População local relata prejuízos após navio bloquear Canal de Suez por seis dias
Embarcação encalhada não afetou apenas navios e tripulações; consequências são sentidas por todos que vivem do canal, de capitães a vendedores de souvenires
Pela primeira vez em 40 anos, Wessam Hafez, piloto sênior do Canal de Suez, não foi trabalhar. Por seis dias, o tráfego na principal ligação marítima entre a Ásia e a Europa parou.
“Sem navios, sem pilotos”, disse ele à CNN. “Quando o canal é fechado, não só a economia global é afetada, mas todos que trabalham no canal perdem dinheiro. De capitães a motoristas de lancha e vendedores de souvenires, todos que vivem do canal, seja no setor formal ou informal, são afetados.”
O Canal de Suez, que liga o Mar Mediterrâneo ao Mar Vermelho, viu cerca de 19 mil navios passarem em 2020. Na terça-feira da semana passada, o enorme navio de contêineres Ever Given encalhou lá, bloqueando essa artéria vital para a economia mundial e criando filas de centenas de embarcações.
Na madrugada desta segunda-feira (29), a parte traseira do Ever Given foi desencalhada de uma das margens do canal. No fim da manhã, a Autoridade do Canal de Suez (SCA) informou que o cargueiro foi totalmente retirado e que o tráfego na rota deve ser retomado em três dias.
O bloqueio não afetou apenas navios e tripulações. O pescador Reda el Sayed foi proibido de pescar no lugar habitual por três dias depois que o tráfego parou. Na última sexta-feira (26), as autoridades finalmente permitiram que ele retornasse ao Grande Lago Amargo em Ismailia, Egito, onde pelo menos 40 navios estavam estacionados, aguardando a retomada da navegação no canal.
“Não podemos permitir coisas como esta. Primeiro uma tempestade, depois um barco preso no canal, sempre que algo acontece, os militares não permitem a pesca porque tentam proteger o canal e suas águas”, reclama Sayed.
“Se eu não trabalho por um dia, minha família passa fome”, acrescentou, tremendo levemente em sua camiseta azul rasgada num dia de muito vento.
Prejuízo para uns, oportunidade para outros
Por outro lado, o engarrafamento ofereceu oportunidades para algumas pessoas. Enquanto dragas e rebocadores trabalhavam para desencalhar o Ever Given, um homem chamado Medhat, que se recusou a fornecer o nome completo, contou que sua empresa de transporte estava prosperando.
Ele tem fornecido comida, água e suprimentos básicos para navios bloqueados que esperam para cruzar o gargalo. “Normalmente os navios esperam até o próximo porto na Europa ou Ásia para obter suprimentos de melhor qualidade. Agora, eles têm que levar nossos suprimentos de abastecimento, peças de reposição e também precisam de serviços de coleta de lixo”, disse ele mal se movimentando entre caixas de água e outros itens.
Pelo celular, Medhat abre um aplicativo que rastreia o tráfego marítimo. Ele e seus colegas verificam obsessivamente o programa a cada poucos minutos, observando o número crescente de pontos vermelhos, o que significa que os navios se alinham ao norte e ao sul do Canal. Quase 400 navios aguardam para cruzar a barreira. Enquanto o Ever Given não for retirado, 50 navios devem ficar presos por dia.
“Parece que eles usarão nossos serviços pelos próximos 40 dias ou mais. Não acho que esta crise acabará tão cedo. O navio está preso como uma rocha. Não temos o equipamento adequado para descarregar contêineres tão grandes “, disse Medhat.
Medhat, como muitos que falaram à CNN, não queria que seu nome fosse publicado por medo de represálias.
Lembranças
Essa é a mais longa suspensão da navegação no Canal de Suez em tempos de paz, mas não é a primeira vez que acidentes deixam as cidades próximas com um ar de mundos distantes.
O folclore local se tornou inseparável das lembranças de histórias de amor que floresceram no calçadão ao lado do canal, e do desgosto e afastamento forçados por anos de guerra.
Hafez lutou nas guerras do Egito de 1967 e 1973 com Israel, que fizeram o tráfego parar em uma das principais rotas comerciais do mundo. Depois de deixar o exército, ele se mudou para Port Said, na foz mediterrânea do canal, e depois para a cidade de Ismailia, na margem oeste. A esposa dele, Magda Heshmat, trabalhou na SCA até a aposentadoria.
O lar do casal está repleto de pinturas e esculturas (Magda é filha de um artista famoso no Egito, Hassan Heshmat), bem como retratos de família, medalhas de guerra e fotos de Hafez com ex-presidentes egípcios e capitães do mar famosos – tudo parte da orgulhosa história da região.
Heshmat se lembra de um navio que teve que se desfazer de parte de sua carga. “De repente, o mercado de Ismailia estava cheio de bananas. Bananas enormes. Não as pequenas bananas egípcias. Cada banana tinha 500 cm de comprimento, foi a primeira vez que as vimos e foi tudo o que as pessoas falaram na nossa cidade durante dias”, recordou.
No porto de Suez, a 74 quilômetros da casa de Hafez, o trabalhador portuário Mohammed lembra-se vividamente de outro incidente – uma colisão de dois barcos na década de 1990 que fez com que um contêiner cheio de frangos caísse no canal. “De repente, frango congelado estava nadando no canal. Todo mundo estava pescando frango. As lanchas os tiraram da água. As pessoas aqui no porto pegaram um pouco e nós, os trabalhadores, pegamos um pouco e os preços do frango caíram de 20 libras egípcias para apenas uma libra.”
A situação do Ever Given, e o impacto que ele está causando na economia global, sem dúvida farão parte da história local a partir de agora. Quer se beneficiem ou não, todos em Ismailia acompanham as notícias sobre o navio, e a via navegável que ficou silenciosa é um lembrete sempre presente dos milhões de dólares que o governo e a economia estão perdendo todos os dias.
“Estou com o coração partido porque isso impacta diretamente a reputação do Egito. Isso é o que me deixa triste. Mesmo que não seja nossa culpa. Aconteceu sob nossa supervisão em nosso país. Eu realmente espero que este pesadelo acabe”, disse Heshmat.
(Texto traduzido, leia o original em inglês)