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    “Eu não quero matar”: lei de recrutamento obrigatório desperta medo em jovens de Mianmar

    Jovens buscam vistos para outros países ou saída de forma ilegal de Mianmar e outros ponderam adesão às forças de resistência

    Helen ReganSu ChayAngus Watsonda CNN

    Anna acorda cerca de quatro vezes por noite com pesadelos em que é enviada para a linha de frente de uma guerra sangrenta e forçada a lutar.

    É uma perspectiva aterradora que poderá se tornar realidade para Anna e milhões de outros jovens em Mianmar, depois que a junta militar ativou uma lei de recrutamento obrigatório para todos os jovens, homens e mulheres.

    “Estamos em pânico e considerando uma forma de escapar”, disse Anna, educadora de cerca de 20 anos de idade que mora no sul do país. Ela pediu para usar um pseudônimo para proteger a sua segurança. “Acho que não posso continuar morando em Mianmar”.

    Três anos depois de um golpe sangrento, a junta militar de Mianmar enfrenta o maior desafio ao seu frágil controle do poder, enquanto luta para combater uma resistência armada nacional em múltiplas frentes em todo o país do sudeste asiático.

    O anúncio surpresa da junta de que está tentando reforçar as suas forças armadas com o serviço obrigatório provocou uma corrida dos jovens para obter vistos para sair do país.

    Vídeos compartilhados nas redes sociais mostram longas filas de pessoas segurando documentos na embaixada da Tailândia na maior cidade de Mianmar, Yangon.

    Jovens disseram à CNN que estão lutando para descobrir como evitar serem enviados para quartéis, com alguns planejando estratégias de saída precipitadas – ilegais, se necessário – de Mianmar ou ponderando deixar suas casas e famílias para se juntar às forças de resistência que pegaram em armas contra os militares.

    Segundo a lei, todos os homens com idade entre 18 e 35 anos e mulheres com idade entre 18 e 27 anos são obrigados a servir por até dois anos sob comando militar. Especialistas como médicos de até 45 anos devem servir por três anos.

    A evasão ao recrutamento é punível com três a cinco anos de prisão e multa.

    Analistas dizem que a lei, que está em vigor desde antes do regime militar em 2010, mas não promulgada até agora, forçará uma geração jovem a lutar contra o seu próprio povo e poderá ser usada para justificar abusos dos direitos humanos.

    Poderia também resultar em uma maior instabilidade regional, provocando um êxodo em massa de pessoas que fogem do recrutamento para os países vizinhos, disseram.

    Alguns dizem que o recrutamento é um esforço desesperado dos militares para aumentar suas fileiras esgotadas pela morte e deserções.

    General Min Aung Hlaing de Mianmar / 23/6/2021 Alexander Zemlianichenko/Pool via REUTERS

    “Embora ferida e cada vez mais desesperada, a junta militar de Mianmar continua extremamente perigosa”, disse Tom Andrews, relator especial das Nações Unidas para os direitos humanos em Mianmar, em nota.

    “As perdas de tropas e os desafios de recrutamento tornaram-se ameaças existenciais para a junta, que enfrenta ataques vigorosos nas linhas da frente em todo o país.

    À medida que a junta força homens e mulheres jovens a ingressarem nas fileiras militares, redobrou os seus ataques a civis utilizando arsenais de armas poderosas”.

    “Não temos outra escolha”

    As forças armadas de Mianmar foram enfraquecidas por uma coordenação sem precedentes entre organizações étnicas armadas e grupos de resistência conhecidos como Forças de Defesa Popular, dizem os analistas.

    Esses grupos, que apoiam o Governo de Unidade Nacional no exílio, e os exércitos rebeldes étnicos assumiram o controle de centenas de cidades fronteiriças estratégicas, posições militares importantes e rotas comerciais vitais desde o lançamento de uma ofensiva em outubro passado.

    A análise do Instituto da Paz dos Estados Unidos sugere que os militares têm apenas cerca de 150 mil efetivos, incluindo 70 mil soldados de combate – “mal capazes de se sustentarem como força de combate” – e perderam pelo menos 30 mil soldados desde o golpe.

    O ministro da Defesa, almirante Tin Aung San, disse que os militares têm capacidade para recrutar até 50 mil pessoas por ano e os recrutas “receberão salários, mantimentos e direitos de acordo com seus ranqueamentos e qualificações”, de acordo com a estatal Global New Light of Myanmar.

    As pessoas que foram temporariamente isentas do serviço militar – aquelas por motivos médicos, funcionários públicos, estudantes e cuidadores – devem voltar a servir mesmo que tenham ultrapassado a idade do serviço militar, disse Ting Aung San, segundo o jornal.

    Veteranos também poderiam ser convocados, informou o Global New Light.

    Policial militar de Mianmar
    Militar patrulha rua em Mianmar após golpe em 2020 / Foto: Reuters

    O porta-voz da junta, Zaw Min Tun, disse que cerca de 13 milhões de jovens seriam elegíveis para recrutamento, sendo 60 mil homens os primeiros a serem recrutados a partir de abril. Há poucos detalhes sobre como eles seriam convocados – e que treinamento receberiam para lutar.

    Os jovens com quem a CNN falou têm medo de que os recrutas sejam enviados para a linha da frente – em terrenos montanhosos e de selva – sem formação adequada.

    “As pessoas sabem com certeza que não importa o que esteja escrito na lei de recrutamento, elas terão que ir para a linha de frente. Isso é algo de que todas as pessoas no país têm certeza”, disse Kyaw Naing, 28 anos, um professor da região de Yangon que pediu para usar um pseudônimo para sua segurança.

    Aung Myo Min, ministro dos direitos humanos do governo paralelo no exílio, disse ter recebido relatos de deserções em massa para as Forças de Defesa Popular, com alguns soldados abandonando os militares porque “não têm comida suficiente e são forçados a assumir uma posição para lutar contra civis”.

    Alguns desses ex-soldados disseram ao Governo de Unidade Nacional que o poder militar enfraqueceu e que precisa desesperadamente de recrutas, segundo Aung Myo Min.

    Mas tanto Anna como Kyaw Naing dizem que se recusarão a se juntar aos militares. Anna disse que não tem dinheiro nem contatos para comprar um visto para sair do país e teme que a junta monitore os aeroportos, detenha os maiores de idade e os prenda.

    Seus pais pediram que ela fugisse o mais rápido possível, mas isso significa encontrar uma maneira de cruzar ilegalmente a fronteira para a Tailândia. “Todas as informações no Facebook nesse momento são sobre como escapar desse país”, disse Anna.

    “Da minha parte, tentarei fazer o máximo possível para escapar, mas se não, irei me juntar (às Forças de Defesa Popular)”, disse. “Parece que não temos outra escolha”.

    Soldados do lado de fora do Banco Central de Mianmar durante protesto em Yangon
    Soldados do lado de fora do Banco Central de Mianmar durante protesto em Yangon contra golpe militar / Reuters (15.fev.2021)

    A vizinha Tailândia provavelmente seria o país de escolha para muitos daqueles que decidem fugir.

    O Ministério das Relações Exteriores da Tailândia disse à CNN na segunda-feira (19) que sua embaixada em Yangon experimentou um “aumento no número de cidadãos de Mianmar solicitando vistos tailandeses nos últimos dias” e estava implementando um sistema de tokens para processar 400 candidatos por dia.

    Embora a Tailândia tenha acolhido cidadãos de Mianmar que fogem de conflitos durante décadas em campos de deslocados ao longo da fronteira, não ratificou a Convenção dos Refugiados de 1951 e considera aqueles que fogem da perseguição como imigrantes ilegais, que enfrentam prisão e potencial deportação.

    Relatos de sequestros e prisões

    Para Kyaw Naing, fugir para a Tailândia não é uma opção, pois ele é o único sustento da família e cuida dos pais idosos. “Se eu sair, não haverá ninguém para cuidar deles. Eu só tenho que sobreviver”, disse ele.

    Kyaw Naing diz que parou de sair à noite com medo de ser preso e mandado para o quartel. “Meus pais têm medo de que eu possa ser sequestrado pela polícia e pelos soldados quando estou voltando do trabalho para casa, ou quando saio com meus amigos, ou mesmo quando saio para jogar lixo na lata na rua”, disse Kyaw Naing.

    Mesmo antes do anúncio da lei do recrutamento obrigatório, os meios de comunicação locais relataram um aumento nas detenções de jovens em diversas vilas e cidades e de veículos militares que pegavam pessoas na rua.

    Há também relatos de dezenas de jovens detidos em aeroportos no oeste do estado de Rakhine nos últimos dias, sem explicação oficial.

    A CNN não pode verificar os relatos de forma independente e entrou em contato com os militares para comentar.

    Khin Ohmar, fundadora e presidente da Progressive Voices, uma organização de pesquisa e defesa dos direitos humanos de Mianmar, disse que a lei do recrutamento “fornecerá à junta cobertura legal para práticas abusivas de recrutamento forçado – pegando homens e mulheres jovens, especialmente os desprivilegiados e empobrecidos, incluindo menores, de pontos de ônibus e fábricas nas cidades”.

    Maung Nyein, 32 anos, vive e trabalha em Yangon e se preocupa com a forma como a sua esposa e filha de 8 anos irão lidar se ele for forçado a servir.

    “Em Myanmar, os jovens já não estão seguros”, disse Maung Nyein, que também solicitou a utilização de um pseudônimo por razões de segurança. “Se você for forçado a ingressar no exército, há muitas coisas com que se preocupar”.

    Líder rebelde Maung Saungkha na selva de Mianmar / Exército de Liberação do Povo Bramá/Handout via REUTERS

    A perspectiva de ser forçado a lutar e matar os seus compatriotas o aterroriza. “Em outros países, essa lei serve para treiná-lo em caso de invasão de outro país, mas aqui há uma guerra civil. Isso é para forçar vocês a se matarem”.

    A CNN entrou em contato com o porta-voz militar de Mianmar para comentar, mas não recebeu resposta.

    O Ministério da Imigração e População da junta afirmou em nota que “não há restrições às licenças no exterior” e que os aeroportos internacionais e os pontos de entrada e saída com os países vizinhos “estão funcionando normalmente”, de acordo com a Global New Light.

    A junta também negou que as suas “forças de segurança e organizações administrativas estejam recrutando jovens para treino militar e prendendo transeuntes”, chamando de “desinformação” espalhada por “mídias maliciosas”.

    Trabalho forçado já está acontecendo

    Os militares de Mianmar têm uma longa e documentada história de utilização de civis como escudos humanos ou de recrutamento forçado para trabalhar no exército, seja como carregadores – transportando equipamento militar de e para as linhas da frente – ou executando a tarefa arriscada de remoção de minas terrestres dos campos.

    Uma grande preocupação é que a lei seja usada pelos militares para legalizar essa prática.

    Um relatório da comissão de inquérito da Organização Internacional do Trabalho, feito em outubro de 2023, concluiu que desde o golpe, a junta militar de Mianmar “continua exigindo diferentes tipos de trabalho forçado no contexto do conflito armado, bem como o recrutamento forçado para o exército”.

    Wing Ko, um agricultor de Shwebo, na região central de Sagaing, disse que foi recrutado à força para trabalhar para os militares durante três meses em 2023.

    “Um dia, quando eu estava na minha tenda, uma tropa militar me pegou e me levou para carregar suas roupas e armas”, disse Wing Ko à CNN, usando um pseudônimo por segurança. “Depois disso, fui forçado a andar o dia todo com as coisas deles”, disse ele. “Houve dias em que não consegui comer e beber”.

    Ele diz que foi um dos 42 homens, a maioria com mais de 50 anos e o mais jovem com apenas 16 anos, que foram levados à força pelas tropas da junta das suas aldeias.

    “Se conhecêssemos as áreas, seríamos obrigados a andar na frente deles para que não se arriscassem a pisar em minas terrestres”.

    Soldados de Mianmar se movimentam em patrulha das ruas em Yangun, Mianmar / 15/02/2021 REUTERS/Stringer

    Wing Ko disse que aqueles que tentaram escapar foram baleados e mortos. A CNN não pode verificar a informação de forma independente.

    “Nunca pensei que veria minha família novamente. Quando cheguei em casa, senti como se tivesse voltado da morte”, disse ele.

    Maung Aye, também da região de Sagaing, disse que seis pessoas da sua aldeia foram levadas pelos militares em junho do ano passado e forçadas a transportar roupas e armas. Ele disse que não há como seus vizinhos se juntarem a eles de boa vontade.

    “Os nossos aldeões não se juntarão às forças militares nem abandonarão o país; em vez disso, nos juntaremos às nossas forças de resistência. Não deixarei que os meus filhos sejam levados pelos militares, em vez disso prefiro arriscar que se juntem (às Forças de Defesa Popular) pelo bem da revolução”, disse Maung Aye, que também usou um pseudônimo por segurança.

    Impacto em milhões de jovens

    O recrutamento não visa apenas aumentar o número de tropas, dizem analistas e defensores dos direitos humanos, mas também um meio de desmantelar o poderoso movimento de resistência democrática que só ganhou força desde o golpe.

    “A decisão da junta de aplicar agora a lei do recrutamento é também uma forma de remover da população civil os jovens que lideravam a Revolução da Primavera e colocá-los em posições onde é provável que sejam mortos ou matem os seus semelhantes”, afirmou Khin Ohmar.

    A lei permitiria o florescimento da corrupção, da extorsão e do crime e poderia exacerbar a fuga de cérebros que já viu muitos jovens deixarem Mianmar, impactando a educação e o mercado de trabalho, o que “causaria devastação total ao país”, disse ela.

    Aqueles que são muito jovens para serem recrutados já estão sentido o peso da lei.

    “Hoje, uma de minhas adolescentes me perguntou se todas as lições que ela está aprendendo agora nas aulas ainda serão úteis para sua vida no futuro, caso ela tenha que ir para a linha de frente”, disse Kyaw Naing sobre seus alunos.

    “Fiquei profundamente triste com isso”.

    Kyaw Naing diz que se juntaria à resistência se fosse confrontado com o recrutamento. Mas ele se ofereceria para ensinar a segurar uma arma. “Não quero matar pessoas”, disse ele. “Mas se a situação me obrigar a fazê-lo, terei que fazê-lo. Não terei escolha”.

    * Com informações de Kocha Olarn, da CNN.

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