Invasão ao Capitólio faz dois anos em meio a crise na Câmara dos EUA
Aniversário de dois anos da invasão do Capitólio e impasse em votação para presidente da Câmara dos Estados Unidos marcam impasse sem precedentes na história americana
O segundo aniversário da invasão do Capitólio coincide com um impasse sem precedentes — desde a Guerra Civil Americana — na eleição do presidente da Câmara dos Deputados, e um caos no Partido Republicano (GOP). Qual a ligação entre esses dois eventos, e o que eles revelam sobre o futuro da democracia americana, do GOP e do ex-presidente e candidato Donald Trump?
Um grupo de 21 deputados republicanos, pertencente à chamada Bancada da Liberdade, impediu a eleição do líder do partido na Câmara, Kevin McCarthy, para a presidência da Casa. O impasse superou a marca das nove votações, necessárias em 1923 para preencher o cargo.
Na outra grande crise, em 1856, foram 133 votações, ao longo de dois meses. Mas na época haviam quatro partidos na Câmara, além de facções internas representando republicanos e democratas do Norte e do Sul do país.
Depois da Guerra Civil, instalou-se na prática o bipartidarismo, que torna o processo mais simples: a bancada majoritária elege o presidente da Câmara, e a minoritária, o líder da oposição.
No dia 6 de janeiro de 2021, o então presidente Donald Trump conclamou milhares de seguidores, parte deles armada, a ir para o Capitólio impedir a certificação da vitória eleitoral de Joe Biden.
Na atual crise, um décimo da bancada republicana de 222 deputados impediu a eleição de seu líder, que contava com o apoio dos outros 201. São necessários 218, a menos que abstenções reduzam o número de votantes.
A invasão do Capitólio foi um crime, pelo qual respondem mais de 900 pessoas, incluindo o próprio Trump. Já a recusa dos 21 rebeldes em eleger Kevin McCarthy não fere a lei. É o que os americanos chamam de “hard ball”, um chute que não viola as regras do jogo mas cuja intenção não é marcar um gol, mas atingir o adversário.
Nos dois casos, é a minoria tentando se impor sobre a maioria. É também um impulso de criar o caos, de enfraquecer as instituições e desacreditar a própria democracia.
Ao defender seus diferentes candidatos a presidente da Câmara (incluindo Trump), os deputados afirmaram que “Washington”, o Congresso ou o “sistema” estão falidos. Da mesma forma como Trump dizia, na campanha de 2016, que era preciso “drenar o pântano”, referindo-se à capital americana.
São discursos que ressoam nos sentimentos de muitos americanos, que sentem que os políticos fazem acordos e usam o governo em benefício próprio. A negociação, que é a base da democracia, torna-se portanto algo sujo, uma traição ao povo.
Em todos os discursos, os rebeldes atacaram a forma como as dotações de verbas federais são votadas, por acordos de líderes, sem debate público. Entretanto, depois que McCarthy aceitou a exigência deles de voltar a votar o orçamento nas comissões setoriais, e não mais em “pacotes-ônibus”, que abarcam todas as áreas, nenhum dos 21 votos virou a seu favor.
O líder republicano fez duas outras concessões que o privariam drasticamente de poder. Ele se comprometeu a não financiar mais campanhas nas primárias republicanas, com as doações do Super PAC, o principal comitê de arrecadação do partido, por ele controlado. Os trumpistas o acusam de direcionar os recursos para pré-candidatos moderados.
McCarthy também aceitou reduzir para apenas um deputado o mínimo necessário para apresentar um pedido de destituição do presidente da Câmara. Pela regra atual, é preciso metade mais um de toda a Câmara, ou seja, 218.
Eram exigências dos rebeldes, mas, mesmo depois de atendidas, eles não cederam. Dois deputados republicanos que apoiam McCarthy disseram à CNN que é “impossível negociar com terroristas”, referindo-se à percepção de que o único objetivo dos rebeldes é semear o caos. “Terrorismo” também foi um termo empregado para descrever a invasão do Capitólio.
Trump fez um apelo na manhã de quarta-feira (4) para que eles votassem em McCarthy, depois de conversar com o líder por telefone.
“Conversas muito boas ocorreram ontem (terça-feira) à noite, e agora é hora de nossos grandes membros republicanos da Câmara votar em Kevin, encerrar a questão, assumir a vitória. Republicanos, não transformem um grande triunfo em uma derrota gigantesca e constrangedora”, exortou, referindo-se às eleições de novembro, que deram maioria ao partido na Câmara.
O apelo não mudou um voto sequer, embora a Bancada da Liberdade se identifique com Trump. Dos 21 deputados, 16 tiveram apoio de Trump nas primárias do partido, segundo levantamento da CNN. O episódio, portanto, acabou por reduzir a percepção de poder em torno do ex-presidente, da mesma forma como tem ocorrido a partir da invasão do Capitólio.
Uma comissão especial da Câmara, dominada pelos democratas, que antes tinham maioria na Casa, apresentou um relatório das investigações da invasão, que acusa Trump de quatro crimes, incluindo insurreição. Um procurador independente designado pelo Departamento de Justiça, que já investigava três possíveis crimes, recebeu o relatório de 845 páginas, com mais de mil depoimentos.
O impasse na eleição do presidente impediu o início dos trabalhos na Câmara e pode reforçar em muitos eleitores conservadores a fadiga em relação à instabilidade causada pelo radicalismo de direita. Essa fadiga começou com a recusa de Trump em aceitar a derrota eleitoral, que culminou em suas pressões a funcionários eleitorais dos estados para alterar a contagem dos votos e na invasão do Capitólio.
A frustração com as atitudes de Trump foi expressa nas eleições de 2018, quando os republicanos perderam a maioria no Congresso; de 2020, quando o presidente não conseguiu se reeleger; e de 2022, quando os democratas mantiveram a maioria no Senado e muitos candidatos trumpistas não se elegeram.
Além de Trump, o próprio Partido Republicano tem sofrido com essa atuação dos radicais de direita, que afugenta eleitores moderados, que historicamente oscilam entre os dois partidos.
Nos últimos dias, os democratas não esconderam o quanto estavam se divertindo com o caos republicano, e não atenderam aos pedidos para se abster na votação, e assim reduzir o número de votos necessário para a eleição do presidente. Afinal, como disse Napoleão Bonaparte: “Nunca interfira quando seu inimigo está cometendo um erro”.