Crise da Covid-19 na Índia é um problema para o mundo
Crise de saúde pública na Índia é analisada por especialistas como um problema global que exige respostas coordenadas
Há um cenário à parte se desenrolando no mundo no momento em que todos lutam contra a pandemia.
Em países como os Estados Unidos e o Reino Unido, pessoas recém-imunizadas aparecem felizes e abraçando seus entes queridos após um longo período de separação. Na Índia, famílias arrasadas choram seus mortos.
Pessoas doentes estão sendo rejeitadas em hospitais, que estão sem leitos ou oxigênio. O número de novos casos aumenta para níveis recordes a cada dia, criando uma crise nacional com repercussões globais.
Quanto mais o vírus se espalha, mais chances ele tem de sofrer mutação e criar variantes que possam resistir às vacinas atuais, ameaçando prejudicar o progresso de outros países na contenção da pandemia, segundo os especialistas.
“Se não ajudarmos a Índia, fico preocupado com uma explosão de casos” em todo o mundo, disse o doutor Ashish Jha, reitor da Escola de Saúde Pública da Universidade Brown.
É por isso que o surto de Covid-19 na Índia é um problema global que precisa de uma resposta coordenada.
Alguns países já estão trabalhando no envio de suprimentos.
Os concentradores de oxigênio dos EUA (dispositivos médicos que comprimem o oxigênio do ar) chegaram no início desta semana. Na quarta-feira (28), Reino Unido, Itália e Alemanha enviaram mais equipamentos médicos, enquanto aviões russos decolavam de Zhukovsky para Delhi carregando remédios, monitores e ventiladores.
Embora a prioridade imediata seja salvar as vidas das pessoas que já estão doentes, a vacinação do país é considerada crucial para impedir a propagação do vírus. Mas, apesar de abrigar o maior produtor mundial de vacinas, a Índia não tem doses suficientes e não há uma maneira rápida e simples de aumentar a produção.
Os países ocidentais foram criticados por estocar vacinas, mas, na quarta-feira, o secretário de Saúde Matt Hancock afirmou que o Reino Unido não tinha doses sobressalentes para enviar.
O presidente dos EUA, Joe Biden, disse na terça-feira (27) que conversou com o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, e confirmou que os EUA pretendem enviar vacinas contra o coronavírus para a Índia. No início da semana, os EUA declararam que iriam compartilhar 60 milhões de doses de AstraZeneca com outros países, mas não especificaram para quais nações ou quando isso ocorreria. Segundo a Casa Branca, entregá-las pode levar meses.
Uma distribuição equitativa da imunizantes em todo o mundo é essencial, como explicou o doutor Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos.
“Porque estamos todos juntos nisso. É um mundo interconectado. E há responsabilidades que os países têm uns com os outros, especialmente quando se é um país rico lidando com países que não têm os mesmos recursos ou capacidades”, disse Fauci ao jornal “The Guardian” no início desta semana.
Se o surto indiano não puder ser contido e se espalhar para países vizinhos com baixo fornecimento de vacinas e sistemas de saúde fracos, os especialistas alertam que o mundo corre o risco de replicar cenas testemunhadas na Índia – especialmente se variantes mais novas e potencialmente mais contagiosas forem permitidas. Como a Índia tem um papel de liderança na produção de vacinas para outras nações, não impedir sua disseminação pode colocar em risco a distribuição da vacina em todo o mundo.
Variantes x vacinas
O coronavírus foi detectado pela primeira vez na cidade chinesa de Wuhan e, desde então, se espalhou pelo mundo de pessoa para pessoa. Em alguns casos, ele se transformou em novas variantes.
Em dezembro, os cientistas detectaram uma nova cepa, conhecida como B.1.617, na Índia, embora não se saiba se ela seja responsável pelo surto local devido à falta de vigilância genômica.
Anurag Agrawal, diretor do Instituto de Genômica e Biologia Integrativa do país, disse na semana passada que há sim uma correlação entre o aumento da prevalência de variantes e o aumento no número de casos indianos.
“No estado de Maharashtra, vimos a B.1.617 subir, tivemos um surto. Está aumentando em Delhi, e há um surto. São correlações epidemiológicas muito importantes”, disse Agrawal.
Mas ele observou que em Delhi e no norte da Índia uma outra variante, identificada pela primeira vez no Reino Unido e conhecida como B.1.1.7, era mais dominante do que a B.1.617. A variante “britânica” é conhecida por ser mais transmissível.
Fauci disse que dados recentes mostram que a vacina para a Covid-19 da Índia, a Covaxin, neutralizou a variante B1.617, o que sugere que vacinas podem ser usadas contra ela. “A vacinação pode ser um antídoto muitíssimo importante”, comentou Fauci, acrescentando, porém, que mais informações estão sendo coletadas a cada dia.
Outras variantes, identificadas pela primeira vez por cientistas da África do Sul e do Brasil, também são consideradas mais transmissíveis do que a cepa original e já chegaram a vários outros países.
Até agora, as vacinas da Pfizer/BioNTech, Moderna e Johnson & Johnson mostraram vários graus de eficácia contra essas variantes. No entanto, como o vírus pode sofrer mutação à medida que se espalha, não há garantia de que as vacinas disponíveis protegerão as pessoas de novas variantes. Isso não deixaria nenhum país protegido, não importa quantos de seus cidadãos tenham sido vacinados.
“Por razões egoístas, todos os países deveriam se preocupar com grandes surtos que estão fora de controle”, disse Jha. “Países como o Reino Unido e os Estados Unidos estão fazendo um ótimo trabalho com a vacinação e devem estar se sentindo muito bem com isso, mas isso não exclui o problema das variantes”.
Mais de 142 milhões de pessoas nos EUA e 33 milhões de pessoas com 18 anos ou mais no Reino Unido receberam pelo menos uma dose das vacinas Covid-19 – cerca de 43% e 64% da população elegível, respectivamente.
Em contraste, cerca de 129 milhões de pessoas na Índia haviam recebido pelo menos uma dose da vacina, até 27 de abril, informou o Ministério da Saúde da Índia. Isso é pouco mais de 8% da população total do país. Os especialistas culparam o lançamento lento da vacina e a falta de oferta de doses.
O epidemiologista Brahmar Mukherjee diz que a Índia precisa administrar 10 milhões de doses por dia para vacinar todos os adultos nos próximos cinco a seis meses – presumindo que doses suficientes estejam disponíveis.
Ajudar na infraestrutura
Além do risco de novas variantes, a segunda onda de casos da Índia apresenta outro problema mais imediato para o mundo.
O país é um dos principais participantes da Covax, a iniciativa global de compartilhamento de vacinas que oferece doses com desconto ou gratuitas para países de baixa renda.
A Índia prometeu fornecer 200 milhões de doses para a Covax que estão sendo distribuídas para 92 países pobres. Mas sua própria situação de piora rápida fez com que Delhi mudasse o foco da iniciativa Covax para priorizar seus próprios cidadãos.
O Serum Institute of India (SII) já entregou 28 milhões de doses da vacina da AstraZeneca, mas deveria enviar outras 90 milhões de doses em março e abril. As entregas podem se atrasar devido ao aumento da demanda na Índia.
“Não acho que os líderes globais tenham acordado para o fato de como esse atraso pode ser ruim para o mundo”, disse Shruti Rajagopalan, pesquisadora sênior do Mercatus Center da Universidade George Mason.
No momento em que a Índia sofre com falta de vacinas e mantém seus suprimentos para fins domésticos, outros países como a África do Sul e o Brasil terão que esperar. “Isso vai atrasar a vacinação no mundo por muitos meses”, acrescentou Shruti.
John Nkengasong, diretor do órgão de controle de doenças da África, alertou no início deste mês que o controle das exportações da Índia poderia ser “catastrófico” para a implantação de vacinas no continente.
Apesar da interrupção do abastecimento indiano, a iniciativa Covax disse que estava prestes a entregar todas as doses programadas no primeiro semestre deste ano e, até o final do ano, espera fornecer dois bilhões de doses.
A experiência indiana ressaltou a importância de diversificar a cadeia de abastecimento. Além disso, a Covax estava tentando fazer acordos com mais fabricantes de vacinas, que seriam anunciados em breve.
Resposta do primeiro-ministro
Antes da crise do coronavírus, a Índia assumiu uma posição de liderança no esforço global para acabar com a pandemia.
O primeiro-ministro Narendra Modi prometeu milhões de doses para a iniciativa Covax e, no início deste ano, doou vacinas para outros países, incluindo Guiana, Guatemala, Seychelles e Maldivas.
A generosidade do primeiro-ministro, no entanto, não o protegeu da ira do seu povo por causa de seu suposto papel no agravamento da crise de saúde doméstica.
Modi permitiu, por exemplo, uma enorme peregrinação hindu com duração de semanas, na qual milhões de participantes viajaram por vários estados. Além disso, seu partido político realizou grandes comícios para as próximas eleições em quatro estados e um território.
O primeiro-ministro reconheceu a dimensão da crise e está tentando acelerar o programa de vacinação nacional. A partir de 1º de maio, governos estaduais e provedores privados poderão vacinar maiores de 18 anos.
O custo de cada dose da vacina também está caindo, depois que o Serum Institute of India (SII) disse que cobraria menos por dose para que os estados possam vacinar mais pessoas. Com efeito imediato, cada dose custará 300 rupias (cerca de R$ 21,6), abaixo de 400 rúpias (cerca de R$ 28,8), disse o SII.
Mas, com centenas de milhares de novos casos a cada dia, a Índia precisa de muito mais ajuda para conter o surto.
Luta da OMC
A Índia tentou criar mais flexibilidade no mercado de vacinas.
Em uma reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC) no ano passado, Índia e África do Sul propuseram que a organização suspendesse temporariamente as patentes em um esforço para aumentar a produção de vacinas para a Covid-19 para nações de baixa renda.
A iniciativa foi apoiada por mais de 80 países em desenvolvimento. Uma proibição temporária permitiria que vários produtores começassem a fabricação mais cedo, em vez de tê-la concentrada nas mãos de um pequeno número de detentores de patentes, como relatou a revisrta “The Lancet”.
Mas os países mais ricos, incluindo Grã-Bretanha, Suíça, países da UE e os EUA, bloquearam a ação, argumentando que a suspensão da patente não resultaria em um aumento repentino no fornecimento de vacinas.
Protegê-la encorajaria a pesquisa e a inovação, eles disseram.
Jha, da Escola de Saúde Pública da Universidade Brown, disse que a patente não foi o principal obstáculo para mais vacinas, mas sim falta de capacidade de produção.
“Se disponibilizarmos a patente hoje, não adicionaremos vacinas hoje. É uma questão de transferência de tecnologia, de conhecimento de como fazer vacinas. Na verdade, trata-se de um agente biológico complexo. Não está claro para mim se a Índia tem uma grande capacidade de vacinação não utilizada. O ponto é como construir novas capacidades”, disse Jha.
No entanto, isso traz as coisas de volta à estaca zero. Quanto mais tempo o sistema de saúde da Índia for incapaz de responder à crise de saúde pública e quanto mais tempo as vacinas permanecerem em falta, mais tempo o vírus continuará a ser uma ameaça para o mundo.
A pandemia global precisa de uma resposta coordenada global.
“Essa é a razão pela qual nós e outros países ricos temos que exercer o que considero uma responsabilidade moral para ajudar o resto do mundo a controlar tudo isso”, disse Fauci.
“Daqui a um ano estaremos em muito melhor forma do que estamos agora, mas outros países não estarão. Quanto mais rápido conseguirmos proteger o resto do mundo, mais segura será nossa proteção”