De saída da Palestina, embaixador relata caos, dramas e “milagre” em retirada de brasileiros em Gaza
Alessandro Candeas deixa representação do Brasil em Ramallah, após quatro anos, com alerta de que escalada do conflito pode ter consequências "imprevisíveis"
Quatro anos após assumir o Escritório de Representação Brasileira na Palestina, em Ramallah, o embaixador Alessandro Candeas, de 58 anos, está deixando o posto diplomático. Ele passou os últimos 12 meses em meio ao conflito Israel-Hamas e esteve à frente da complexa operação que envolveu a retirada de brasileiros e familiares da Faixa de Gaza.
A experiência virou um livro: “Peregrinação e Guerra: anotações de um diplomata na Terra Santa”. Nesta conversa com a CNN, o diplomata, que assume o Consulado do Brasil em Lisboa no fim deste mês, relata os desafios e sua preocupação com a escalada da conflito no Oriente Médio desde o ataque de Hamas a Israel, em 7 de outubro de 2023. “Suas repercussões são imprevisíveis e extremamente preocupantes”, alerta.
O conflito Israel-Hamas completou um ano e o sr. está escrevendo um livro sobre sua atuação diplomática na Palestina. Por que decidiu escrever sobre a experiência?
Gostaria de compartilhar a experiência pessoal e profissional desafiadora que vivi nesses últimos quatro anos aqui entre Palestina e Israel, morando em Jerusalém, viajando por toda a região e falando com atores de todos os lados. Creio que, além do conteúdo informativo, pode ser de utilidade e interesse para todos aqueles que desejam compreender as raízes históricas e culturais da complexidade deste lugar tão especial, e dos perigos da deterioração da situação regional em vários aspectos: político, securitário, social, religioso. O esforço é sair da superficialidade das narrativas recebidas e “prontas para pensar” de forma enviesada e tentar compreender a alma do lugar e das pessoas.
O título do livro é “Peregrinação e Guerra: anotações de um diplomata na Terra Santa”. São anotações pessoais a partir da perspectiva privilegiada de quem vivenciou uma guerra nessa terra que todo mundo reverencia e acha que conhece e pode opinar. Alguém que atuou diretamente em casos concretos, especialmente na evacuação dos brasileiros de Gaza, informou e analisou o contexto para o Itamaraty, fez redes para o Brasil, conheceu personalidades e instituições incríveis, fez peregrinações aos lugares santos do cristianismo e assim por diante.
Como era o cenário na região até os ataque de 7 de outubro do Hamas a Israel? Havia já uma avaliação de que haveria escalada da tensão?
Sem dúvida, a tensão e a radicalização política e retórica eram muito evidentes desde o início de 2023. Fizemos vários relatos para o Itamaraty informando isso. Inclusive, acreditávamos que a situação explodiria em abril de 2023, pela coincidência das datas das grandes celebrações religiosas judaicas, islâmicas e cristãs, pelo número de fieis e peregrinos que afluiriam para Jerusalém. Isso porque o mesmo aconteceu em maio de 2021, no mesmo período do ano, quando houve ataques de foguetes desde Gaza e retaliação aérea.
Prevendo isso, elaboramos um plano de contingência para a proteção e, em último caso, evacuação de brasileiros de Gaza e da Cisjordânia. Como sempre digo, não se improvisa uma ação humanitária. Precisávamos saber exatamente como proceder, ter visão estratégica, “consciência situacional”, como se diz no jargão militar, e agir rápido.
Como o sr. soube dos ataques? Logo de início, era possível imaginar a proporção do ataque e da resposta de Israel?
O ataque terrorista aconteceu, não no primeiro semestre, como pensávamos, mas no segundo, em outro feriado religioso judaico. Foi uma “surpresa inevitável”, um oxímoro que sempre usamos para indicar que a escalada das tensões necessariamente vai resultar em alguma explosão.
Para auxiliar no monitoramento em tempo real da situação, eu tinha o aplicativo “Red Alert”, que avisa pelo celular, imediatamente, quando e onde há ataque de foguetes, e quanto tempo há para se refugiar em um abrigo. Na madrugada de 6 para 7 de outubro, o aplicativo soou dezenas de vezes. Vi que a região em torno de Gaza estava sendo atacada. Paralelamente, comecei a receber, pelas mídias sociais e por outros contatos, vídeos em que custei a acreditar. Cenas de ataques a Kibutzim, a postos militares, sequestros, tiroteios, incursões com o uso de parapentes, tanques e veículos israelenses tomados, e assim por diante. Ficou claro, para mim, que Israel iria retaliar da forma mais imediata e robusta possível.
Apesar de termos previsto, há meses, que algo grave aconteceria, a audácia das ações terroristas e a magnitude da retaliação militar desproporcional de Israel, e sobretudo a hecatombe humanitária, de fato nos surpreenderam. Foram despejadas sobre áreas urbanas superpovoadas de Gaza o equivalente a cinco bombas de Hiroshima, matando quase 42 mil pessoas, sendo 70% mulheres e crianças, ferindo 95 mil, e gerando 2 milhões de deslocados, além de fome, doenças, destruição física e de infraestrutura.
Quanto à possibilidade de escalada para o Oriente Médio, infelizmente também isso estava previsto em várias análises, não é surpresa. A incógnita é a magnitude dessa escalada. Há variáveis importantes a levar em conta que podem ainda ampliar ou reverter o processo, sobretudo a atuação das grandes potências. A comunidade internacional precisa agir rapidamente para evitá-la.
O senhor atuou diretamente na operação de brasileiros e familiares na Cisjordânia e, na ainda mais complexa, resgate de cidadãos na Faixa de Gaza. O que envolveu as negociações? Quais eram as principais dificuldades?
Como disse, tínhamos um plano de contingência, e o implementamos de forma completa, com as adaptações “táticas” necessárias, mas sobretudo com agilidade, que é crucial em qualquer guerra. Houve várias dimensões.
Primeiro, o contato direto com nossas comunidades brasileiras em Gaza e na Cisjordânia, a partir da base de dados de que nosso setor consular dispunha. Não esperamos ser acionados, tomamos a iniciativa de contatá-los. Falamos com todas as famílias para compreender sua situação e suas demandas, a fim de que tivéssemos a exata medida das necessidades a serem atendidas. Isso nos permitiu ter a lista das demandas de evacuação e organizar a logística de transporte.
Segundo, as redes oficiais de interlocução com Israel, o Egito e os outros atores locais e regionais envolvidos, por meio das nossas embaixadas em Tel Aviv, Cairo, Amã e outros canais. Isso foi fundamental para apresentarmos a lista dos brasileiros a serem evacuados, e também a localização onde se encontravam, para evitar que fossem bombardeados como “efeito colateral” das hostilidades militares. As negociações se centraram justamente na aprovação do grupo de brasileiros a serem autorizados a sair de Gaza. Para isso, foram feitas negociações do mais alto nível, desde as embaixadas até o Presidente Lula, juntamente com os Ministros Mauro Vieira e Celso Amorim, e seus interlocutores.
Terceiro, a assistência humanitária aos brasileiros, para que não passassem fome nem estivessem desabrigados. A dificuldade maior foi a demora na aprovação das listas, já que diversos outros países estavam fazendo o mesmo, com comunidades bem maiores do que o grupo de brasileiros. A demora na lista não refletia qualquer favorecimento ou dificuldade política, como em algum momento se cogitou na imprensa. A lentidão era a dificuldade de processamento das milhares de demandas recebidas pelas autoridades israelenses e egípcias. Todos os dias monitorávamos, com expectativa e angústia, a lista dos cidadãos autorizados a sair da Faixa. Graças a Deus conseguimos retirá-los.
No caso da Cisjordânia, como a guerra de Gaza também insuflou grande violência nos territórios ocupados, com crescimento das incursões militares e principalmente ataques e vandalismo dos colonos contra as populações camponesas e dos vilarejos palestinos, alguns brasileiros demandaram evacuação. Temos 6 mil brasileiros na Cisjordânia. A operação foi comparativamente mais simples do que a de Gaza. Retiramos 32 brasileiros em novembro, via Jordânia.
Em ambos os casos – Gaza e Cisjordânia – nossos brasileiros voltaram ao Brasil em voos da FAB. A Força Aérea fez um trabalho extraordinário. Também repatriou em outubro de 2023, desde Israel, cerca de 1.400 brasileiros. Em junho deste ano, em outro momento grave de violência na Cisjordânia, conseguimos retirar 8 brasileiros do campo de refugiados de Jenin, que estava sendo atacado, com apoio das autoridades locais e do Crescente Vermelho.
Coube ao senhor falar diretamente às lideranças do Hamas para garantir a segurança na operação de resgate?
É importante esclarecer que não há nenhuma relação oficial com a autoridade de fato em Gaza. A relação oficial do Brasil é com a Autoridade Palestina e com a OLP. Os contatos disponíveis eram resultado de nossos consulados itinerantes naquela Faixa, que realizávamos duas vezes por ano. Como o grupo administra a Faixa, era necessária autorização também deles para atravessar a fronteira.
Nunca houve problema nisso, nem para a realização dos trabalhos consulares na cidade de Gaza, além dos deslocamentos para visitas às ações da ONU (UNRWA) e ao “Campo Brasil”, em Rafah, fronteira com o Egito, local onde se instalou o “Batalhão Suez”, com tropas brasileiras na primeira missão de paz, de 1957 a 1967. Já havia, portanto, um canal aberto, estritamente prático e operacional, não político. O Brasil é muito querido e admirado por todos os lados, o que facilitou enormemente nosso trabalho.
Já no dia 8 de outubro, um dia depois dos ataques, e no contexto da preparação da evacuação dos brasileiros, retomei o contato no nível adequado para avisar de nosso grupo, que desejava sair com urgência. A resposta foi muito positiva e imediata: “contem com nosso apoio e proteção para tudo que os cidadãos brasileiros precisarem”. Não foi, portanto, necessária nenhuma negociação, apenas informação dos dados de nosso grupo para que lhes fosse autorizada a saída pela fronteira Sul de Gaza. Não houve nenhum obstáculo, muito pelo contrário, das autoridades de fato. A única coisa que esperavam, tanto quanto nós, era a autorização do Egito para ingresso naquele território. Uma vez autorizada a saída, tudo fluiu rapidamente.
Como era dada a autorização aos brasileiros e familiares para deixar Gaza? Quais eram os critérios para esse veto?
Não havia critérios transparentes, havia certa confusão nas listas. Por exemplo, às vezes não autorizavam crianças nem idosos de 70 anos, o que não faz sentido. Por duas vezes, como não havia autorização para um pai ou um avô ou avó, toda a família preferia ficar em Gaza, reunida sob o perigo. “Se for para morrer, morremos juntos em nossas casas”, alguns diziam. Finalmente, em um caso específico, um pai não autorizado de fato ficou, e toda a família resolveu sair. Ele ainda está lá.
Antes da operação resgate, o escritório de representação ficou responsável por dar abrigo a brasileiros, transportar até locais seguros e até mesmo garantir alimentação e remédios. Como isso foi feito e quais as complexidades dessa logística?
Isso foi fundamental. Claro que a prioridade era a saída imediata do grupo, mas como a fronteira esteve fechada por várias semanas, e como as hostilidades se intensificavam no Norte da Faixa e não entrava ajuda humanitária, e todo o sistema de produção, distribuição e consumo entrou em colapso, era mais do que evidente que haveria uma catástrofe humanitária.
Antecipando isso, colocamos os brasileiros em casas alugadas pelo escritório do Brasil nas cidades de Rafah e Khan Younes, perto da fronteira com o Egito, e enviávamos recursos para que comprassem alimentos, água, gás de cozinha e remédios. A ideia era dar sustento ao grupo para que não precisassem da ONU, da Cruz Vermelha (ali, Crescente Vermelho), nem de nenhuma instituição humanitária, que estava entrando em colapso, também.
O governo brasileiro providenciou, ele mesmo, o apoio humanitário. Também colocamos à disposição deles, via grupo de WhatsApp, uma psicóloga contratada pelo escritório e um médico voluntário de Jerusalém, para dar-lhes orientação. Isso foi importante principalmente para crianças e mães. Quanto à logística, como não tínhamos acesso a Gaza, os próprios brasileiros se encarregaram, com os recursos que enviávamos, de buscar seus suprimentos.
Cada dia que passava, mais escasseavam os víveres. Padarias bombardeadas, eles passaram a comprar trigo e fazer pão em fornos artesanais próprios, à moda tradicional do campo. Faziam feiras em mercados locais, compravam galões de água e botijões de gás transportados por carroças de jumentos. A cada dia que passava, tudo ficava mais escasso. A situação se deteriorava rapidamente, por isso nossa angústia em retirar todos de lá.
Qual o momento mais desafiador e qual o mais emocionante ao longo de um ano de guerra e nesse trabalho de garantir a segurança e a repatriação de brasileiros?
Posso lhe dar a data e a hora. Sexta, 13 de outubro de 2023, 11h40 da manhã. Havíamos conseguido reunir os brasileiros do Norte de Gaza em uma escola católica, das Irmãs do Rosário, enquanto aguardávamos o melhor momento, o mais seguro, para deslocá-los para a fronteira com o Egito.
No início da manhã daquele dia, Israel avisou que abriria às 12h um corredor humanitário para todos os estrangeiros que quisessem fazer esse percurso, porque iria invadir o Norte em operação terrestre e aérea. Já tínhamos tudo pronto, ônibus etc. 20 minutos antes do prazo, Israel avisou que não somente não abriria mais o corredor, senão que não recomendava que ninguém se deslocasse.
Quando avisamos isso ao nosso pessoal, desespero e consternação. Ficamos na indefinição: retirar os brasileiros de qualquer jeito, com o risco de serem atacados na estrada, como havia acontecido com outros veículos na véspera, ou ficar no Norte, sob maior poder de fogo israelense?
Consultamos nossos nacionais, que queriam sair de qualquer jeito. Consultei o Itamaraty, expliquei a situação e as opções, recomendando que o grupo saísse. Recebida a instrução positiva, falamos com o motorista, que estava com receio, mas vislumbrou uma pequena janela de oportunidade naquele instante. Eram quase 12:30. Graças a Deus, um trajeto que demoraria duas horas, naquelas condições de congestionamento, durou apenas 45 minutos. Um milagre, a estrada estava vazia! Como chegaram tão cedo, conseguiram procurar casas para alugar em Rafah, na fronteira.
Um ano depois, o senhor está deixando a representação em Ramallah. Qual o balanço faz?
Fiquei quatro anos nessa missão. Uma experiência única, marcante e inesquecível. Por isso, a decisão de escrever as memórias em um livro. O balanço é positivo em agendas como apoio à comunidade brasileira na Palestina, missões empresariais de comércio bilateral, cooperação universitária — dia 16, a USP inaugurará o Centro de Estudos Palestinos, e em breve também lançaremos o Instituto de Estudos Brasil-Palestina, que é uma rede de universidades brasileiras e palestinas.
Por outro lado, evidentemente, o balanço é muito preocupante em matéria de segurança e de estabilidade social e política. Saio daqui num momento em que a guerra de Gaza gerou a destruição e o abismo humanitário que todos conhecemos, sem resolver os problemas políticos que o geraram (ao contrário, se aprofundaram), a Cisjordânia cresce em violência militar e dos colonos, a “solução de dois Estados” (Israel e Palestina) apoiada pela grande maioria da comunidade internacional se vê ameaçada, a guerra de Israel com o Hezbollah se intensifica, e há perspectiva de alastramento regional.
Como o sr. avalia o atual cenário no Oriente Médio, com as hostilidades escalando entre Israel e Irã?
Justamente, essa é a perspectiva de alastramento que mais preocupa a todos. Essa escalada tem que ser evitada a todo o custo. Suas repercussões são imprevisíveis e extremamente preocupantes.