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    No aniversário de 20 anos do corralito, crise econômica ainda castiga argentinos

    Caos vivido em 2001 deixou marcas profundas na população e volta com ares de trauma diante da nova crise nos últimos anos; "quando pousei, era presidente", lembra Ramón Puerta em entrevista à CNN

    No dia 20 de dezembro de 2001, uma mulher com a filha no colo resiste à repressão da cavalaria contra os protestos pela crise pós "corralito", na Praça de Maio
    No dia 20 de dezembro de 2001, uma mulher com a filha no colo resiste à repressão da cavalaria contra os protestos pela crise pós "corralito", na Praça de Maio Ricardo Ceppi/Getty Images

    Luciana Taddeocolaboração para a CNN

    Em Buenos Aires

    No sábado em que o então ministro argentino da Economia Domingo Cavallo afirmou, pela televisão, que durante 90 dias, os argentinos poderiam sacar somente 250 pesos semanais de suas contas bancárias, María Teresa Nannini pegou a tampa de uma panela e foi para a janela de sua casa em Córdoba, fazer barulho.

    Começava dezembro de 2001, e na segunda-feira seguinte ao anúncio, a população correu para os bancos para sacar dinheiro. Era o primeiro dia do “corralito” (curralzinho, em português), uma das medidas do governo de Fernando De La Rúa para frear a fuga de dólares do sistema financeiro argentino.

    Longas filas se formaram diante de bancos e caixas automáticos. As agências aumentaram o horário de atendimento e colocaram mesas de consultas para orientar a população, mas nada conseguia conter a indignação social. Os protestos, com coros de “Que saiam todos!” se espalharam pelo país.

    Vinte anos depois, e em meio à mais grave crise socioeconômica desde então, o corralito ainda protagoniza pesadelos e temores na Argentina. Nesta semana, o Banco Central do país soltou um comunicado desmentindo que depósitos bancários pudessem ser afetados por medidas anunciadas pelo governo de Alberto Fernández na última semana, também para evitar a fuga de divisas.

    O temor evidencia não somente a ferida aberta, mas também que o país volta a ser assombrado por alguns problemas estruturais que ainda não conseguiu resolver.

    Crise de 2001

    Nannini ainda define aquele 3 de dezembro como o “dia da estafa”. Dona de casa, ela diz se arrepiar ao lembrar de tudo o que aconteceu desde então. Além do limite de saque em caixas e agências bancárias, o plano de Cavallo para tentar controlar a sangria de divisas incluía a proibição de descontar cheques.

    O dinheiro em espécie começou a escassear, afetando o consumo e o pagamento de serviços. Não demorou para que começassem os saques e outras cenas dramáticas até hoje são lembradas com dor no país.

    Os protestos foram reprimidos com armas de fogo e truculência – um dos registros audiovisuais mais marcantes é o de agentes sobre cavalos avançando contra as Mães da Praça de Maio – associação de mães de desaparecidos pela ditadura argentina (1976-1983).

    Manifestantes chegaram a invadir e incendiar o palácio do Congresso. Supermercados foram esvaziados diante das lágrimas de impotência dos donos dos estabelecimentos que acabaram destruídos.

    Segundo dados oficiais, 39 pessoas morreram entre os dias 19 e 20 de dezembro, auge dos protestos e da repressão. O banho de sangue levou La Rúa a renunciar e abandonar a Casa Rosada – sede do governo argentino – em helicóptero.

    Na falta de um vice-presidente – Carlos “Chacho” Álvarez, eleito com De La Rúa em 1999, havia renunciado um ano antes -, o sucessor foi o presidente do Senado, o peronista Ramón Puerta, que estava em um voo de Buenos Aires à província de San Luis durante a renúncia.

    “Quando pousei, o presidente era eu”, lembra, em entrevista à CNN, em seu apartamento em um setor luxuoso da capital argentina. Puerta, que também foi governador de Misiones e deputado nacional e senador por esta província, tomou posse no dia seguinte e ficou três dias no cargo.

    Ele conta que, neste período, assinou mais de 100 decretos, entre eles o do fim do estado de sítio decretado por De La Rúa, e que agiu rapidamente para encher os caixas eletrônicos de dinheiro. “Esta era minha obsessão”, explica, afirmando que, com isso, o país se tranquilizou.

    Ramón Puerta, presidente da Argentina por três dias em 2001, segurando a foto de sua posse / Luciana Taddeo

    Mas os dias seguintes foram de mais tremor político-econômico: depois de Puerta, que tinha 48 horas para a eleição do sucessor, a Assembleia Legislativa coloca no cargo Adolfo Rodríguez Saá, que 7 dias depois renuncia. O cargo é ocupado pelo presidente da Câmara, até o peronista Eduardo Duhalde assumir após eleição indireta. Quinto presidente do país em apenas duas semanas, foi Duhalde quem, em janeiro de 2002 decretou o fim da paridade.

    Montantes em dólares de contas correntes e poupanças foram pesificados, com a moeda argentina valendo 1,4 em relação à norte-americana, no chamado “corralón”.

    Nannini lembra que muitos argentinos enfartaram. Em uma reportagem de janeiro de 2002, o jornal La Nación ressaltava que além de problemas cardíacos, consultórios médicos estavam sendo inundados por pessoas que padeciam de sintomas que podiam ser causados pelo impacto emocional da situação, como problemas digestivos e de pele, tremores, enxaqueca, insônia, tontura e depressão. “A crise está custando caro para o corpo dos argentinos”, concluía o texto.

    Os anos que se seguiram foram de batalhas judiciais entre cidadãos e o Estado e Bancos. Moradora da cidade de Córdoba, Nannini integrou a Depositantes Bancários Argentinos Estafados (Abae), uma assembleia auto convocada que entrou na Justiça para reaver depósitos no valor original em dólares. Após sete anos de luta e protestos – que, conta a dona de casa argentina, incluíram até enrolar a casa de um juiz com papel higiênico – ela conseguiu a devolução de um depósito.

    Crise persistente

    Vinte anos após o corralito, a Argentina se vê imersa na pior crise socioeconômica desde então. Segundo dados oficiais, 40,6% da população está abaixo da linha de pobreza e a inflação interanual do país é de 52%.

    Além disso, desde que assumiu, em dezembro de 2019, o governo de Alberto Fernández negocia com o Fundo Monetário Internacional o pagamento do empréstimo contraído por seu antecessor, Mauricio Macri, de US$ 57 bilhões, o maior da história do FMI.

    A atual administração também tomou medidas rígidas contra a saída de divisas do sistema financeiro, como a limitação à compra de dólares (a um máximo de US$ 200 mensais) e impostos de pelo menos 30% sobre gastos com cartão no exterior.

    Para Andrés Asiain, diretor do Centro de Estudos Econômicos e Sociais Scalabrini Ortiz (CESO), há duas linhas de continuidade desde 2001: a dívida externa do país, pelo novo ciclo de endividamento com o FMI, e a fuga de capitais, devido a tendência de um importante setor da população argentina de recorrer ao dólar para proteger suas economias, um reflexo da falta de confiança na moeda nacional e de rendas não declaradas.

    Mas segundo ele, também há diferenças em relação a 2001. “O sistema bancário hoje é muito mais sólido, não há risco de um corralito. E o lado negativo é que hoje temos uma inflação muito mais elevada”, explica.

    Contra este último mal que corrói o bolso dos argentinos, o governo de Fernández ampliou o congelamento de preços iniciado no segundo governo da ex-presidente e atual vice, Cristina Kirchner, e mantido por Macri. Mas as medidas não parecem surtir efeito.

    Segundo Asiain, independente de causas originais, hoje a Argentina enfrenta uma inércia inflacionária.  “É uma economia que já convive há muito tempo com a inflação”, pontua, explicando que contratos de aluguel se atualizam de acordo com a inflação passada, assim como as taxas de juros nominais e as negociações salariais que se baseiam neste índice.

    “Então, no ano que vem, os empresários aumentarão seus preços em pelo menos 50% para cobrir esses aumentos, e de certa forma a economia já projeta essa inflação para frente.”

    Para o economista, a solução é atacar elementos inerciais. “O Macri tentou não emitir moeda e como a inflação continuou, depois foram obrigados a emitir. Se você não atrasa o dólar, os preços continuam subindo e depois a moeda acaba desvalorizando. Se você congela os preços, tem meses de produtos mais baratos, mas tudo continua aumentando, e depois é preciso atualizá-los. Quando há uma inércia, toda a âncora vai sendo arrastada com o tempo”, pontua.

    No dia 25 de dezembro de 2001, argentinos faziam fila na frente do consulado espanhol, tentando sair do país por conta da crise / Ricardo Ceppi/Getty Images

    Segundo o economista e historiador Mario Rapoport, a crise de 2001 e a atual são muito diferentes. “Não podemos comparar as crises por políticas econômicas similares, porque acontecem em circunstâncias diferentes”, diz, afirmando que até De La Rúa, predominaram as políticas neoliberais, de ajuste, quando a partir de Néstor Kirchner, começam medidas de desenvolvimento produtivo com a ajuda de termos de intercâmbio favoráveis das relações internacionais.

    Em termos sociais, “aparentemente a situação não é tão grave como em 2001”, explica Eduardo Donza, pesquisador do Observatório da Dívida Social Argentina da Universidade Católica (ODSA – UCA). Apesar dos graves índices de renda atuais, ele lembra que há 20 anos, os níveis de pobreza tinham chegado a 52% da população, quando o desemprego chegou a 21% e hoje está entre 10 e 12%. Um dos pontos de diferença, ressalta, é que as ajudas estatais aos setores mais empobrecidos surgidos há 20 anos aumentaram ao longo dos últimos governos e “já são um direito constituído”.

    Mas ele alerta que a Argentina foi somando ao longo desses anos uma pobreza estrutural, da qual é mais difícil de sair do que no passado. “Desde 2001, os níveis de pobreza nunca baixaram de 27, 28% da população, e foram se acumulando. E muitas famílias precisam diretamente da ajuda do Estado para viver”, explica, pontuando também que após 2002, os países da América Latina foram beneficiados pelo aumento das commodities.

    Hoje, o contexto não é o mesmo e se agravou com a pandemia. Além disso, localmente, há atraso na desvalorização do peso em relação à inflação, o que implica um risco de que quando o valor da moeda caia, esta diferença seja transferida para os preços ao consumidor. “A saída da crise de 2001 foi bem rápida. Agora nenhum especialista prevê que a saída da crise vai ser tão rápida”, conclui.