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    Entenda a crise provocada pelo golpe militar em Mianmar

    Após as eleições gerais de 2020, vencidas pelo partido Liga Nacional pela Democracia, país asiático viveu um golpe de Estado

    Renato Barcellos, da CNN, em São Paulo

    Após as eleições gerais de 2020, vencidas pelo partido Liga Nacional pela Democracia, Mianmar foi palco de um golpe de Estado. Em 1º de fevereiro de 2021, os militares do país alegaram fraude eleitoral e decretaram estado de emergência por um ano, fechando, assim, o Senado e o Parlamento.

    Já com o processo do golpe em curso, o exército de Mianmar prendeu alguns dos principais líderes do país, como o presidente, Win Myint, e a conselheira do Estado, Aung San Suu Kyi, ganhadora do Nobel da Paz em 1991.

    Mianmar fica localizada no sudeste da Ásia e faz fronteira com China, Laos, Tailândia, Índia e Bangladesh. O país tem cerca de 56 milhões de habitantes e até 1989 chamava-se Birmânia, o mesmo nome de uma etnia. O regime militar que governava na época quis agradar outros povos e mudou o nome do país para o atual.

    Após quase 50 anos de ditadura, Mianmar vivia uma fase democrática desde 2011. De lá para cá, eleições para o Parlamento e outras reformas foram implementadas. Nas eleições realizadas em novembro de 2020, a Liga Nacional pela Democracia, partido de Suu Kyi, obteve uma vitória esmagadora e angariou 346 cadeiras no Parlamento, vencendo 83% dos cargos em disputa. Assim que tomassem posse, os novos parlamentares aprovariam um novo governo.

    No entanto, a oposição, apoiada pelos militares, alegou fraude eleitoral e se recusaram a aceitar o resultado obtido nas urnas. Já na iminência de um golpe de estado, cercaram com soldados os prédios do parlamento. Mesmo sem provas, a suposta fraude foi pretexto de um comunicado que previa o estado de emergência por um ano.

    De acordo com coordenador acadêmico do Núcleo de Estudos e Negócios Asiáticos da ESPM/São Paulo e coordenador do Grupo de Estudos sobre Ásia da Universidade de São Paulo (GEASIA/USP), Alexandre Uehara, a derrota nas urnas surpreendeu e assustou os militares.

    As Forças Armadas tinham o interesse que o Partido União de Solidariedade e Desenvolvimento (USDP), mais próximo aos militares e que vinha conduzindo a abertura no país, se mantivesse com mais força política.

    Por causa dessa derrota acachapante, o USDP contestou os resultados das eleições e os militares aproveitaram para também questionar e praticar o golpe

    Prof. Alexandre Uehara

    Ainda segundo Uehara, os militares não perderam espaço após as eleições, uma vez que a Constituição de 2008 garante 25% das cadeiras do Parlamento ao exército, além do controle de três dos mais poderosos ministérios: Interior, Defesa e Fronteiras.

    “Despois que os militares tomaram o poder em 1962 com golpe de Estado, o país não teve mais uma democracia plena. Mesmo após as eleições de 2015 quando a oposição ganhou as eleições, os militares detinham uma presença política importante no país”, ressalta.

    O golpe

    O golpe de estado aplicado pelo Exército começou pouco antes da primeira sessão do novo Parlamento e ocorreu, no início, de forma pacífica. Militares cortaram a internet e os sinais de celular, além de bloquear estradas às margens da capital Naypyidaw com tropas, caminhões e blindados.

    Após o bloqueio, os militares iniciaram a prisão de ministros, governadores, oposicionistas, escritores e ativistas. Líderes civis e membros da Liga Nacional pela Democracia também foram detidos, entre eles a vencedora do Prêmio Nobel da Paz em 1991, Aung San Suu Kyi, e o presidente do país, Win Myint.

    Exército toma as ruas de Mianmar
    Blindado do exército de Mianmar toma as ruas do país
    Foto: Hkun Lat/Getty Images

    O golpe foi declarado, de fato, após uma estação de TV pertencente ao Exército citar a Constituição de 2008 e declarar estado de emergência com duração de um ano. Logo após o anúncio, militares cancelaram voos e cortaram as transmissões de rádio e televisão, assumindo, assim, o controle da infraestrutura do país. 

    Protestos

    De acordo com a Associação de Ajuda a Presos Políticos (AAPP), pelo menos 570 pessoas, sendo 47 menores de idade, foram mortas a tiro pelas forças de segurança de Mianmar, desde 1º de fevereiro. No entanto, o número pode ser muito maior, já que mais de 2.700 pessoas foram detidas, sem acesso a familiares e advogados. Muitos estão desaparecidos.

    Só no dia 27 de março, 100 manifestantes foram mortos enquanto criticavam o golpe de Estado. Enquanto o massacre ocorria, o alto escalão do exército celebrava o Dia das Forças Armadas. No mesmo dia, em um discurso transmitido em cadeia nacional, um dos líderes do golpe Min Aung Hlaing disse que iria proteger a democracia e prometeu a realização de novas eleições. Apesar da promessa, ele não estabeleceu uma data para que o evento ocorra.

    Mulher chora em frente ao caixão do irmão, morto ao protestar contra o golpe
    Mulher chora em frente ao caixão do irmão, morto ao protestar contra o golpe militar
    Foto: Stringer/Getty Images

    Nas últimas semanas, após o aumento da repressão, alguns dos principais grupos de rebeldes do país começaram a rever um acordo de cessar-fogo com o exército assinado em 2015. Mesmo com a tomada dos militares, o acordo de paz entre as forças armadas e esses grupos foi mantido. No entanto, em um comunicado emitido pela União Nacional Karen (KNU) — um dos maiores grupos armados de Mianmar –, após “centenas de civis, menores, adolescentes e mulheres” serem mortos pelas forças de segurança, a revisão do acordo seria iniciada.

    Nesta terça-feira (6), ativistas derramaram tinta vermelha nas ruas e deixaram marcas de suas mãos nas calçadas e pontos de ônibus para protestar contra a violenta repressão da junta militar. Em um terminal rodoviário, uma frase pintada por manifestantes dizia que o Exército está sendo mal utilizado para proteger o líder golpista Min Aung Hlaing, e pediam aos soldados para não atirar nos civis.

    Manifestantes se protegem contra o exército de Mianmar
    Manifestantes se protegem contra o exército de Mianmar
    Foto: Hkun Lat/Getty Images

    Em Hpa Na, cidade que fica no estado de Karen, ativistas também pintaram as estradas de vermelho enquanto faziam gestos com três dedos da mão. Desde 2014, essa saudação, em que três dedos ficam apontados para cima, foi adotada por manifestantes ao redor da Ásia em alusão à série de filmes Jogos Vorazes, baseada em um livro com o mesmo título. O gesto, no filme, é símbolo de uma rebelião contra o governo totalitário na nação fictícia de Panem.

    Reações Internacionais

    Diversos países ao redor do mundo como Estados Unidos, Austrália, Japão e Inglaterra condenaram as ações dos militares em Mianmar. O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, disse que o país está horrorizado com as mortes e acusou os militares de Mianmar de “sacrificar a vida do povo para servir a poucos”.

    O secretário de Relações Exteriores da Inglaterra, Dominic Raab, disse que a situação chegou ao “fundo do poço”, enquanto o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, afirmou estar “profundamente chocado” com a violência no país.

    Apesar das declarações, Alexandre Uehara acredita que não existe a possibilidade de haver uma intervenção internacional no momento.

    “Além do princípio básico do direito internacional que é o tema da soberania, ou seja, o reconhecimento mútuo pelos países do poder do Estado em relação às pessoas e coisas dentro do território, a pandemia e o consequente impacto econômico que os países estão passando tem feito com que os posicionamentos internacionais sejam muito tímidos até o momento”, afirma.

    Além disso, China e Rússia não aderiram às críticas ao regime, tornando mais difícil a aplicação de medidas por meio do Conselho de Segurança da ONU, já que ambos os países têm o poder de veto.

    A China, que é a segunda maior economia mundial e a principal parceira econômica de Mianmar, não fez um pronunciamento claro e taxativo contra o golpe e vetou em fevereiro uma declaração clara de condenação pelo Conselho de Segurança da ONU

    Prof. Alexandre Uehara

    “Mais recentemente, no final de março, no Dia das Forças Armadas de Mianmar, o evento anual mais importante para os militares, teve a participação de representantes do governo da China e da Rússia. Isso mostra que não há uma posição consensual entre as grandes potências sobre o tema”, diz Uehara.

    As caras do golpe

    Aung San Suu Kyi

    Nascida em junho de 1945, Aung San Suu Kyi é a terceira dos filhos de Aung San, ex-primeiro-ministro da antiga Birmânia e considerado “pai” da atual Mianmar. Suu Kyi é secretária-geral da Liga Nacional pela Democracia e foi conselheira de estado do país de 2016 até 2021, até ser deposta pelo golpe militar.

    Nas eleições de 1990, a LND obteve 59% dos votos em todo o país e conquistou 392 dos 485 assentos no Parlamento. Como era líder do partido, Suu Kyi deveria se tornar a primeira-ministra. No entanto, ela foi detida e colocada em prisão domiciliar. Ele viveu nessa condição durante 15 anos, até ser libertada após forte pressão internacional em novembro de 2010.

    Após a soltura, Suu Kyi boicotou as eleições de 2010 e exigiu mais abertura política contra o regime dos militares. No ano de 2015, liderou a LND novamente a uma vitória nas urnas. Apesar do êxito, a ativista não podia assumir a presidência por conta do marido e dos filhos estrangeiros. Uma lei imposta pelos militares, por meio da Constituição de 2008, proíbe o feito. Por conta desse imbróglio, o cargo de Conselheiro de Estado foi criado para ela.

    Manifestante faz tatuagem da líder Aung San Suu Kyi
    Manifestante faz tatuagem da líder Aung San Suu Kyi
    Foto: Robert Bociaga/picture alliance via Getty Images

    Vencedora do Prêmio Nobel da Paz, em 1991, pela sua “luta não-violenta pela democracia e pelos direitos humanos”, Aung San Suu Kyi era vista como uma das principais figuras da luta contra a tirania, ao lado do sul-africano Nelson Mandela.

    Apesar do título, Suu Kyi tem sofrido críticas de outros vencedores do prêmio e de ativistas de direitos humanos diante do silêncio em relação à crise humanitária envolvendo os muçulmanos rohingyas em Mianmar.

    Em agosto de 2017, o Exército invadiu Rakhine – estado do norte do país que abrigava mais de um milhão de rohingyas –, matando milhares de pessoas e fazendo com que 690.000 muçulmanos fugissem do país. A ativista negou-se a condenar a ação militar e chegou a dizer que “há um iceberg de desinformação espalhado para promover interesses de terroristas”.

    De acordo com o governo de Mianmar, as medidas foram tomadas para proteger a população de terroristas, já que os ataques teriam começado após ações de extremistas islâmicos a prédios do governo. O Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas (ONU) classificou as ações como uma “limpeza étnica”.

     Min Aung Hlaing e Aung San Suu Kyi conversam em 2015
    Min Aung Hlaing e Aung San Suu Kyi conversam em 2015
    Foto: Stringer/Anadolu Agency/Getty Images

    Min Aung Hlaing

    General de cinco estrelas, Min Aung Hlaing ocupava um cargo equivalente à vice-presidência de Mianmar desde novembro de 2020. Com o golpe de fevereiro, assumiu a liderança do país. O líder golpista é acusado de violar os direitos humanos após crimes contra a humanidade e crimes de guerra. Hlaing é apontado como a principal figura na limpeza étnica promovida contra o povo rohingya.

    Em 2019, o Facebook e o Twitter baniram a conta do general para evitar novas tensões étnicas e religiosas em Mianmar. A ação por parte das redes sociais foi tomada após a divulgação de um relatório da ONU que dizia que líderes militares em Mianmar seriam investigados e processados por genocídio. No mesmo ano, o governo dos Estado Unidos proibiu Min Aung Hlaing de viajar ao país e congelou os ativos dele, criminalizando as transações financeiras entre o militar e qualquer pessoa nos Estados Unidos.

    Além dos crimes contra a humanidade, o líder do golpe também é acusado de corrupção. Ele é o principal acionista da empresa militar Myanmar Economic Holdings Limited. No ano fiscal de 2010-11, Hlaing detinha 5.000 ações e recebeu um pagamento anual de dividendos de US$ 250.000 (cerca de R$ 1.4 milhão). No entanto, ele faz parte do Patron Group da Myanmar Economic Holdings Limited, que administra o conglomerado.

    O filho do general, Aung Pyae Sone também é dono de diversas empresas privadas como a Sky One Construction Company e a Aung Myint Mo Min Insurance Company, além de ser sócio majoritário de uma operadora de comunicações chamada Mytel. No ano de 2013, após a promoção de seu pai, Sone recebeu uma licença – sem licitação do governo – para arrendar terras por 30 anos no Parque do Povo de Yangon para um restaurante e galeria de arte sofisticados.

    Ele também é dirigente da A&M Mahar, empresa que oferece aprovações e serviços de liberação alfandegária da Food and Drug Administration para medicamentos e dispositivos médicos. O departamento alfandegário, no entanto, é chefiado pelo ex-diretor da Myanmar Economic Holdings Limited, Kyaw Htin.

    Já Khin Thiri Thet Mon, filha do líder golpista, fundou em 2017 um estúdio de cinema chamado 7th Sense Film Production. No mesmo ano, Myo Radana Htaik, nora de Min Aung Hlaing, abriu outra empresa de entretenimento, a Stellar Seven Entertainment. Em 2020, a embaixada dos EUA em Yangon foi vasculhada após ser acusada de colaborar com a 7th Sense Creation. O auxílio foi visto como uma ilegalidade por conta das sanções econômicas aplicadas ao general pelos EUA.

    Futuro de Mianmar

    Para o Coordenador Acadêmico do Núcleo de Estudos e Negócios Asiáticos da ESPM/São Paulo e Coordenador do Grupo de Estudos sobre Ásia da Universidade de São Paulo, a situação no país ainda é tensa e dificilmente os militares renunciarão ao poder, mesmo com as contestações pela população de Mianmar e reprovações internacionais.

    Por outro lado, Alexandre Uehara observa que há um engajamento importante por parte dos manifestantes. No entanto, o cessar-fogo ainda deve demorar. “As redes sociais têm permitido a mobilização das pessoas e os protestos deverão continuar. Nesse confronto o elo mais fraco é o da população e, por isso, infelizmente as mortes deverão continuar”, explica.

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