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    Elizabeth II deixa legado de estabilidade, união e popularidade, dizem analistas

    Sucessor terá dificuldade para continuar trabalho da rainha, que segurou apoio do Reino Unido à monarquia, além de união interna e com ex-colônias

    João Pedro Malarda CNN

    em São Paulo

    Com 70 anos de reinado, Elizabeth II, cuja morte foi anunciada nesta quinta-feira (8), deve ser lembrada como um símbolo de união e estabilidade, além da grande popularidade no Reino Unido e no mundo, afirmam especialistas à CNN.

    Quando assumiu o trono, sucedendo o pai, a então princesa de 25 anos Elizabeth Alexandra Mary se tornou a chefe de Estado do Império Britânico, com extensão global e ainda muitas marcas do século 19.

    Décadas depois, a rainha Elizabeth II encerra seu reinado como líder de um país que perdeu suas colônias, passou por inúmeras crises internas e externas e teve transformações em sua sociedade, economia e cultura.

    Nesse sentido, Kai Enno Lehmann, professor da USP, afirma que a monarca “representou para o mundo um Reino Unido como era antigamente, como muitos gostariam que o país fosse de novo, mas que não será”.

    Estabilidade em meio a crises

    Lehmann destaca que, constitucionalmente, o poder político do monarca britânico é “muito limitado”, o que acaba dando aos reis e rainhas um caráter mais simbólico, como no caso da rainha.

    Para ele, Elizabeth II representou, interna e externamente, “estabilidade e previsibilidade, algo que certamente nos últimos 10, 15 anos, tem faltado no Reino Unido”.

    O professor lembra que o Reino Unido passou por inúmeras crises ao longo dos últimos 70 anos, e de diversos tipos: políticas, econômicas, a perda do Império, a saída da União Europeia, conflitos na Irlanda do Norte, dentre outros.

    Nesse cenário, Elizabeth II “é o símbolo da continuidade desse país apesar de todos esses problemas”.

    “Ela vai além da instituição que ela representa, ela como pessoa representa uma estabilidade, estoicismo, que muitas vezes faltou no país. Deixa esse legado de representar tudo aquilo pelo qual o Reino Unido era conhecido antigamente”, avalia.

    Lehmann destaca que o Reino Unido pode não estar em uma situação melhor do que quando a rainha assumiu o trono, mas que “na cabeça das pessoas, o enfraquecimento do país, e as crises pelas quais está passando, não tem nada a ver com ela”.

    “Imagino que o comentário geral seria que ela se deu bem apesar do entorno, pessoas, política, família, que geraram muitos problemas. Ela se deu bem, o que diz muito sobre as qualidades dela”, observa.

    O professor lembra ainda que Elizabeth II “nunca caiu na tentação de se meter na política do país”, algo que seu sucessor e filho, Charles III, pode fazer diferente. “Na vida dele, já fez comentários políticos, e ela nunca fez isso”.

    Ele acredita que “daqui a dez, 20 anos, quando olharmos como foi enquanto monarca, deve ser caracterizada como uma ótima rainha, apesar tudo”.

    Na avaliação de Lehmann, o legado de Elizabeth II é “muito simbólico. Acho que, em muitos aspectos, certamente na imaginação das pessoas, representa muito daquilo que o país tem perdido ao longo dos últimos anos”.

    Já Leonardo Trevisan, professor da ESPM, lembra que a morte de Elizabeth II marca o fim de uma “era elisabetana”, em que a rainha teve “70 anos de poder em que o mundo teve transformações brutais”.

    “O pai dela se transforma em rei quando ela já era adulta. Ela não teve educação para ser rainha, e chega ao seu próprio reinado por uma razão extemporânea, o pai morre precocemente, e ela estava viajando quando ocorreu”, conta.

    Por isso, ele acredita que a rainha precisou aprender como atuar como monarca enquanto exercia a função, e como exercer suas diferentes tarefas nesse processo.

    “Ela precisou acompanhar a modernidade, entender a mudança no mundo e como isso se traduziria nela. Além disso, conviver com o fato de que a Inglaterra estava se globalizando”, lembra.

    Para o professor, essa dinâmica interna é simbolizada principalmente pela relação da rainha com dois primeiros-ministros, Margaret Thatcher, símbolo da “Inglaterra da era do mercado”, e Tony Blair, representante da “Inglaterra social-democracia”.

    “Ela aprendeu a ser rainha no exercício do poder, e nesse processo a Inglaterra passa por mudanças. Foi rainha em diferentes fases em que a Inglaterra foi perdendo presença no cenário internacional, e acompanha esse processo, com duras consequências no contexto inglês”, avalia.

    Popularidade

    Em 2022, com a comemoração dos 70 anos de reinado, a empresa de pesquisa de opinião YouGov realizou uma série de levantamentos sobre a visão do público inglês sobre a rainha e a monarquia.

    Um dos resultados mais importantes foi a taxa de aprovação: mais de 70% dos britânicos achavam que Elizabeth II fez um bom trabalho no trono, um valor que não se alterou muito ao longo das décadas.

    Trevisan atribui isso à “construção de um carisma específico da rainha, em que anunciava decisões duras, até pela família, e era totalmente apoiada pela população. A Lady Di é o grande exemplo, mas quando virou rainha precisou impedir o casamento da irmã com um homem divorciado”.

    “No governo dela, a Coroa tem que atender a lidar com o novo mundo da comunicação, e ela entende o papel da comunicação e aceita isso para popularizar a figura da monarquia”, diz.

    Para ele, o maior legado que Elizabeth II deixa não é a continuidade da monarquia em si, em geral com avaliação menos positiva que a monarca, mas sim de ter “educado toda a aristocracia inglesa de que precisava se comunicar como o mundo, não ficar fechada, e é isso que constrói a popularidade dela”.

    “Ela aceita o mundo da televisão, da mídia eletrônica, das redes sociais. Compreendeu o papel da mudança e da comunicação para construir essa popularidade”, afirma.

    O professor avalia que há uma “fragilidade no legado da Coroa pela personalidade mais tímida e acanhada do sucessor”, mas que “a longevidade está mais no William, que tem um carisma que o pai não tem”.

    Trevisan ressalta que a própria primeira-ministra do país, Liz Truss, e outros líderes como Blair, chegaram a ter posições republicanas quando jovens, mas as deixaram para trás, o que indica que “de algum modo, a realidade inglesa convive melhor com a ideia de monarquia porque tem a imagem de rainha Elizabeth, que muda conforme a realidade muda”.

    “A longevidade dela, e percepção que o mundo mudava e precisava se adaptar, é a maior garantia que a Coroa continuará, se seguir o modelo dela”.

    Já Lehmann acredita que Elizabeth II “certamente não deixa a monarquia em uma situação mais fraca”, mas que o nível alto de popularidade dificilmente será mantido por seus sucessores.

    “Tem algo sobre a personalidade dela que atrai a sociedade como um todo, um carisma. A popularidade dela nunca sofreu muito, e com isso a instituição se deu bem apesar de muitos escândalos, dos próprios filhos, como de Charles e Diana, as acusações contra o príncipe Andrew”, lembra.

    Comunidade das Nações e exterior

    Internacionalmente, Lehmann acredita que a rainha soube cuidar bem da sua imagem, sempre reforçando que a política poderia ser transitória, mas que ela e a instituição da Coroa permaneceriam iguais.

    Um dos principais legados da monarca deve ser não apenas ter mantido os 56 integrantes da Comunidade das Nações unidos, todas ex-colônias britânicas, mas também se manter como chefe de Estado em 15 deles.

    “Quando olhar para trás, em alguns anos, pode ser uma das principais conclusões, que ela personificava uma união e estabilidade que outros não conseguem ter, e que a manutenção da comunidade tinha muito a ver com ela pessoalmente, e sem ela, vai ter mudanças importantes”, pondera o professor.

    Ele afirma que não há como saber ainda se Charles conseguirá lidar com a instituição, e que há o risco de o monarca ser apenas uma transição, com reinado curto, para o filho, até pela sua idade.

    “Seria perigoso para um dos dois só tentar repetir o que ela tem feito, porque não são ela, são pessoas, personalidades diferentes, eles precisam achar o jeito deles, mas o país está em uma situação muito tumultuada, que não vai se acalmar no curto prazo”, destaca.

    O professor considera que “seria importante o próximo monarca tentar, no jeito dele, ser uma figura de união, unificação, pacificar o país, mas não sei se Charles tem essa capacidade”.

    Trevisan associa Elizabeth II a uma ideia de estabilidade não apenas para o Reino Unido, mas para o resto do mundo, sendo “um porto seguro, até para lideranças internacionais, talvez até pela idade longeva. Nenhum outro líder tinha a experiência de poder que ela tinha”.

    Ele caracteriza a monarca como “uma rainha que já tinha visto de tudo na cena internacional, recebido diferentes personagens, e era uma pessoa que de alguma forma transmitia essa vivência no poder internacional”.

    Ao mesmo tempo, Elizabeth soube compreender uma mudança na ordem internacional, vivendo o período de descolonização na África e Ásia, e trabalhando uma “possibilidade de convivência do mundo inglês” pela Comunidade de Nações.

    “Ela compreendeu que o mundo pós-Guerra estava mudando, e compreendeu o fim da Guerra Fria, entendendo o papel que a globalização teria no mundo”, pontua o professor.

    Para ele, é difícil prever como Charles lidará com esse cenário, mas Trevisan também aposta em um reinado de transição para William, “que tem um magnetismo da mãe e aprendeu sobre o exercício de poder com a avó”.