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    Franceses lembram 60 anos de cessar-fogo de guerra contra Argélia

    Em discurso no Palácio do Eliseu, o presidente Emmanuel Macron destacou a necessidade de um “trabalho sobre a verdade” referente à História

    Daniela Fernandes da Costacolaboração para a CNN , em Paris

    Sessenta anos após a assinatura dos acordos de Évian, que permitiram um cessar-fogo na guerra entre a França e a Argélia e levaram à independência dessa ex-colônia do norte da África, esse conflito sangrento ainda divide a sociedade francesa.

    A França, considerada o berço dos direitos humanos por ter criado a primeira declaração, em 1789, que se tornou depois universal, praticou de maneira sistemática a tortura contra a população argelina durante a guerra, que durou mais de sete anos, de 1954 a 1962. Também houve grande violência por parte das forças francesas no período da colonização, iniciada em 1830.

    O número de vítimas argelinas durante a guerra é objeto de divergências. A França estima entre 250 mil e 400 mil pessoas, a maior parte combatentes da Frente de Libertação Nacional (FLN), enquanto o Estado argelino avalia que houve até 1,5 milhão de mortos.

    Em um discurso no Palácio do Eliseu neste sábado (19), durante uma cerimônia para celebrar o 60° aniversário dos acordos que permitiram encerrar a guerra na Argélia, o presidente Emmanuel Macron destacou a necessidade de um “trabalho sobre a verdade” referente à História. “Não podemos correr o risco de deixar a História ser falsificada”. Ele lembrou que a atual guerra na Ucrânia “é baseada na construção e falsificação da história contemporânea da região.”

    A guerra da Argélia se inseriu num movimento de descolonização que afetou os impérios ocidentais após a Segunda Guerra. Em 1954, quando começou a guerra nessa colônia, a França havia acabado de perder uma batalha histórica na Indochina, que levou a retirada dos franceses do atual Vietnã.

    Essa derrota francesa na Indochina foi um encorajamento para outros povos colonizados e os argelinos desencadearam em 1954 uma insurreição para obter a independência. Especialistas apontam que o exército francês usou a tortura como arma de guerra na Argélia.

    Antes mesmo do início do conflito, as forças armadas francesas já haviam realizado massacres na Argélia. O mais conhecido foi o de Sétif, uma repressão violenta contra um levante realizado por movimentos nacionalistas e anticolonialistas ocorrido em 8 de maio de 1945, data que marca o fim da Segunda Guerra.

    Como resposta à morte de dezenas de europeus, uma reação dos argelinos ao assassinato de um jovem manifestante pela polícia francesa em Sétif, o exército da França atacou civis e bombardeou vários vilarejos, que ficaram totalmente destruídos.

    Para a França, nos anos 50, a perda eventual da Argélia, que era como um departamento da França, onde havia uma grande população francesa residente, afetaria o seu status de grande potência. Sua localização, entre a África negra e o Oriente Médio, era uma peça-chave para a França em termos geopolíticos. A contribuição econômica da colônia, durante muito tempo limitada a uma agricultura dinâmica, ganhou grande impulso com a descoberta, em 1951, de jazidas de petróleo e gás.

    Até o final dos anos 90, o Estado francês designava a guerra da Argélia como “operação para manter a ordem”. Durante décadas, o assunto não era praticamente comentado nas escolas francesas. Até hoje ainda há críticas sobre a falta de uma visão mais aprofundada sobre esse conflito nos currículos escolares.

    Uma pesquisa realizada pelo instituto Harris Interactive para as revistas Historia e Challenges – divulgado por ocasião dos 60 anos dos acordos de Évian e da Independência da Argélia, celebrada em julho – mostra como até hoje esse conflito e também o período colonial da França são vistos nos diferentes segmentos da sociedade francesa.

    Segundo a pesquisa, 86% dos franceses consideram que a guerra para a independência da Argélia foi marcada por crimes cometidos tanto por franceses quanto por argelinos. Apenas 3% avaliam que somente os franceses são responsáveis pelas violações praticadas.

    Argélia: Manifestantes depositam flores na Praça Chatelet, em Paris, durante uma manifestação realizada para marcar o 60º aniversário do massacre de 17 de outubro de 1961 em Paris
    Argélia: Manifestantes depositam flores na Praça Chatelet, em Paris, durante uma manifestação realizada para marcar o 60º aniversário do massacre de 17 de outubro de 1961 em Paris / Anadolu Agency/Getty Images (17.out.2021)

    A grande maioria dos franceses (65%) avalia que a independência da Argélia foi algo positivo para a França e também para a Argélia. Como a visão dos franceses varia em função da idade e da tendência política das pessoas, os mais jovens e apoiadores de partidos de extrema esquerda são ainda mais numerosos a pensar que isso foi benéfico para os dois países. No início dos anos 90, os franceses estavam mais divididos: 51% estimavam que a independência representava algo bom especificamente para a Argélia.

    Boa parte dos franceses considera que os que mais sofreram nessa guerra são os franceses de origem argelina e os franceses com ascendência europeia que estavam instalados nessa ex-colônia até a independência, além dos chamados “harkis”, os argelinos muçulmanos que lutaram no exército francês contra seu país.

    Na época, a França não quis repatriar os harkis, o que também foi considerado um ato de violência. Muitos deles foram assassinados na Argélia por terem se juntado às forças francesas. Apenas 24% dos franceses acham que quem mais sofreu nessa guerra foi a população argelina, segundo a pesquisa.

    Os benefícios da colonização da Argélia também dividem fortemente a sociedade francesa: 51% consideram que foi algo positivo para esse país. Mas esse número vem caindo desde os anos 90, quando 59% tinham essa opinião. “Progressivamente, os franceses têm se mostrado mais críticos em relação ao período colonial”, aponta o instituto de pesquisa Harris Interactive.

    Muitos dos argelinos que emigraram para a França após o fim da guerra foram parar em conjuntos habitacionais nas periferias das grandes cidades, como Paris, que hoje enfrentam problemas de violência e forte desemprego. Muitos de seus descendentes, jovens com nacionalidade francesa, afirmam não ter tido os meios necessários para se integrar à sociedade e se sentem vítimas de racismo. Eles têm uma visão bastante crítica em relação à colonização e ao conflito e, de maneira geral, à maneira como os muçulmanos são vistos no país.

    Analistas apontam que a chegada à França de argelinos durante e após a guerra alimentou em uma parcela da população francesa o racismo contra árabes que perdura até hoje em alguns segmentos da sociedade.

    Em 2017, quando ainda era candidato à sua primeira eleição presidencial, o presidente Emmanuel Macron qualificou, durante uma visita a Alger, a colonização como “crime contra a humanidade” e “barbárie”.

    “Hoje é uma etapa, é também um caminho imperfeito, mas é um percurso de reconhecimento que consistiu em pôr fim a negações e silêncios”, declarou neste sábado o presidente Macron em uma cerimônia que marca os 60 anos dos acordos de Évian.

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