México, com alto índice de assassinatos, processa fabricantes de armas nos EUA
Ação de parentes de vítimas de massacre em escola americana e suposto marketing de indústrias baseiam demanda do governo mexicano na Justiça
Quando a jornalista Miroslava Breach, 53, foi assassinada ao sair de casa, em Chihuahua, estado mexicano que faz fronteira com os Estados Unidos, algo chamou a atenção dos policiais que investigavam o caso: a arma usada no crime tinha gravada a imagem de Emiliano Zapata, líder da Revolução Mexicana.
A pistola calibre .38 foi fabricada pela empresa norte-americana Colt e faz parte de uma edição limitada, com apenas 500 unidades, em comemoração ao aniversário do herói mexicano. Uma delas foi usada, em 2017, para disparar oito tiros contra a correspondente do jornal La Tercera na divisa entre o México e os Estados Unidos.
A polícia descobriu que o assassinato da repórter foi encomendado por um grupo associado ao cartel de Sinaloa. Com mais de 20 anos de carreira, Miroslava Breach havia denunciado esquemas de corrupção envolvendo narcotraficantes e políticos no estado de Chihuahua. Após a investigação, o ex-prefeito de Chínipas, Hugo Amed Schult, foi condenado a oito anos por participação no crime.
O caso é citado pelo governo do México em um processo contra onze fabricantes de armas norte-americanas. Na ação, o Estado argumenta que essa seria uma das provas do marketing direcionado que as empresas fazem para os cartéis mexicanos e, portanto, elas deveriam ser responsabilizadas pelos homicídios no país vizinho.
“Organizações criminosas da fronteira compram, em supermercados, pela internet e em feiras, milhares de pistolas, armas e munições que são utilizadas em atos ilícitos no México. Por isso, resulta indispensável para o governo federal iniciar uma ação legal nos Estados Unidos contra fabricantes de armas e que estão intimamente vinculados à violência que se vive em nosso país”, disse em comunicado à imprensa.
No México, foram registrados 29 homicídios para cada 100 mil habitantes em 2020, taxa que se mantém estável desde 2018. O número é mais alto do que no Brasil, onde no ano passado foram 23,6 assassinatos por 100 mil.
Segundo o governo do México, ao menos 70% das armas do país vêm dos Estados Unidos.
Ação inédita
A ação contra fabricantes de armas foi apresentada pelo governo mexicano ao tribunal federal de Massachusetts (EUA) em agosto. Na última sexta-feira (17), o tribunal informou que as empresas citadas têm até 22 de novembro para se manifestar. O julgamento deve ocorrer após 28 de fevereiro de 2022, quando se encerram os prazos para a réplica e a contrarréplica. O processo não envolve o governo norte-americano.
“As fabricantes devem desenvolver e implementar padrões razoáveis e verificáveis para monitorar e, quando necessário, disciplinar seus distribuidores”, disse o ministro de Relações Exteriores do México, Marcelo Ebrard Casaubon, na entrevista de apresentação à imprensa.
A medida do governo mexicano se baseia em uma ação movida em 2014 por familiares de vítimas do massacre em uma escola em Connecticut, nos Estados Unidos. No processo, eles argumentaram que a fabricante do fuzil usado no crime deveria responder por homicídio culposo (quando não há intenção de matar).
Para o Estado mexicano, as fabricantes de armas norte-americanas têm sido negligentes, motivo pelo qual devem ser condenadas a adotar mecanismos para evitar que suas armas sejam usadas por pessoas não autorizadas ou vinculadas ao crime organizado. Na ação, o governo pede ainda que as empresas financiem estudos, programas e campanhas em meios de comunicação com enfoque no combate ao tráfico ilegal de armas.
“É uma demanda que tem um peso político e simbólico, acima de tudo. Os argumentos da ação são fortes, mas é difícil prever qual será o julgamento. O que sabemos é que, mesmo que a ação seja rejeitada, os efeitos políticos são positivos, de discutir o tráfico de armas produzidas nos Estados Unidos”, diz Carlos Pérez Ricart, professor e pesquisador do Centro de Investigación y Docencia Económicas, o Cide.
Armas são compradas legalmente nos EUA
A socióloga Magda Coss, autora do livro “Tráfico de Armas en México” (“Tráfico de Armas no México”, Grijalbo, 2011), explica que o armamento é comprado legalmente nos Estados Unidos e chega ao México, onde seu comércio é proibido, por meio do contrabando.
“Os cartéis usam cidadãos norte-americanos para adquiri-las. Depois, utilizam-se de mulheres, mães solteiras, idosos e outras pessoas sem antecedentes criminais para atravessá-las para o México pela fronteira, que é larga e porosa, difícil de controlar”, diz.
O resultado é o aumento dos homicídios não apenas entre grupos criminosos e a polícia, mas em toda a sociedade. Nas eleições deste ano, por exemplo, mais de cem políticos foram assassinados no país.
O México é ainda o mais letal do mundo para jornalistas, segundo a organização Repórteres sem Fronteiras. Desde os anos 2000, foram mais de 140 homicídios entre os profissionais da imprensa.
“O narcotráfico e o enfrentamento armado aumentam a presença de armas nas comunidades, e a violência acaba permeando todas as relações cotidianas. Assim, crescem as taxas de violência doméstica, os feminicídios, os suicídios e os acidentes com armas de fogo”, analisa Magda Coss, que é também chefe de gabinete da presidência do Instituto Nacional da Mulher, no México.
Por dia, em média, dez mulheres são assassinadas no país, sendo seis por armas de fogo.
Os fatores da violência no México
Segundo especialistas ouvidos pela CNN, a extensa divisa que México tem com os Estados Unidos, um dos maiores mercados consumidores de drogas do mundo e, ao mesmo tempo, grande produtor de armas, é um desafio para a redução da violência. Mas esses não são os únicos fatores.
Os índices de homicídio também estão relacionados, entre outros aspectos, à desigualdade social e à falta de oportunidades de estudo e trabalho para os jovens.
Por isso é difícil medir o impacto que o avanço da demanda na justiça contra as fabricantes de armas teria sobre a violência no país.
“A violência no México é resultado de uma dinâmica complexa, então não há uma solução única. O que sabemos é que a estratégia adotada pelos governos até agora, baseada no proibicionismo do consumo de drogas e na militarização da segurança pública, é bastante equivocada”, afirma Felipe Sánchez, diretor de pesquisa e política pública na organização civil México Unido Contra a Delinquência.
Ele dá como exemplo a Iniciativa Mérida, uma ação entre Estados Unidos, México e países da América Central que tinha o objetivo de combater o crime organizado e o tráfico internacional de drogas. No acordo, o México recebeu helicópteros, aviões, equipamentos e formação técnica.
O resultado teve efeito inverso ao esperado. Desde 2007, quando o acordo foi assinado, houve um salto nos homicídios no país. “A Iniciativa Mérida está morta. Não funciona”, reconheceu o próprio ministro Marcelo Ebrard Casaubon, em visita em julho aos Estados Unidos.
Para ele, os dois países devem se articular para a criação de um novo programa, dividido em pelo menos três frentes: diminuir o tráfico de armas e drogas, tratar o consumo de droga como um problema de saúde pública e atacar as finanças do crime organizado.
“A solução para a violência no México passa também pelo fortalecimento da polícia civil, com o estabelecimento de protocolos e investigação, porque é preciso investir em uma saída que não seja só disparar. O que sabemos é que o sistema de Justiça está colapsado e mais de 90% dos crimes não são nem denunciados”, afirma Felipe Sánchez.
‘Culpa é do governo mexicano’, dizem fabricantes de armas
Em nota, a National Shooting Sports Foundation (NSSF), uma associação comercial da indústria de armas de fogo nos Estados Unidos, rejeitou as alegações do governo do México de que as empresas têm sido negligentes na produção e comércio de armamento e munições na fronteira. “Todas as armas de fogo vendidas no varejo nos Estados Unidos são comercializadas de acordo com as leis federais e estaduais”, afirma.
Além de dizer que as alegações do Estado mexicano são infundadas, as empresas afirmam que o país vizinho deveria concentrar esforços em levar os narcotraficantes à Justiça. “O governo mexicano é responsável pelo crescente crime e corrupção dentro de suas próprias fronteiras”, disse, em nota, Lawrence G. Keane, vice-presidente sênior e conselheiro geral da NSSF.
A associação ainda argumenta que parte das armas dos cartéis vem de soldados mexicanos que desertaram e de outros países, como China e os da América Central.