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    Livro recém-lançado conta a história da expansão da Otan

    De olho na crise que o mundo acompanha, na fronteira da Rússia com Ucrânia, autora Mary Sarotte chama atenção para o passado onde estão as raízes desse conflito

    Faixas com o logo da Otan na sede da entidade, em Bruxelas
    Faixas com o logo da Otan na sede da entidade, em Bruxelas Divulgação

    Heloisa Villelada CNN

    Nova York

    Anotações de reuniões históricas, livros de memórias e entrevistas com personagens que tiveram nas mãos o destino de crises diplomáticas com repercussões mundiais. Tudo isso faz parte do trabalho cuidadoso da professora Mary Elise Sarotte, pesquisadora do Centro de Estudos Europeus da Universidade Harvard, nos Estados Unidos.

    Em novembro do ano passado ela publicou um livro que não poderia ter chegado às livrarias em momento mais oportuno. “Not one inch”, ou “Nem Mais Uma Polegada”, em tradução livre, conta a história da expansão do Tratado do Atlântico Norte, a Otan, depois da queda do muro de Berlim, em novembro de 1989. De olho na crise que o mundo agora acompanha atento, na fronteira da Rússia com Ucrânia, Mary Sarotte chama nossa atenção para o passado onde estão as raízes desse conflito.

    Quando o muro foi derrubado, o governo da Alemanha queria reunificar o país o quanto antes. “O problema é que quando a Alemanha nazista se rende, no fim da Segunda Guerra Mundial, os poderes vitoriosos –União Soviética, Grã Bretanha e França– passaram a ter direitos legais e tinham tropas no país também. A União Soviética tinha 380 mil soldados estacionados na Alemanha Oriental. Para a Alemanha se reunificar, era preciso retirar as tropas. Na Alemanha Ocidental, eram tropas da Otan. Mas no leste eram tropas do Pacto de Varsóvia, impostas ao país. A questão era como convencer a União Soviética a se retirar do leste da Alemanha.

    Americanos e alemães se reuniram várias vezes para pensar em saídas. Em uma das sessões, a portas fechadas, o então secretário de Estado, James Baker, perguntou: e se prometessem ao então presidente Mikhail Gorbatchev que a Otan não moveria sequer uma polegada para o leste, ou seja, não incorporaria países do Leste Europeu ao tratado? “Ele disse assim, com uma interrogação no fim, de forma especulativa. Está lá nas anotações dele, que eu li”, diz Mary Sarotte. Os alemães gostaram da ideia e, em uma reunião com Gorbatchev, apresentaram a sugestão. Gorbatchev viu com bons olhos mas nada foi acertado, sacramentado ou transferido para uma folha de papel. Nada de preto no branco.

    Ainda assim, os alemães saíram da reunião e anunciaram o início da unificação monetária e econômica da Alemanha. Ela diz que Gorbatchev ficou horrorizado, achou o anúncio muito arrogante porque nada estava acertado. “O chanceler alemão Helmut Khol estava adotando medidas práticas e Gorbatchev não tinha nada por escrito. É por isso que agora vemos a Rússia tão fixada em ter tudo por escrito”, diz. Durante todo o processo de negociação entre Rússia, Estados Unidos e Otan, essa tem sido uma constante. A Rússia só aceita avançar com propostas concretas, apresentadas por escrito. “Eles se lembram desses eventos, especialmente o presidente Vladimir Putin, com muita amargura”, diz Mary Sarotte.

    Mas, voltando ao passado, na hora de acertar a retirada das tropas, o documento final não incluía absolutamente nada a respeito de limites para a expansão da Otan. “A União Soviética estava em uma situação econômica terrível. O país estava a ponto de desmoronar, o que aconteceu em 1991. O Ocidente ofereceu a Gorbatchev ajuda financeira da ordem de bilhões em marcos. Gorbatchev decidiu que era mais importante pegar o dinheiro e seguir em frente do que continuar brigando pela questão da Otan, apesar de saber o que estava em jogo”.

    E não demorou para o tabuleiro das alianças começar a mudar. Nos Estados Unidos, o então presidente, Bill Clinton, tinha a preocupação de não provocar atritos com a Rússia.

    “O presidente Clinton disse a seus assessores e conselheiros: considerando que a Guerra Fria terminou faz pouco e acabamos de apagar a linha que dividia a Europa, por que vamos desenhar uma nossa linha?”, conta a professora.

    Clinton se referia justamente ao avanço da Otan na direção da Rússia. Ele achava mais apropriado e começou a implantar o programa chamado Parceria para a Paz. Uma afiliação mais frouxa que não oferecia a cláusula-chave com a qual os integrantes da Otan contam. O capítulo 5, que diz: o ataque a um é um ataque a todos. Sem essa cláusula, nenhuma associação entre os países ameaçaria a Rússia. Mas Clinton mudou de ideia no segundo ano de mandato, quando os republicanos tomaram o Congresso com um movimento forte que exigia, entre outras coisas, que os Estados Unidos estendessem o capítulo 5 aos países do Leste Europeu o mais rápido possível.

    Em nome da política interna, Clinton muda de ideia e o então secretário de Defesa, William Perry, quase pede demissão. Nas anotações de Perry, que Mary Sarotte leu, fica bem claro o desespero do ex-secretário. Quando a União Soviética se dissolveu, uma das grandes preocupações do Ocidente era com as armas nucleares, espalhadas por vários territórios. A Ucrânia, por exemplo, se tornou, de imediato, a terceira potência atômica do mundo. E o trabalho de Perry era desmontar esse arsenal ou fazer com que ele se concentrasse em apenas um país: a Rússia.

    Perry ficou desesperado, argumentou com Clinton, lembrou que já haviam feito muito progresso e não podiam arriscar a segurança dos americanos e do mundo. Mas não houve jeito de dissuadir o presidente. E Perry disse a Mary Sarotte que devia ter entregado o cargo naquele momento.

    A Ucrânia não tem mais armas nucleares mas ainda é, na visão da Rússia, a última fronteira. Um marco. E Putin não tem a menor intenção de ver o país se juntar às potências do Ocidente.