Partido de Mandela deve perder as eleições; o que isso significa para África do Sul?
Congresso Nacional Africano não teria a maioria parlamentar pela primeira vez em 30 anos na maior mudança política do país desde o fim do Apartheid
O partido governante da África do Sul, o Congresso Nacional Africano (ANC), deve perder a maioria pela primeira vez em 30 anos, após as eleições nacionais desta semana, marcando a maior mudança política no país desde o fim do Apartheid.
Com a contagem de votos quase total, o apoio ao ANC foi de pouco mais de 40%, uma enorme queda em relação aos 57,5% que recebeu nas últimas eleições.
O partido oficial da oposição, a Aliança Democrática (DA), teve cerca de 22% dos votos.
Atrás deles estavam dois partidos dissidentes do ANC: o recém-formado Partido uMkhonto weSizwe (MK), liderado pelo ex-presidente Zuma, teve quase 15% dos votos, e os Combatentes pela Liberdade Económica (EFF) tiveram quase 10%, de acordo com dados da comissão eleitoral do país.
A reposta dos eleitores nas urnas ao partido de Nelson Mandela, é resultado de anos de escândalos de corrupção e má gestão económica. Com a derrota, o ANC será forçado a formar uma coligação para governar o país.
Cyril Ramaphosa, o presidente da África do Sul e do ANC – e dado como o favorito de Mandela para o suceder como líder – prometeu um “novo amanhecer” quando assumiu em 2018 após o ex-presidente Jacob Zuma.
Mas muitos sentem que essas promessas nunca se concretizaram e os resultados eleitorais refletem uma população profundamente frustrada com a direção do país.
Os sul-africanos poderão agora enfrentar semanas de incerteza política, enquanto o ANC procura chegar a um acordo de coligação com antigos rivais.
A resposta não foi inesperada, refletindo a insatisfação generalizada com o partido no poder. Mas a escala das perdas surpreendeu alguns.
“O que temos visto é que os eleitores estão descontentes com a história recente do ANC. Em particular, o que aconteceu nos anos Zuma e o que se seguiu”, disse a analista e antiga deputada do ANC, Melanie Verwoerd, à CNN.
Há “uma arrogância geral e uma perda de ligação com o eleitor por parte do ANC”, disse Verwoerd, acrescentando que partidos como o MK e a EFF capitalizaram esse descontentamento.
Zuma – um crítico do atual presidente – foi forçado a renunciar ao cargo de líder em 2018 e cumpriu um breve período de prisão em 2021 por desacato ao tribunal.
O Tribunal Constitucional impediu o candidato de 82 anos de concorrer ao parlamento em maio, mas o seu rosto permaneceu nas urnas do partido MK.
ANC em território desconhecido
Uma negociação substancial provavelmente começará assim que os resultados finais forem declarados. Os partidos políticos terão duas semanas para formar um governo de coligação antes de um novo parlamento concordar em eleger o presidente do país. Se falharem, novas eleições terão de ser realizadas.
“Não tenho simpatia pelo Sr. Ramaphosa e seu partido”, disse o líder do DA, John Steenhuisen, à CNN durante uma entrevista no Centro Nacional de Resultados Eleitorais.
A populosa província costeira oriental de KwaZulu-Natal, onde está localizada a principal cidade de Durban, tem sido tradicionalmente um reduto do conservador Partido da Liberdade Inkatha (IFP).
Zuma enfrentou centenas de acusações de corrupção, fraude e extorsão ao longo dos anos. Ele sempre negou todos eles e ficou conhecido como o “Presidente do Teflon” porque poucos políticos poderiam ter sobrevivido aos escândalos que o ex-presidente enfrentou.
Os analistas com quem a CNN conversou, incluindo Verwoerd, acreditam que a coligação mais provável é entre o ANC e a DA. Mas outros são mais céticos em relação a esse resultado. Todos concordam que o país se encontra em território desconhecido.
Steenhuisen disse à CNN que quer fazer parte de uma coligação governamental e acredita que um pacto “pode funcionar”. Antes das eleições, a DA já tinha formado um bloco com partidos de oposição mais pequenos, denominado Carta Multipartidária.
O que o político chama de “coligação do Juízo Final” é uma das outras opções disponíveis: um acordo entre a ANC-EFF ou mesmo o MK.
Mas com o desprezo por Ramaphosa por parte dos partidos dissidentes, seria uma negociação bastante complicada.
A EFF é liderada pelo antigo líder juvenil do ANC, Julius Malema. O partido defende a expropriação de terras sem compensação e o nacionalismo estatal abrangente.
O manifesto do partido MK mantém ideias bastante semelhantes e exige uma revisão da constituição do país para restaurar mais poderes aos líderes tradicionais.
Desde o início da democracia, em 1994, o panorama político da África do Sul nunca foi tão claro.
Mas alguns analistas acreditam – apesar da incerteza – que os resultados destas eleições poderão ser uma vitória para a democracia.
“É provavelmente uma maturidade na democracia, precisávamos de mudanças e nunca é bom ter tal domínio de partido único num país”, disse Verwoerd.
“Pode ser um pouco mais instável à medida que avançamos para o futuro. Mas, pelo bem da democracia, é provavelmente uma coisa boa”, acrescentou.
A analista disse que as perspectivas do ANC caíram drasticamente sob o presidente anterior.
“Depois que os anos de Jacob Zuma aconteceram, tornou-se inevitável que houvesse uma queda”, explicou.
Um país em retrocesso
O ANC chegou ao poder em 1994 com o compromisso de “construir uma vida melhor para todos”, obtendo quase 63% dos votos nas primeiras eleições democráticas do país.
Avançando três décadas, a corrupção desenfreada, o aumento do desemprego, os cortes de energia paralisantes e o fraco crescimento econômico estão afetando gravemente os sul-africanos.
A economia retrocedeu na última década, evidenciada por uma queda acentuada nos padrões de vida.
De acordo com o Banco Mundial, o produto interno bruto per capita caiu desde o pico de 2011, deixando a média sul-africana 23% mais pobre.
A África do Sul tem a maior taxa de desemprego do mundo, segundo o banco. A desigualdade também é a pior do mundo.
Os sul-africanos negros, que representam 81% da população, estão no extremo da situação. O desemprego e a pobreza continuam concentrados na maioria negra, em grande parte devido ao fracasso da escolaridade pública, enquanto a maioria dos sul-africanos brancos têm empregos e recebem salários consideravelmente mais elevados.
Qualquer governo de coligação será uma dificuldade para o ANC e Ramaphosa, que poderão em breve estar lutando pela sua vida política.
Os principais analistas acreditam que o ANC dependia do seu legado.
“O ANC esteve em campanha durante três décadas da sua existência. Mas ninguém estava olhando para o atual presidente”, disse TK Pooe, professor sénior da Wits School of Governance, em Joanesburgo. O especialista acredita que Ramaphosa está “sob pressão”.
“Historicamente, é uma vergonha para ele. Ele sempre se autodenomina o próximo Nelson Mandela”, afirmou Poe à CNN. Mas “última lembrança, Nelson Mandela nunca perdeu uma eleição”.
O professor disse que, com esta eleição, os eleitores disseram três coisas ao ANC: “empregos, empregos, empregos”.
É incerto se um governo de coligação conseguirá ajudar o povo, contudo a África do Sul e o ANC – o antigo movimento de libertação de Mandela que triunfou sobre o Apartheid – nunca mais serão os mesmos.