Mediterrâneo registra maior número de imigrantes mortos desde 2017
Negligência de países europeus no resgate de embarcações resultou em quase 3.800 mortes em 2022 e 1.935 somente este ano; quadro revela contraste com a megaoperação de busca do submersível Titan, no Atlântico Norte
As autoridades recebem um chamado sobre o desaparecimento de uma embarcação. Em algumas horas, uma equipe é enviada aos locais. Nas horas e dias que se passam, chega o reforço de aviões da Força Aérea local, navios e equipamentos de alta tecnologia para localização dos desaparecidos, como sonares e drones marítimos. As atividades duram vários dias até que os destroços são encontrados.
Esse é um resumo das buscas pelos cinco ocupantes do submersível Titan, que desapareceu durante uma visita aos destroços do Titanic. Uma mobilização dessa grandeza raramente ocorre no Mar Mediterrâneo, que registrou no ano passado o maior número de imigrantes mortos dos últimos cinco anos.
Dados divulgados este mês pelo do Projeto de Migrantes Desaparecidos (MMP) da Organização Internacional para as Migrações (OIM) apontaram que 3.789 pessoas morreram tentando imigrar para países europeus, índice 11% superior ao registrado no ano anterior.
Trata-se do maior número de mortes desde 2017, quando 4.255 mortes foram registradas.
O Mediterrâneo é hoje palco da maior crise migratória do planeta, com dezenas de milhares de pessoas tentando cruzar as águas, a partir do Norte da África e Oriente Médio rumo à Europa em busca de trabalho, vida mais digna ou para fugir de guerras e conflitos armados. A região é responsável por mais da metade do total de 6.877 mortes registradas em todo o mundo pelo MMP.
Esta sempre foi uma região complexa para as autoridades migratórias europeias, já que se trata de uma extensa área banhando vários países e de onde podem aportar navios em diferentes posições. A situação piorou a partir de 2011, quando a violenta guerra civil na Síria fez com que milhões de pessoas deixassem o país.
A maior parte acabou sendo abrigada em campos de refugiados na Turquia, mas um grande continente seguiu pelo Mediterrâneo rumo a alguns dos países europeus, seja para se estabelecerem por lá, seja como uma parada rumo a outros continentes.
Outro país que tem sido um ponto de partida preocupante é o Líbano, que enfrenta uma das maiores crises econômicas de sua história. Segundo o levantamento, ao menos 174 pessoas morreram tentando chegar à Grécia ou à Itália, o que equivale a quase metade do total na rota do Mediterrâneo Oriental. Ainda segundo o MMP, 84% das pessoas que morreram ao longo das rotas marítimas permanecem não identificadas.
Os números são ainda mais assustadores quando vistos a partir de perspectiva de tempo maior. Desde 2014, 56.771 pessoas morreram em todo o mundo tentando imigrar para outro país. Desse total, nada menos que 27.565 perderam sua vida no Mediterrâneo, quase o mesmo número de todas as outras regiões do globo somadas (29.206).
“Nossos dados mostram que 92% das pessoas que morrem nesta rota permanecem não identificadas”, disse Koko Warner, diretor do Global Data Institute que hospeda o MMP. “A trágica perda de vidas em perigosas rotas de migração destaca a importância dos dados e da análise na condução da ação.”
O que torna esses números cada vez maiores é a ação criminosa de agentes de imigração irregular. Eles são responsáveis por muitas das operações de fuga, levando dezenas (às vezes centenas) de imigrantes desesperados em navios superlotados e em condições insalubres. Não raro, as embarcações não possuem nenhum tipo de manutenção e estão sujeitas a panes ou outros problemas durante a travessia.
Outro problema gravíssimo derivado dessa crise migratória é o tráfico de pessoas. Países como Líbia recebem centenas de milhares de pessoas, que passam pelas suas fronteiras como parte da rota até a Europa. Caso não consigam chegar ao continente europeu, são levados e volta e vendidos como escravos, como relevou a CNN em reportagem divulgada no Freedom Project. Segundo a reportagem, 690 mil pessoas aguardam no país a chance de partirem para o outro lado.
“Está claro que a atual abordagem do Mediterrâneo é impraticável. Os Estados precisam se unir e abordar as lacunas na busca e resgate proativos, desembarque rápido e rotas regulares seguras”, criticou Federico Soda, Diretor do Departamento de Emergências da OIM.
Tragédias em grande escala
Se os números de 2022 foram impactantes, os mais recentes acontecimentos mostram que 2023 será tão ou mais mortífero. O IOM informou à CNN que até o dia 22 de junho foram contabilizadas 1.935 mortes nas rotas marítimas para a Europa, sendo que outras 1.051 seguem desaparecidas.
Alguns casos recentes, com um elevado número de mortes, aumenta o temor de que os números deste ano superem os de 2022. No último dia 14, um navio sobrecarregado virou e afundou na costa da Grécia. Ao todo, 104 pessoas foram resgatadas e 81 foram oficialmente dadas como mortas. Mas o governo do Paquistão — país de origem da maioria dos imigrantes — já se pronunciou admitindo que ao menos 300 pessoas morreram na tragédia.
“Este incidente devastador ressalta a necessidade urgente de abordar e condenar o ato abominável de tráfico ilegal de pessoas”, afirmou o presidente do Senado do Paquistão, Muhammad Sadiq Sanjran.
Também em junho houve o desaparecimento de 500 pessoas, incluindo 56 crianças e muitas mulheres grávidas, que estavam em uma embarcação nas proximidades de Malta. Vários dias de buscas se passaram e até agora não houve nenhum registro do navio ou de seus ocupantes.
A imigração dentro das leis
Em tese, os imigrantes contam com o amparo legal para que tenham direito a um resgate e um atendimento digno nos países onde conseguirem chegar. Atualmente a principal carta regulatória sobre o tema é a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, assinada em 1951. Nela, os países signatários se comprometem a oferecer aos refugiados em seu território direitos como trabalho, educação, documentação, liberdade religiosa e livre associação, além de acesso ao sistema jurídico.
Na Europa, no entanto, há algumas diferenças. Os países da Comunidade Europeia possuem o denominado “Sistema Comum Europeu de Asilo”, que uniformiza as práticas de gerenciamento da questão migratória. Ele determina que o responsável por receber e atender a um imigrante é o país onde o solicitante de refúgio entrou.
“No entanto, outros critérios, como a presença de um familiar em outro Estado Membro para menores desacompanhados, pode influenciar na determinação do país responsável pela análise do pedido”, explica à CNN Beatriz Vendramini Rausse, especialista em Direito Europeu.
Segundo ela, os pedidos de refúgio administrativos devem ser examinados em até 6 meses.
Apesar das determinações da lei, vários países da União Europeia buscaram uma flexibilização nestes termos. No último dia 8, os 27 países integrantes finalmente entraram em um acordo que determina que um país do bloco pode abrir mão de receber um refugiado, desde que pague à nação que o receber um valor anual de 20 mil euros por pessoa.
Essa tendência à flexibilização das leis deixa claro que os países europeus não dedicam esforços suficientes para atender aos refugiados e, principalmente, para impedir que morram afogados no Mediterrâneo.
“Este número alarmante de mortes nas rotas de migração dentro e fora da região exige atenção imediata e esforços concentrados para aumentar a segurança e a proteção dos migrantes”, disse Othman Belbeisi, diretor regional da OIM para o Norte da África e Oriente Médio. “A OIM pede maior cooperação internacional e regional, bem como recursos para enfrentar esta crise humanitária e evitar mais perdas de vidas.”
Mais uma vez, vale o comparativo com os esforços para o resgate do submersível Titan. Em menos de dois dias, os aviões da Força Aérea norte-americana fizeram a varredura da superfície do mar em uma área de 30 mil quilômetros quadrados. Essa área equivale a 10% de todo o território da Itália e é maior que a massa marítima que separa a Sardenha da Sicília, as duas maiores ilhas italianas. O que significa que uma atuação ostensiva da aeronáutica por alguns dias seria capaz de identificar dezenas de barcos em poucos dias, antes que eles afundassem.
“Houve vários naufrágios que registramos que supostamente não tiveram nenhuma intervenção anterior de Busca e Resgate do Estado, ou tiveram uma intervenção parcial (atrasos)”, informou o IOM à CNN, respondendo questionamento sobre a atuação dos Estados europeus para impedir a morte em larga escala dos imigrantes no Mediterrâneo.
“Infelizmente normalizamos ver vidas de pessoas pobres, sobretudo de países de maiorias não-brancas, sendo perdidas ou mal tratadas. Sabemos que a relevância dada é menor do que quando tratamos de vidas de pessoas de países ricos, de fenótipo europeu”, comenta à CNN Victor Del Vecchio, advogado de migração e direitos humanos e mestre em direito internacional pela USP.
Ele cita um exemplo recente para ilustrar seu argumento: a recepção aos refugiados ucranianos, que deixaram seu país fugindo da invasão russa. “Eles inegavelmente sofreram muito e sofrem ainda com a guerra, mas receberam acolhida e comoção internacional muito maior do que a vista nos outros conflitos que assolam países mais pobres.”
“A UE deve colocar a segurança e a solidariedade no centro de sua ação no Mediterrâneo, tendo em vista o aumento dos movimentos de refugiados e migrantes”, frisa Gillian Triggs, Alta Comissária Adjunta para Proteção do ACNUR, a agência das Nações Unidas para refugiados. “Isso inclui o estabelecimento de um mecanismo regional acordado de desembarque e redistribuição para as pessoas que chegam por mar, algo que continuamos a defender.”
ONGs x Estados
Para minimizar os impactos causados, muitas entidades não governamentais atuam na região para resgatar imigrantes. A maioria conta com uma ou no máximo duas embarcações, que navegam pelo Mediterrâneo realizando resgate de imigrantes.
Para localizar as embarcações — na maior parte das vezes à deriva após panes nos motores — essas equipes de resgate contam com o apoio do sistema Alarm Phone, que após identificar os navios avisa às ONGs de resgate a sua localização.
O Alarm Phone funciona desde outubro de 2014 e é operado por voluntários da Europa, Tunísia e Marrocos.
O trabalho dessas ONGs é hercúleo. Além de não contarem com apoio dos países europeus, muitas vezes são alvo delas, que buscam por meios jurídicos coibir suas atividades.
Um caso emblemático é o da Itália, que aprovou em fevereiro desse ano uma lei — chamada Decreto Piandosi — que dificulta o resgate de refugiados. Conforme a nova legislação em vigor, as embarcações das ONGs podem realizar somente um resgate de cada vez.
Em maio, o navio Sea Eye 4 foi enquadrado na lei após realizar dois salvamentos simultâneos. No dia 29, as equipes haviam salvo 17 pessoas que estavam em um navio de pesca e se dirigiram para o porto de Ortona, quando localizaram outra embarcação em perigo e realizou o resgate de outros 32 imigrantes. O prêmio pelas ações heroicas foi uma multa de 3 mil euros e a suspensão das atividades por 20 dias.
“Consideramos essa punição um escândalo. Serve apenas para dissuadir e criminalizar os navios de salvamento — que tentam intervir da forma mais eficaz possível onde as guardas costeiras estatais da UE produziram deliberadamente um vazio muitas vezes mortal durante anos”, criticou as entidades Sea Watch e Alarm Phone, em nota conjunta.