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    Onda de calor sem precedentes “engole” Ásia e afeta trabalhadores informais

    Maior temperatura dos últimos 200 anos na região surpreende e mostra padrão das alterações climáticas

    Trânsito em Hanói, no Vietnã: pessoas que trabalham ao ae livre sofrem mais com aumento de calor
    Trânsito em Hanói, no Vietnã: pessoas que trabalham ao ae livre sofrem mais com aumento de calor Foto: Leon Ting/ Pixabay

    Carlotta DottoKrystina Shvedada CNN

    Hong Kong

    Todos os dias, inúmeras motos cruzam o congestionamento de Hanói, no Vietnã, com gente indo trabalhar e mototáxis carregando um pouco de tudo, como compras e comida para os clientes.

    Um desses motoqueiros é Phong, 42 anos, que começa seu turno às 5h da manhã para evitar a hora do rush, navegando o denso enxame de motos e dirigindo por mais de 12 horas por dia com pouco descanso.

    Mas uma onda de calor sem precedentes que engoliu o país nos últimos dois meses tornou o trabalho de Phong ainda mais árduo. Para aliviar o calor do dia, ele se equipou com chapéu, lenços de pano umedecidos e várias garrafas de água – precauções que proporcionaram pouco alívio, pois as temperaturas diurnas registradas subiram para mais de 40 graus Celsius.

    A temperatura média de maio em Hanói é de 32 graus Celsius.

    “Se eu sofrer com insolação, terei de parar de dirigir para me recuperar”, disse. “Mas eu não posso parar”.

    Phong, que não quis revelar o sobrenome, disse que carrega um pequeno guarda-chuva para proteger seu telefone, a principal ferramenta (além da moto) para trabalhar como motorista de aplicativo para a plataforma Grab. Se o telefone quebrar, ele perde a renda. “Eu tinha medo que a bateria superaquecesse quando exposta ao sol”, contou.

    Na mesma cidade, o trabalhador de saneamento Dinh Van Hung, 53 anos, passa o dia todo limpando lixo das ruas movimentadas do bairro de Dong Da, no centro de Hanói.

    “É impossível evitar o calor, especialmente ao meio-dia e início da tarde”, disse Dinh. “Temperaturas extremas também tornam o cheiro do lixo mais desagradável e o trabalho que já é duro fica ainda mais difícil, afetando diretamente minha saúde e trabalho”.

    Dinh diz que viu “não tem outro jeito” a não ser mudar o começo e o final do turno.

    “Eu tento trabalhar no início da manhã ou no final da tarde e à noite”, contou. “Durante o intervalo do almoço, quando a temperatura é muito alta, encontro uma calçada em um pequeno beco, espalho umas folhas de papelão para descansar por um tempo e depois retomo o trabalho à tarde”.

    Phong e Dinh estão entre milhões de motoristas, vendedores de rua, garis, lixeiros, construtores, agricultores e outros trabalhadores da economia ao ar livre ou informal do Sudeste Asiático. Eles foram os mais atingidos naquela que foi chamada de “a onda de calor mais forte do país”.

    Trabalhadores como eles formam o esteio de muitas sociedades, mas são desproporcionalmente afetados por eventos climáticos extremos, com temperaturas altíssimas impactando muito a saúde e a natureza já precária de suas profissões.

    Abril e maio são tipicamente os meses mais quentes do ano no Sudeste Asiático, com temperaturas subindo antes que as chuvas das monções tragam algum alívio. Mas, neste ano, elas alcançaram níveis nunca antes registrados na maioria dos países da região, incluindo pontos turísticos na Tailândia e Vietnã.

    A Tailândia registrou seu dia mais quente da história, com 45,4 graus Celsius em 15 de abril, enquanto o vizinho Laos teve 43,5 graus Celsius por dois dias consecutivos em maio. O recorde de todos os tempos do Vietnã foi quebrado no início de maio com 44,2 graus Celsius, de acordo com a análise dos dados das estações meteorológicas feitas pelo climatologista e historiador do clima Maximiliano Herrera.

    Herrera descreveu-a como “a onda de calor sem fim mais brutal”, iniciada em maio e que segue em junho. Em 10 de junho, o Vietnã quebrou o recorde de seu dia mais quente de junho na história com 43,8 graus Celsius – e ainda faltavam 29 dias do mês.

    Um relatório recente da World Weather Attribution (WWA), uma coalizão internacional de cientistas, disse que a onda de calor de abril no Sudeste Asiático foi um evento único em 200 anos que teria sido “praticamente impossível” de ocorrer sem a mudança climática causada pelo ser humano.

    O calor escaldante no Sudeste Asiático tornou-se ainda mais insuportável e perigoso devido à alta umidade, uma combinação mortal.

    Umidade causa extremo desconforto

    A umidade, somada às temperaturas extremas, torna ainda mais difícil o resfriamento do corpo.

    Doenças relacionadas ao calor, como insolação e exaustão pelo calor, têm sintomas graves e podem ser fatais, especialmente para aqueles com doenças cardíacas e problemas renais, os que sofrem com diabetes e as grávidas.

    “Quando a umidade ao redor é muito alta, o corpo continua suando para tentar liberar a umidade e se esfriar, mas, como o suor não evapora, ele acaba levando à desidratação grave. Em casos agudos, isso pode levar a insolação e morte”, explicou Mariam Zachariah, pesquisadora associada de análise em tempo real de eventos extremos relacionados às mudanças climáticas da iniciativa World Weather Attribution do Imperial College London.

    “É por isso que uma onda de calor úmido é mais perigosa do que uma onda de calor seco”, continuou.

    Para entender os riscos para a saúde do calor úmido, os cientistas geralmente calculam a “sensação térmica” – uma medida do calor que o corpo humano sente quando a temperatura do ar e a umidade são levadas em conta, às vezes somando também outros fatores, como o resfriamento do vento.

    O calor percebido é geralmente vários graus mais alto do que a temperatura observada e dá uma leitura mais precisa de como ele afeta as pessoas.

    A análise da CNN dos dados do Serviço de Monitorização das Alterações Climáticas do Copernicus, da União Europeia, descobriu que, entre o início de abril e o final de maio, todos os seis países da porção continental do Sudeste Asiático tinham atingido temperaturas próximas de 40 graus Celsius ou mais todos os dias. O valor está acima de um limiar considerado perigoso, especialmente para pessoas com problemas de saúde ou aqueles não acostumados ao calor extremo.

    Na Tailândia, 20 dias em abril e pelo menos dez dias em maio atingiram temperaturas semelhantes a 46 graus Celsius. Nesse nível, o estresse térmico torna-se “extremo” e é considerado uma ameaça de vida para qualquer um, incluindo pessoas saudáveis acostumadas com o calor úmido extremo.

    Ao longo de abril e maio, Vietnã, Camboja, Laos e Malásia tiveram vários dias com potencial para causar estresse térmico extremo. Mianmar teve 12 dias assim até que o ciclone Mocha trouxe um alívio relativo, mas também devastação grave ao tocar o solo em 14 de maio.

    A onda de calor de abril a maio no Sudeste Asiático causou milhares de hospitalizações, estragou estradas, provocou incêndios e levou ao fechamento de escolas. No entanto, o número de mortes permanece desconhecido, de acordo com o relatório da World Weather Attribution.

    O estudo descobriu que, por causa das mudanças climáticas, o calor era mais de dois graus mais quente na temperatura percebida do que poderia ter sido sem o aquecimento global causado pela poluição.

    “Quando a atmosfera se torna mais quente, sua capacidade de manter a umidade aumenta e, portanto, as chances de ondas de calor úmidas também aumentam”, detalhou a pesquisadora Zachariah, uma das autoras do estudo.

    Se o aquecimento global continuar a aumentar até 2 graus Celsius, essas ondas de calor úmidas podem ocorrer dez vezes mais frequentemente, de acordo com o estudo.

    Além disso, se as emissões continuarem subindo no mesmo ritmo, as próximas duas décadas poderão registrar mais 30 mortes por milhão por calor na Tailândia, e mais 130 mortes por milhão até o final do século, de acordo com as projeções da Human Climate Horizons da ONU.

    Para Mianmar, esse número seria de 30 e 520 mortes a mais por milhão, respectivamente. Para o Camboja, 40 e 270, segundo os dados.

    Pobres e vulneráveis mais atingidos

    Eventos climáticos extremos também expõem desigualdades sistêmicas.

    “Profissão, idade, condições de saúde e incapacidades, acesso a serviços de saúde, situação socioeconômica e até mesmo sexo são fatores que podem tornar as pessoas mais ou menos vulneráveis às ondas de calor”, enumerou Chaya Vaddhanaphuti, um dos autores do estudo e representante do relatório da WWA no departamento de geografia da Universidade de Chiang Mai, na Tailândia.

    Os membros mais marginalizados da sociedade, aqueles sem acesso adequado a sistemas de saúde e refrigeração e aqueles em empregos expostos a condições extremamente quentes e úmidas correm mais risco de estresse térmico.

    “É importante falar sobre quem pode se adaptar, quem pode lidar e quem tem os recursos para isso”, opinou Emmanuel Raju, também autor e diretor do Centro de Pesquisa de Desastres de Copenhague.

    “Para quem trabalha na economia informal, um dia perdido significa um dia sem pagamento”, completou Raju.

    Mais de 60% da população com trabalho no Sudeste Asiático está na informalidade, o que atinge mais de 80% no Camboja e Mianmar, de acordo com um relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 2018.

    No final de abril, as autoridades de saúde tailandesas emitiram um alerta de calor extremo para a capital Bangcoc e vários outros lugares em todo o país, alertando a todos para ficarem dentro de casa e explicando os perigos da insolação.

    Mas, para trabalhadores migrantes como Supot Klongsap, conhecido como “Nui”, que temporariamente deixou sua casa no interior para trabalhar em construção civil em Bangcoc durante a temporada pré-monção, ficar dentro de casa não era uma opção.

    Ele disse que a estação quente foi tão excepcional que ele suava e se sentia exausto o tempo todo. “Eu começava a suar às 8 da manhã e era difícil trabalhar. Ficava exausto por perder tanta água”.

    Nui, que dormia no canteiro da obra, disse que até as noites eram insuportáveis. “A água da torneira vinha muito quente, parecia fervida, mesmo à noite. Foi difícil encontrar conforto”.

    O pedreiro disse que o alojamento para os trabalhadores da construção é coberto e murado com folhas de papelão ondulado, e isso mal os protege do calor. O acesso a quartos com ar-condicionado é um luxo que Nui não pode pagar. “Tivemos que comprar gelo e colocar nas bebidas, foi o jeito simples de se refrescar”, contou.

    Um estudo de 2021 descobriu que pessoas que trabalham ao ar livre nos países em desenvolvimento têm uma temperatura corporal mais alta do que aqueles que trabalham em ambientes fechados. Eles estão duas a três vezes mais em risco de desidratação, tendo uma maior chance de redução da função renal e outras condições relacionadas.

    Na Tailândia, o governo recomenda medidas reativas, como ficar dentro de casa, hidratar-se adequadamente, usar roupas de cor clara e evitar certos alimentos, como contou Chaya à CNN.

    “Entretanto, isso não significa que todos tenham a mesma chance de cumprir as recomendações”.

    Segundo Chaya, o fardo do custo muitas vezes cai sobre as próprias pessoas, tornando-se sua responsabilidade lidar com o calor.

    Seria necessário um plano internacional coeso que possa proteger os mais vulneráveis diante dos riscos das mudanças climáticas e trazer medidas proativas para evitar potenciais problemas de saúde.

    Os governos precisam desenvolver soluções em grande escala, como sistemas de alerta precoce para calor, resfriamento passivo e ativo para todos, planejamento urbano e planos de ação contra o calor. A recomendação está no relatório da World Weather Attribution.

    Adaptação nas comunidades

    A intensificação das ondas de calor não afeta apenas a saúde dos indivíduos, mas ameaça o meio ambiente e os meios de subsistência, piora a qualidade do ar, destrói lavouras, aumenta o risco de incêndios florestais e danifica a infraestrutura. Assim, a necessidade de planos de ação do governo sobre as ondas de calor é vital.

    Nas aldeias Yotpieng e Phon, no nordeste do Laos, os meios de subsistência das pessoas estão intimamente ligados aos padrões climáticos.

    A vida dos aldeões gira em torno do chá. Durante séculos, todos os dias, às 7h da manhã, os produtores de chá começam a coletar folhas e o fazem até 11h da manhã, quando levam a colheita para casa. A sobrevivência dessas comunidades depende da coleta de folhas de chá para gerar renda para as famílias.

    Mas o calor extremo deste ano está atrapalhando a capacidade de trabalho da forma tradicional. Os agricultores tiveram de mudar o turno da manhã para a tarde durante as ondas de calor. Eles estão preocupados também com a qualidade e a quantidade de folhas de chá que serão afetadas.

    “O clima está extremamente quente para todos este ano e os agricultores estão sofrendo”, atestou Chintanaphone Keovichith, diretor da associação de agricultores dos Laos.

    “O clima deste ano está mais quente do que no ano passado, e as folhas de chá estão secas”, disse a produtora rural Boua Seng.

    Gerente de uma fábrica de processamento de chá fundada há 1.000 anos, Vieng Samai Lobia Yaw disse que está preocupada que as folhas de chá deste ano não tenham crescido o suficiente, o que diminui a colheita em quase 50% ao dia.

    “É um desperdício imenso. Gastamos mais capital com o pagamento dos trabalhadores e recebemos menos produtos”, relatou.

    Por enquanto, os produtores de chá no Laos se viram com soluções para proteger suas plantações. Alguns plantaram árvores frutíferas grandes, como pêssego ou ameixa, para fornecer sombra para as plantas de chá, enquanto outros adicionaram mais compostagem para nutrir a lavoura.

    “As plantas de chá que estão na sombra dão uma bela folha verde, mas as que estão sob o sol geram folha amarela”, explicou Thongsouk. “Nós também coletamos uma renda adicional vendendo frutas”.

    Mas eles não podem resolver tudo sozinhos.

    Sem uma abordagem internacional abrangente para reduzir rapidamente a poluição do aquecimento do planeta e lidar com os impactos de eventos climáticos extremos sobre indivíduos, comunidades e o meio ambiente, os custos de saúde e economia trazidos pelas ondas de calor só piorarão com a crise climática.

    Como a virada para o mês de junho, muitos ainda estão esperando por algum descanso.

    “Maio foi o pior mês. É geralmente quando a chuva chega, mas neste ano ela não veio”, disse Chintanaphone.

    Este conteúdo foi criado originalmente em inglês.

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