O que está por trás da violência recente na Irlanda do Norte?
Protestos violentos aconteceram nos últimos dias entre pessoas que apoiam a separação do país do Reino Unido e os que apoiam a manutenção
Por mais de uma semana, revoltas têm marcado as ruas de cinco cidades na Irlanda do Norte. Carros e um ônibus foram roubados e queimados, jovens jogaram coquetéis molotov contra a polícia e ao menos 74 agentes ficaram feridos.
A agitação crescente ameaça o frágil estado de paz entre os lealistas pró-britânicos, que querem continuar como parte do Reino Unido, e os nacionalistas pró-irlandeses, que gostariam que a Irlanda do Norte fosse parte da República da Irlanda.
Quando as revoltas recentes começaram?
Em 29 de março, policiais foram atacados com coquetéis molotov em uma área predominantemente unionista [favorável ao Reino Unido] em Tullymore, Derry/Londonderru, depois de uma tentativa de separar um grupo de cerca de 40 pessoas. Por cinco noites, cenas semelhantes aconteceram na cidade.
Até a sexta-feira da semana passada, 2 de abril, o caos havia se espalhado para o sul de Belfast, onde um pequeno protesto se transformou em um ataque à polícia no bolsão lealista na área de Sandy Row, de onde 15 policiais saíram com queimaduras e ferimentos na cabeça e pernas.
O comandante-chefe superintendente do distrito de Belfast, Simon Walls, disse que os policiais foram “sujeitos a ataques sustentados pelos revoltosos, que jogaram um número de objetos contra a polícia, incluindo alvenaria pesada, canos de metal, fogos de artifício e tampas de bueiros”.
Por que isso está acontecendo?
Os primeiros dias de protestos aconteceram na mesma semana em que autoridades disseram que não acusariam os líderes do partido nacionalista Sinn Fein, que teriam supostamente quebrado as restrições para conter a Covid-19 no verão passado quando participaram do funeral de Bobby Storey, um ex-figurão do IRA, um grupo paralimitar que liderou uma campanha ao longo de décadas por uma Irlanda independente e unificada.
O funeral de Storey reuniu cerca de 2.000 pessoas.
As comunidades lealistas acusaram as autoridades de hipocrisia partidária, dizendo que eles decidiram cancelar as tradicionais paradas de 12 de julho (feriado que celebra a Revolução Gloriosa) no verão passado devido à Covid-19 e que perderam eventos e funerais de pessoas amadas ao aderir a essas restrições.
Mas muitos analistas também apontam para o endurecimento recente e bem-sucedido da polícia sobre as gangues de drogas e de atividade criminosa apoiadas e compostas pelas forças paramilitares lealistas.
Quem está protestando?
A maior parte dos manifestantes são jovens, com alguns participantes de até 12 anos, de acordo com o Serviço de Polícia da Irlanda do Norte (PSNI).
Os primeiros dias de violência, que escalou ao longo do fim de semana de Páscoa, aconteceu principalmente em áreas predominantemente lealistas nas cidades de Belfast, Derry/Londonderry, Newtownabbey, Ballymena e Carrickfergus.
Mas essa dinâmica mudou na quarta-feira no oeste de Belfast, onde protestantes de comunidades lealistas e nacionalistas se enfrentaram ao longo da chamada “linha de paz” —um muro que separa bairros unionistas e nacionalistas.
Em um momento, a polícia teve dificuldades para fechar um portão desse muro durante os protestos, com coquetéis molotov, garrafas, alvenaria e fogos de artifício sendo lançados.
Houve momentos em que mais de 600 pessoas participaram das ações, disse a polícia.
Mais cedo na quarta-feira, um ônibus foi roubado e incendiado na Lanark Way, onde um fotógrafo de imprensa também foi atacado.
Em alguns vídeos do protesto compartilhados nas redes sociais, adultos podem ser vistos encorajando crianças a participarem dos atos violentos, o que levantou preocupações de que a violência pode estar sendo orquestrada por grupos paramilitares.
Na quinta-feira, a PSNI disse que ainda estava tentando avaliar o envolvimento de grupos paramilitares nessas ações. Apesar de não ter confirmado, o chefe-assistente da PSNI Jonathan Roberts disse que era “claro que havia um grau de organização” na violência.
Na noite de quinta, os embates continuaram em Belfast, com manifestantes jogando pedras nas viaturas do lado nacionalista da linha de paz. Agentes em trajes de combate, com cachorros e um canhão de água, se movimentaram para dispersar o movimento.
O UPRG do sul de Belfast foi o primeiro grupo lealista a pedir o fim dos protestos na quinta-feira. O Conselho das Comunidades Lealistas (LCC, na sigla em inglês), um grupo de inclui representantes de paramilitares unionistas e que também está associado ao UPRG, disse em um comunicado nesta sexta que “nenhum dos grupos associados estavam envolvidos direta ou indiretamente com a violência que aconteceu nos últimos dias”. Eles acrescentaram que “o direito de protestar pacificamente é um direito humano fundamental”, mas que todas as ações de membros da comunidade lealista deveriam ser “inteiramente pacíficos”.
A PSNI negou o envolvimento de paramiliares lealistas na organização da violência na sexta-feira, aparentando recuar em relação à avaliação anterior.
Em uma coletiva de imprensa, Roberts disse que a “avaliação geral” era que as manifestações “não foram orquestradas por um grupo, em nome desse grupo”.
“Há certamente pessoas que participaram da violência que não têm nada a ver com qualquer organização ilegal”, disse.
Houve “relatos de desordem” em uma área de Belfast nesta noite de sexta-feira, disse a PSNI em nota. Gravações do local mostram um carro pegando fogo com policiais cercando a rua. A polícia não falou sobre esse incidente especificamente.
Em um comunicado publicado no Twitter, o chefe superintendente de polícia da Irlanda do Norte Muir Clark disse: “Apelamos pela calma na área e pedimos a qualquer um que tenha influência nessas comunidades a, por favor, usar essa influência para garantir que os jovens não se envolvam na criminalidade e que se mantenham seguros nesta noite”.
O que o Brexit tem a ver com isso?
Os protestos estão acontecendo em meio à raiva crescente sobre uma parte específica do acordo do Brexit.
As tensões têm crescido na Irlanda do Norte desde que o Reino Unido votou para deixar a União Europeia em 2016. Mas há um trecho do acordo, chamado de Protocolo da Irlanda do Norte, que tem sido um ponto-chave de discórdia.
Ao longo das negociações do Brexit, todos os lados concordaram que qualquer acordo teria de honrar o acordo de paz da Irlanda do Norte, chamado de Acordo da Sexta-Feira Santa (GFA, na sigla em inglês), com o primeiro-ministro britânico dizendo em 2019 que “nós não iremos, sob nenhuma circunstância, ter alfândegas perto ou na fronteira da Irlanda do Norte. Respeitaremos o processo de paz e o Acordo da Sexta-Feira Santa”.
O GFA marcou o fim dos conflitos violentos na Irlanda do Norte, que duraram desde o fim doss anos 1960 até a assinatura dele, em 1998.
O acordo também começou o processo de desfazer controles de fronteira entre a Irlanda e a Irlanda do Norte e, em 2006, a última torre de vigia foi demolida.
Mas depois que o Reino Unido deixou a UE (e o mercado unificado), um novo plano —o protocolo da Irlanda do Norte —foi implementado.
Esse protocolo almeja eliminar a necessidade de controle de fronteiras entre a Irlanda do Norte (parte do Reino Unido) e a República da Irlanda (membro da UE).
Mas ele também cria uma fronteira no Mar da Irlanda, já que bens entrando na Irlanda do Norte pela Grã-Bretanha estariam sujeitos a checagens da UE. O movimento irritou os unionistas pró-britânicos, incluindo a primeira-ministra da Irlanda do Norte, Arlene Foster, e o partido dela, o Partido Unionista Democrático, que argumentam que esse acordo coloca o futuro da união em risco.
A ministra da Justiça da Irlanda do Norte Naomi Long disse na quarta-feira que a “desonestidade e falta de clareza [do governo do Reino Unido] ao redor dessas questões contribuiu para um sentimento de raiva em partes da nossa comunidade”, declarando que o governo minimizou o impacto que o Brexit teria sobre a Irlanda do Norte.
Long disse ao programa Today da BBC Radio 4 que o governo sabia que as consequências do Brexit seriam “sentidas de forma mais aguda na Irlanda do Norte, onde questões identitárias estão atreladas à questões fronteiriças”.
No mês passado, o Conselho das Comunidades Lealistas disse estar retirando o apoio ao GFA.
“Existe vontade política para lidar com o problema no comércio —ou a União Europeia está tratando de maneira leviana a paz na Irlanda do Norte para punir o Reino Unido pelo voto de independência?”, questionou David Trimble, ex-premiê da Irlanda do Norte e vencedor do Prêmio Nobel da Paz pelo papel que teve nas negociações do GFA, em um artigo de opinião no Wall Street Journal na sexta-feira.
O que os líderes políticos estão dizendo?
O premiê irlandês Micheál Martin —conhecido como Taoiseach— e o premiê britânico Boris Johnson se falaram na quinta-feira.
“Ressaltando que a violência é inaceitável, eles pediram por calma”, disse um comunicado do gabinete de Martin.
“O caminho em frente é através do diálogo e das instituições do Acordo da Sexta-Feira Santa”, acrescentou.
Na quinta-feira, a Casa Branca se reuniu com líderes britânicos, irlandeses e norte-irlandeses para expressar preocupação com a violência. O porta-voz do Departamento de Estado Ned Price alertou que o GFA “não deve se tornar uma baixa do Brexit”.
Long, a ministra da Justiça norte-irlandesa, pediu que as pessoas “parem, antes que vidas sejam perdidas”.
Em uma reunião de emergência do governo da Irlanda do Norte nesta quinta-feira, a primeira-ministra Arlene Foster disse que a violência manchou a reputação do país no ano do centenário dele.
“Nós todos deveríamos saber bem que quando a política falha ou parece falhar na Irlanda do Norte, aqueles que preenchem o vácuo oferecem destruição e desespero. Não podemos permitir que uma nova geração de jovens caia vítima desse caminho ou que sejam predados por alguém que prefere sombras à luz”, disse Foster à Assembleia norte-irlandesa.
Há algum sinal de arrefecimento da violência?
Ambas as comunidades estão apelando pela paz. No entanto, ainda não está claro se esses apelos serão ouvidos.
Na sexta, grupos lealistas cancelaram paradas que estavam planejadas para o fim de semana, como sinal de respeito pela morte do príncipe Philip.
Protestos devem acontecer na área neste sábado, que marca o 23º aniversário do Acordo da Sexta-feira Santa.
(Texto traduzido, leia o original em inglês)