo que explique o desejo da Rússia de coagir a Ucrânia e outros estados pós-soviéticos a abandonar suas aspirações ocidentais.
Os Estados Unidos estão concentrando a atenção em uma China em ascensão, que pressiona cada vez mais a ordem de segurança regional no Indo-Pacífico.
A França, embora envolvida em uma campanha eleitoral presidencial, está propondo construir blocos para o que pode evoluir em uma estratégia europeia contra a Rússia.
Aliados na Polônia, Lituânia e em outros lugares anseiam pelo reconhecimento de suas preocupações de segurança evidentemente justificadas.
A Alemanha precisa dar um passo à frente. Caso contrário, uma imagem a qual sugere que os aviões militares britânicos evitaram os espaço aéreo alemão a caminho da Ucrânia pode vir a simbolizar o papel da Alemanha nesta crise e o redirecionamento das relações de segurança europeias em torno do centro da Europa.
Nota do editor: Rafael Loss (@_RafaelLoss) é especialista em política europeia de segurança e defesa no Conselho Europeu de Relações Exteriores. Ele está baseado em Berlim. As opiniões expressas neste artigo são dele.