Opinião: para Reino Unido, Elizabeth II não deixou nada por fazer
Ela assumiu o trono após a Segunda Guerra Mundial em um momento de mudanças sociais e geoestratégicas
A Grã-Bretanha perdeu seu mais querido símbolo de continuidade. A rainha Elizabeth II, sua monarca mais longeva, faleceu. Ela obteve esse título em 2015, quando superou a rainha Vitória, a monarca britânica de 1837 a 1901. A rainha comemorou seu Jubileu de Platina em fevereiro passado, marcando 70 anos de reinado.
Ela assumiu o trono após a Segunda Guerra Mundial, em um momento de rápidas mudanças sociais e geoestratégicas para o Reino Unido. Sua coroação, no dia 2 de junho de 1953, foi um dos primeiros grandes eventos televisionados na Grã-Bretanha e, em muitos aspectos, anunciou uma nova era de prosperidade em massa para os britânicos no pós-guerra, com não só TVs, mas também carros, geladeiras e água encanada se tornando o padrão nas casas da nação.
Seu Jubileu de Platina se transformou até numa “desculpa” bem-vinda para os britânicos e súditos da Commonwealth em todo o mundo para ir às ruas e celebrar, após as duras restrições impostas pela pandemia de Covid-19.
Esses dois eventos de crise nacional, a guerra mundial e a pandemia, demonstram o escopo e o significado da longevidade da rainha.
Na última metade do século, a política britânica testemunhou um afastamento da tendência nacional de definir épocas históricas com base em seus monarcas – a dinastia dos Plantagenetas, a Era Elizabetana, a Era Georgiana, a Regência, a longa Era Vitoriana, o Período Eduardiano – para adotar uma tendência mais norte-americana de registrar a história em termos daqueles representantes eleitos cujas políticas moldaram o cenário socioeconômico e político. Assim, historiadores falam da era Thatcher e dos anos Blair, enfatizando as mudanças radicais entre os anos 1980 e o início do milênio.
Em parte, isso reflete o ritmo e a extensão das mudanças que ocorreram sob o reinado de Elizabeth II. Por outro lado, também demonstra o declínio do significado político do monarca, que continua sendo o chefe de estado cerimonial, mas há muito tempo deixou de exercer o papel de chefe de governo.
No entanto, se voltarmos no tempo e avaliarmos as sete décadas da segunda Era Elizabetana, existe uma coerência em seu período como rainha que os futuros historiadores certamente reconhecerão. A rainha Elizabeth II administrou a transformação do império britânico em uma comunidade de nações, e do Reino Unido em uma confederação descentralizada mas unificada de Estados-nação.
Durante seu longo reinado, a sombra da desgovernança passada ameaçava minar a transição do império para a Commonwealth no exterior, e corromper os esforços para promover uma identidade britânica multiétnica internamente. O nacionalismo escocês e o conflito na Irlanda do Norte também podiam provocar uma separação do Reino Unido.
Mas a Grã-Bretanha, a Commonwealth e a monarquia mantiveram-se unidas, em parte devido à influência estabilizadora da rainha. Sob Elizabeth II, a Grã-Bretanha do pós-guerra se reconstruiu após duas guerras mundiais devastadoras e se tornou uma nação moderna, celebrada com pompa e circunstância na cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Londres em 2012 – um espetáculo internacional no qual a rainha teve papel de destaque ao lado de James Bond, interpretado pelo ator Daniel Craig.
E em um país cuja política recente foi marcada pelo aumento da polarização e da desunião que remonta ao Brexit em 2016, se não antes, a rainha Elizabeth II era uma das poucas figuras capazes de unir o país. Como expatriada americana vivendo na Grã-Bretanha, eu tinha um ceticismo inerente em relação à monarquia como instituição, mas a rainha (uma figura nacional tão onipresente que meu filho em idade escolar aprendeu a comemorar os dois aniversários dela antes mesmo de saber quando era o seu), era uma mulher difícil de não gostar.
Seu pai, George VI, reinou durante a Segunda Guerra Mundial, quando o império britânico era uma das “Três Grandes” potências aliadas ao lado dos Estados Unidos e da União Soviética, que derrotaram o Eixo. Nas décadas após a guerra, o poder bruto do Reino Unido diminuiu consideravelmente, pois uma ordem geopolítica mundial bipolar foi estabelecida por EUA e URSS, que passaram a dominar a política global.
Porém, como o poder bruto do Reino Unido encolheu, seu poder brando aumentou, e muito. Nos anos 1960, a Beatlemania conquistou primeiro a Grã-Bretanha e depois o mundo, e não apenas os Beatles, mas também os Rolling Stones, The Who, David Bowie, Queen e Elton John definiram o ritmo do rock durante grande parte das duas décadas seguintes. Ao longo dos anos, a rainha concedeu honrarias reais a Sir Paul McCartney, Sir Elton John e Sir Michael Jagger – mas tanto David Bowie quanto John Lennon recusaram tais condecorações, com Lennon citando explicitamente os danos que o império britânico havia causado na África.
Na década de 1990, o Britpop colocou o país novamente no mapa musical com as Spice Girls, cujas fotos de 1997 com o príncipe Charles e a rainha ajudaram a consolidar a relação entre a monarquia e o movimento cultural “Cool Britannia”.
O declínio do poder imperial britânico durante o reinado de Elizabeth II foi associado a novos papéis para o Reino Unido, moldados por sua adesão à Comunidade das Nações, à Europa e a uma especial relação anglo-americana.
Pouco depois de sua coroação, a rainha começou a testemunhar uma maré crescente de movimentos de independência colonial, e a mudança de um império britânico definido por um centro metropolitano e dependências imperiais para uma comunidade de 56 nações soberanas e iguais, unidas por um monarca compartilhado. Embora sediada na Grã-Bretanha, a rainha estava profundamente comprometida com seu papel como chefe da Commonwealth, e passou grande parte de seu tempo no reinado viajando para outras nações da comunidade.
Ela era chefe de Estado britânica quando o país entrou na Comunidade Europeia em 1973 (como a União Europeia era então conhecida), e quando votou para deixar a UE no referendo do Brexit de 2016.
Ela se encontrou pessoalmente com 13 dos últimos 14 presidentes dos EUA, o mais recente deles sendo Joe Biden, que a visitou para um chá em Balmoral, em junho de 2021 (Lyndon Johnson foi o único presidente a não se encontrar com a rainha durante seu mandato). Sua experiência como estadista ajudou a consolidar a “relação especial” entre a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, algo que se tornou um pilar da política externa britânica após a Segunda Guerra Mundial.
Elizabeth II nomeou formalmente 15 primeiros-ministros, incluindo a primeira-ministra Liz Truss, que assumiu o cargo na última terça-feira após viajar ao Castelo de Balmoral, na Escócia, para se encontrar com a rainha já debilitada.
Nos últimos dias, vídeos de Truss quando era uma estudante universitária vieram à tona, em que ela denunciava a instituição da monarquia e afirmava: “eu não sou contra nenhum deles pessoalmente, sou contra a ideia de que as pessoas podem nascer para governar. Que as pessoas – por causa da família em que nasceram – possam se tornar chefes de Estado do nosso país: acho isso vergonhoso”. No ano passado, surgiram vídeos semelhantes do líder trabalhista Keir Starmer brincando que ele “costumava propor a extinção da monarquia”.
Os comentários de ambos os líderes partidários quando jovens contrastam com suas declarações de preocupação e condolências na quinta-feira. Embora haja quem desconfie da sinceridade dos sentimentos dos líderes partidários à luz de seu professado republicanismo, talvez seja melhor interpretá-los como uma prova do afeto e respeito que a rainha inspirava, mesmo entre aqueles não predispostos a apoiar a instituição da monarquia.
Pouco mais de 60% dos britânicos declaram apoiar a monarquia britânica. No entanto, uma pesquisa recente do YouGov demonstrou que 75% dos britânicos gostavam da rainha, enquanto apenas 8% diziam não gostar. Ela tinha índices de aprovação muito maiores do que seu filho mais velho, que irá sucedê-la no trono. Apenas 42% dos britânicos afirmaram gostar de Charles, enquanto 24% confessaram não gostar.
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Mesmo republicanos convictos (anti-monarquistas, não conservadores), estão dispostos a reconhecer que a rainha cumpriu as obrigações conferidas por seu privilégio hereditário e serviu honrosamente como chefe de Estado. E eles gostam dela por isso.
A afinidade entre Elizabeth II e seus súditos foi reforçada no ano passado, quando seu marido, o príncipe Philip, faleceu, e ela foi vista sentada, sozinha, na Abadia de Westminster durante seu funeral, de luto por seu companheiro de 73 anos. As imagens do evento despertaram imensa simpatia pela rainha, em especial entre os milhares de britânicos que perderam entes queridos da mesma forma durante a pandemia de Covid-19.
O contraste entre a estoica obediência da rainha aos requisitos de isolamento durante a pandemia e as notícias de que membros do gabinete do primeiro-ministro Boris Johnson haviam dado “festas de confinamento” ilegais em Downing Street na véspera do funeral inflamaram a indignação nacional com o agora ex-premiê, e contribuíram diretamente para sua renúncia.
A mensagem era direta: a rainha tinha jogado de acordo com as regras que governava, a si mesma e a seus súditos. O ex-premiê desrespeitou o povo britânico e quebrou os laços de confiança entre os líderes e os governados ao se comportar como se estivesse acima da lei.
Enquanto britânicos e súditos em todo o mundo lamentam a perda da rainha, há questões importantes sobre o futuro do país e da Commonwealth. Embora a maioria dos britânicos ainda apoie a instituição da monarquia, há pouco entusiasmo na Grã-Bretanha em relação ao futuro rei Charles III.
Em outros países da Commonwealth, como Austrália e Canadá, as pesquisas mostraram muito menos apoio à continuação da monarquia, apesar do forte afeto por Elizabeth II. A Jamaica anunciou recentemente planos para deixar a Commonwealth e se tornar uma república até 2025.
As próximas semanas e meses revelarão se a Commonwealth pode ou não superar sua monarca mais longeva.