“Não vamos ficar aqui para sempre”, diz ONU sobre o Haiti
Organização das Nações Unidas planeja encerrar missão no país caribenho após eleições locais
Protestos em massa. Explosões fatais no meio de uma guerra de gangues. Um Poder Judiciário sobrecarregado e um Poder Legislativo estéril, no qual um pequeno grupo de deputados vagueia entre os assentos vazios dos antigos colegas.
Há anos, assim tem sido a vida no Haiti. Durante todo esse tempo, a luz no fim do túnel nesse quadro sombrio tem sido o voto. Mas a aguardada eleição tem sido prometida e adiada seguidamente por líderes que poderiam reconstruir o governo – e devolver a primeira república negra do mundo a um caminho democrático.
“Antes do fim deste ano, colocaremos o país em modo de eleição”, declarou o primeiro-ministro e presidente interino Ariel Henry em discurso ao país na segunda-feira (12). Ele não mencionou data para o pleito.
Henry, que já adiou uma eleição geral planejada em meio a críticas ao antigo conselho eleitoral, também se sentiu obrigado a defender o atraso. “A todos aqueles que espalham rumores de eu tenho a intenção de me manter o poder, digo que isso é falso”, acrescentou.
As eleições são adiadas há anos. A última vez que os haitianos escolheram seus próprios representantes políticos foi em 2016. As eleições parlamentares previstas para 2019 não aconteceram na presidência de Jovenel Moise, nem as eleições gerais que viriam em seguida.
Assim, o país caribenho tem sido governado por decreto há três anos, primeiro sob o governo de Moise – até ao seu chocante assassinato no ano passado – e agora sob Henry, empossado como seu sucessor.
Ambos os governos tiveram o apoio do Escritório Integrado da Organização das Nações Unidas (ONU) no Haiti. Conhecida como BINUH, a missão política marcará o seu terceiro aniversário de operações em outubro. Entretanto, os desafios só crescem com o adiamento do pleito.
“Vamos passar pelas próximas eleições”
Helen Meagher La Lime, chefe da BINUH e Representante Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas para o Haiti, contou à CNN que o seu foco é ajudar o governo do presidente interino Henry a chegar a um consenso com os líderes da oposição e da sociedade civil e assim iniciar a organização de eleições. O processo começou no ano passado, após o assassinato de Moise, e se mostrou dolorosamente lento até agora.
“Temos muito trabalho a fazer para chegar às eleições; é preciso consenso para estabelecer um conselho eleitoral. Esse conselho, então, vai trabalhar na constituição, fazendo revisões ou reescrevendo trechos. E só depois as eleições serão organizadas”, detalhou La Lime na sua primeira entrevista desde que o mandato de um ano do BINUH foi renovado pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Grandes parcelas da oposição do Haiti dizem que não confiam em Henry para realizar o pleito, pedindo que um governo de transição assuma o controle do país primeiro. Alguns veem também La Lime e outros atores externos com ceticismo, já que esse é um país onde o imperialismo, a ocupação e até mesmo a intervenção bem-intencionadas têm uma longa e brutal história.
“Henry não deve ter autorização de usar o apoio da comunidade internacional para continuar a concentrar todos os poderes sob a sua liderança exclusiva e falha”, escreveu Jacques Ted St Dic, membro do grupo Montana, organização que defende um governo de transição.
“Sem legitimidade e sem confiança popular no processo eleitoral, quaisquer eleições serão questionadas e os novos líderes não terão o apoio popular para instituir reformas desesperadamente necessárias. Esse é o ciclo que vem paralisando o Haiti por mais de uma década”, continuou.
La Lime não quis discutir a possibilidade de um governo de transição, dizendo à CNN: “são ideias que têm de ser discutidas pelos haitianos e um consenso a ser alcançado por eles”.
No lugar de tratar do tema, ela enalteceu o poder simples de almoços coletivos, fornecidos pelo BINUH em um hotel local, para reunir vozes políticas no Haiti. Com base nesse diálogo, ela previu que o país faria eleições em 2023 – e até sugeriu que o próprio BINUH poderia deixar de ser necessário depois disso.
“Vamos passar pelas próximas eleições para ver que níveis de estabilidade que teremos nessa altura. E então a BINUH vai considerar sair do país”, revelou La Lime. “Não vamos ficar aqui para sempre”.
País seguro para as eleições
O atual cenário de agitação violenta na capital Porto Príncipe torna difícil imaginar a organização de eleições. Mesmo aqueles que mais querem mudanças duvidam do processo.
Nas últimas semanas, batalhas brutais de gangues em partes de Porto Príncipe causaram distúrbios em bairros inteiros, obrigando famílias a deixarem suas casas e aprisionando outras, com medo de sair mesmo em busca de comida e água. Centenas morreram, ficaram feridas ou desapareceram. Os criminosos ainda controlam ou influenciam partes da cidade mais populosa do país; sequestros ameaçam os movimentos cotidianos dos moradores.
Parte de um ecossistema maior de entidades e ONGs da ONU que operam no Haiti, o BINUH tem sua atuação em grande parte limitada a consultoria e apoio ao governo e à polícia nacional do Haiti. Seus relatórios regulares são robustos e detalhados, documentando em linguagem firme o estado da sociedade civil, da política e dos direitos humanos no país.
Após reconhecer a crise na segurança, o BINUH alocou dezenas de funcionários como conselheiros na polícia. A ONU também anunciou um novo “fundo comum” para apoiar a polícia, que visa angariar 28 milhões de dólares nos próximos dois anos. Mas esse dinheiro se destina a objetivos a longo prazo, como o financiamento do recrutamento e da formação, o aumento da representação das mulheres nas forças de segurança e a melhoria das infraestruturas e delegacias.
“A ONU não pode consertar nada”, disse La Lime à CNN. “A ONU pode trabalhar com o governo do Haiti e com as instituições do país para produzir um resultado melhorado”.
A impaciência está crescendo. Nas últimas semanas, manifestantes em várias cidades pediram a saída do presidente interino Henry diante dos altos preços dos combustíveis, da inflação crescente e do crime sem controle. Na segunda-feira (12), o presidente reconheceu a fúria popular, pedindo calma – mas também anunciou que iria aumentar o preço do combustível, provocando mais protestos.
Em agosto, Luis Almagro, Secretário-Geral da OEA (Organização dos Estados Americanos), atacou os “benfeitores” globais, rotulando os esforços da comunidade internacional no Haiti como “um dos piores e mais claros fracassos implementados e executados no âmbito de qualquer cooperação internacional”.
La Lime reconhece as críticas. “Sim, os resultados não são o que deveriam”, lamentou.
Ainda assim, o trabalho dela não é assumir a responsabilidade pelo passado, nem sequer por parte do presente.
“Acho que o que precisamos de fazer é olhar para as lições e ver o que devemos trabalhar de forma diferente. Acho que não enfatizamos essa parceria o suficiente. Em outras palavras, o que o lado haitiano precisa fazer para tornar o esforço mais sustentável?”