Documentos revelam distintas classificações do Hamas por órgãos brasileiros nos últimos 30 anos
Acervo da Secretaria-Geral da Presidência revela que ora grupo foi tratado como extremista, ora como terrorista; nomenclatura será tema de debate na ONU
Documentos obtidos pela CNN em fundos do Arquivo Nacional mostram que, ao longo dos últimos 30 anos, órgãos do governo brasileiro variaram na forma de classificação do Hamas – ora como grupo extremista, ora como grupo terrorista palestino.
A forma do Brasil se referir à organização, que trava guerra há quase uma semana com Israel, será debatida em reunião do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), de acordo com o embaixador Carlos Sérgio Sobral Duarte, secretário da África e do Oriente Médio.
Formalmente, o país entende que cabe à ONU definir o status da organização – os Estados Unidos, por exemplo, classificam o Hamas de organização terrorista.
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Em um documento de oito páginas elaborado em 1996, disponível no fundo Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, o governo brasileiro faz uma avaliação da história do Hamas – surgido em 1987 com o objetivo de “libertação da Palestina e sua transformação em um Estado islâmico aos moldes da teocracia iraniana, bem como a destruição do Estado de Israel, opondo-se ao processo de paz no Oriente Médio”.
No ano seguinte, porém, um informe da inteligência do governo brasileiro tratou o Hamas como “organização terrorista palestina”.
Encaminhado à Presidência, o documento de sete páginas indicava que o grupo decidira “inserir o Brasil como palco para ações do terrorismo internacional. Assim, estariam planejando realizar ataques contra judeus residentes e instalações israelenses no país”.
Especialistas ouvidos pela CNN apontaram razões para o Brasil não classificar o Hamas como organização terrorista.
O principal argumento é a leitura de que cabe às Nações Unidas essa definição. Além disso, há um posicionamento histórico pragmático do país em relação ao conflito entre Israel e Palestina ao longo do tempo.
“O Brasil condena atos terroristas, mas não tem listas de grupos terroristas, ao contrário do que fazem, por exemplo, EUA ou União Europeia”, explica Maurício Santoro, cientista político, professor de relações internacionais e colaborador do Centro de Estudos Político-Estratégicos da Marinha.
“A posição histórica do Brasil é a defesa da solução de dois Estados, ou seja, apoiar tanto a criação de Israel quanto a de uma Palestina independente. Contudo, ao longo dos anos houve momentos em que a posição brasileira foi mais pró-árabe, mais crítica a Israel, sobretudo nos anos 1970”, avalia.
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Para Igor Lucena, doutor em Relações Internacionais e membro da Associação Portuguesa de Ciência Política, o Brasil deveria rever sua posição de esperar a ONU e classificar o Hamas como organização terrorista.
“O país precisa acompanhar os elementos geopolíticos de hoje e o posicionamento histórico não pode ficar à frente do que o mundo de hoje demanda”, indicou.
Nos anos 1990, preocupação com entrada do Brasil na rota do terror
Os documentos levantados pela reportagem no Arquivo Nacional revelam que havia, nos anos 1990, uma grande preocupação do governo brasileiro com a possibilidade de o país ingressar na rota dos atentados terroristas.
Em maio de 1994, investigadores relataram a possibilidade ao indicar que o “terrorismo internacional tem evidenciado a tendência de buscar áreas periféricas de atuação, distantes de seus teatros de operações principais, para executar ações contra alvos preferenciais ou obter apoio para suas organizações junto a grupos étnicos ou religiosos”.
Nesse sentido, alvos judeus poderiam ser alvos de organizações como o Hamas.
Em março de 1993, um documento do governo brasileiro também armazenado nos arquivos da Secretaria Geral da Presidência da República menciona a “forte repressão israelense e a falta de uma solução para a questão palestina” como “terreno fértil” para o crescimento do Hamas.
E faz uma previsão: “o grupo ‘Hamas’ poderá ser incluído, ainda este ano, pela primeira vez, no relatório anual dos EUA sobre terrorismo no mundo, pois o número crescente de seus atentados o credencia a entrar na lista dos atuais grupos terroristas”.