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    Conflitos étnicos e hostilidade com o Ocidente marcam 30 anos do fim da URSS

    Dissolução do antigo bloco comunista foi seguida de declínio e posterior retomada da Rússia e aproximação de algumas ex-repúblicas soviéticas com Ocidente

    Catedral de São Basílio, na Praça Vermelha, Moscou, em 1987
    Catedral de São Basílio, na Praça Vermelha, Moscou, em 1987 Gamma-Rapho via Getty Images

    Marcelo Tuvucacolaboração para a CNN

    Em 26 de dezembro de 1991, o Soviete Supremo reconheceu a independência dos 15 territórios que formavam a URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) e dissolveu, oficialmente, a superpotência comunista que antagonizou com os Estados Unidos na Guerra Fria.

    Foi a conclusão de um processo que durou alguns anos, passando pelas reformas idealizadas pelo líder soviético Mikhail Gorbachev ainda nos anos 1980; a queda do muro de Berlim e o fim dos governos “satélites” da União Soviética no Leste Europeu; a onda de protestos e conflitos que atingiu a região durante essa transição; e, por fim, a dissolução da própria URSS depois de 69 anos de história.

    Além da Rússia, 14 repúblicas se tornaram independentes, sendo que três delas – Estônia, Letônia e Lituânia – se afastaram imediatamente do legado soviético, posteriormente ingressando na União Europeia e na Otan (Organização do Atlântico Norte, o braço militar do Ocidente, liderado pelos Estados Unidos).

    As repúblicas restantes se dividiram entre aquelas que continuaram aliadas à Rússia e outras que tiveram relações mais tumultuadas com o Kremlin ao longo dos anos. É o caso, por exemplo, de Geórgia e Ucrânia, que entraram em disputa territorial com os russos e também buscaram apoio de Estados Unidos e Europa nesses conflitos.

    Para boa parte dos analistas do Ocidente, a queda da União Soviética representou a “vitória do modelo de democracia liberal ocidental”, como definiu o norte-americano Francis Fukuyama no livro “O Fim da História” (1992).

    O status dos Estados Unidos como a única superpotência do mundo sugeriu, segundo essas análises, o nascimento de uma ordem unipolar, capitalista, que se estenderia ao resto do mundo.

    Trinta anos depois, no entanto, o cenário é outro. Do lado oriental, o “mergulho” da Rússia e ex-repúblicas comunistas no capitalismo liberal, no início dos anos 1990, renderam uma crise econômica e de identidade desses países – turbulência que motivaria, entre outras coisas, a ascensão do governo centralizador de Vladimir Putin e em uma nova polarização com a Otan.

    Estados Unidos e Europa, por sua vez, também enfrentaram diversos obstáculos nos últimos 30 anos: guerras prolongadas, impopulares e de efeitos negativos no Oriente Médio; crises econômicas; a ascensão econômica da China e a consequente perda de influência americana no cenário internacional.

    Para discutir a dissolução da União Soviética e seus efeitos 30 anos depois, a CNN ouviu três especialistas em assuntos ligados à Rússia e à União Soviética: Fabiano Mielniczuk, coordenador do programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul); Vicente Ferraro, mestre em Ciência Política pela Higher School of Economics de Moscou; e Cesar Albuquerque, pesquisador no Laboratório de Estudos da Ásia da Universidade São Paulo.

    O fator Gorbachev

    Na noite de 25 de dezembro de 1991, a bandeira vermelha soviética foi baixada do Kremlin pela última vez, agora substituída pela da Federação Russa, tricolor.

    Horas antes, naquele mesmo dia, o líder soviético, Mikhail Gorbachev, renunciou e cedeu os poderes e códigos nucleares da ex-URSS para Boris Yeltsin, presidente da Rússia. O fim do bloco comunista estava consolidado.

    Gorbachev foi um dos principais protagonistas desse processo de dissolução. Ao chegar ao poder, em 1984, o líder colocou em prática um plano de reforma do modelo comunista, elaborando as políticas da perestroika (reconstrução) e glasnost (abertura).

    “Houve várias tentativas de reforma do sistema soviético, ainda nos anos 1960 e 1970. Mas foi Gorbachev quem transformou isso em projeto e colocou na prática”, resume Cesar Albuquerque.

    Mikhail Gorbachev, ex-líder da União Soviética, em 30 de maio de 1990 / Getty Images

    O professor, estudioso do governo Gorbachev, afirma que o líder percebeu que o modelo marxista de economia planificada se mostrava insustentável naquele momento.

    Além disso, os custos militares com a Guerra Fria haviam engessado a capacidade de investimento da União Soviética. “Ele buscou liberar esses recursos. Gorbachev levantou a bandeira da política externa, negociou com os Estados Unidos e percebeu que um sistema de coexistência e cooperativa econômica seria mais vantajoso para os dois lados.”

    Outra postura importante de Gorbachev, segundo Albuquerque, foi de não interferir no fim dos regimes-satélites dos soviéticos, como Alemanha Oriental, Tchecoslováquia, Polônia, Romênia, Hungria, Bulgária e Albânia.

    “Em vez de mobilizar o Exército Vermelho, Gorbachev respeitou a soberania dos países. Em troca, ele fez algumas negociações – como, por exemplo, pelo não avanço da Otan pela Europa Oriental”, conta o pesquisador.

    Repúblicas em protesto

    Nesse mesmo período, entre 1988 e 1991, vários protestos de rua e movimentos políticos contrários à União Soviética surgiram no bloco, evidenciando os conflitos étnicos e a ascensão de movimentos nacionalistas.

    Estônia, Lituânia e Letônia, historicamente mais resistentes ao domínio soviético, logo buscaram a independência, impulsionadas pela divulgação de detalhes envolvendo um pacto secreto entre Joseph Stalin e Adolf Hitler que levou os países a serem incorporados pela URSS em 1940.

    A abertura política gradual também rendeu a Gorbachev resistência na própria Rússia, agora liderada pelo seu ex-aliado Boris Yeltsin. Ele também enfrentou outros conflitos étnicos, como a disputa entre Azerbaijão e Armênia pela região de Nagorno-Karabakh – que, ainda hoje, tem maioria armênia, mas é controlada pelo governo azeri.

    Países como Moldávia, Geórgia e Ucrânia, além de regiões dentro da própria Rússia, como Chechênia, Abkházia e Ossétia do Sul, também se declaram independentes da URSS em algum momento. Em comum, estão os confrontos envolvendo os diferentes povos que habitam a região.

    “A dissolução da União Soviética teve um impacto grande na questão da nacionalidade”, diz Cesar Albuquerque. “No período soviético, esses conflitos étnicos eram controlados pela força militar. Com o enfraquecimento, essas questões voltam à tona e o desfecho se torna incontornável.”

    Albuquerque cita um referendo popular que apontou, em março de 1991, a preferência da maioria dos soviéticos, em pelo menos nove repúblicas, de que o bloco continuasse unido em um Estado, não socialista. A votação, no entanto, não satisfez os grupos separatistas.

    Gorbachev, pressionado tanto pelo grupo de Yeltsin, pró-independência, quanto pelos comunistas contrários às reformas e à descentralização do Estado, perdeu cada vez mais força.

    Em agosto de 1991, o grupo comunista pró-URSS fracassou na tentativa de um golpe para depor Gorbachev e prender Yeltsin. “Foi a última tentativa de reestruturar o sistema, que acabou sepultando-o em definitivo”, resume Albuquerque.

    Em 8 de dezembro, Yeltsin, consolidado como presidente da Rússia, e os líderes de Ucrânia e Belarus assinaram um acordo que indicava o fim da União Soviética e criava a Comunidade dos Estados Independentes, um novo bloco de parceria entre as repúblicas. O fim da URSS foi a consequência imediata.

    “A leitura final é que o sistema soviético começou a cair sem que outro fosse estruturado para substitui-lo”, conclui o pesquisador. “Desmontaram os sistemas da economia planificada, do partido único, e a velocidade do processo simplesmente não foi acompanhado por um novo modelo”, define Albuquerque.

    O mergulho caótico da Rússia no capitalismo

    Se o período da dissolução foi conturbado, a década que estava por vir reservava novas e diferentes dificuldades. Na Rússia, uma política agressiva chamada “terapia de choque”, elaborada pelo governo Yeltsin com a assessoria do FMI (Fundo Monetário Internacional), injetou o capitalismo e a economia no país.

    A privatização das grandes estatais soviéticas representou uma das medidas mais controversas dessa política. O governo russo criou um sistema em que transformava ações das estatais em vouchers, que eram entregues à população.

    “Foi um processo muito mal planejado pelo FMI e pelo Ocidente. Basicamente, estimaram o PIB [Produto Interno Bruto] da URSS no momento que ela foi dissolvida e pulverizaram o valor entre os russos”, explica Fabiano Mielniczuk. “Mas eles não podiam fazer nada com o voucher, porque não tinham dinheiro para comprar comida.”

    Essa política também resultou no surgimento dos “oligarcas” russos que compraram a maior parte dos vouchers da população por valores abaixo do que estava indicado. Esse grupou passou a controlar as grandes empresas do país e dar as cartas na economia e na política.

    Boris Yeltsin, ex-presidente da Rússia / Bettmann Archive/Getty Images

    Em meio a suspeitas de corrupção e conluio com políticos, inclusive Yeltsin, os oligarcas também eram acusados de criminosos pela população – um ponto que é defendido por Mielniczuk.

    “Quem tinha dinheiro para comprar ações naquela época? Aqueles que já lucravam, durante o período da URSS, com o mercado negro, tráfico de armas e bebidas, prostituição. Foram eles que se tornaram os oligarcas dos anos 1990, e ganharam tanto poder que compraram órgãos de imprensa e garantiram a reeleição do Yeltsin em 1996”, diz o professor.

    Enquanto o grupo de empresários acumulava riquezas, o país entrou em um grave período de crise econômica, marcado por uma inflação galopante, desvalorização da moeda nacional, o rublo, e uma crescente insatisfação com o governo e com o Ocidente, vistos como o responsável pelo ingresso fracassado do país no sistema capitalista.

    Yeltsin renunciou em 31 de dezembro de 1999 e indicou para a presidência Vladimir Putin, então primeiro-ministro e ex-agente da KGB, o antigo Serviço Secreto soviético. “A Rússia estava implodindo, e essa nova elite estava comandando o Estado. Para o Yelstin, a saída foi colocar Putin”, explica o professor. “Ele ainda era uma figura sem expressão, mas tinha experiência em inteligência e conhecia os podres dos oligarcas”, completa Mielniczuk.

    A ascensão de Putin e a retomada russa

    Putin subiu ao poder em meio à Segunda Guerra da Chechênia, região no sul do país dominada por grupos separatistas. Sob comando do novo presidente, as tropas federais retomam o controle e debelam o conflito, e a Rússia começou a viver um novo período.

    “O desempenho na crise impulsiona sua popularidade e o prestígio militar russo, que estava muito debilitado. A população vê Putin como um líder forte, disposto a fortalecer o Estado e recuperar o status geopolítico de grande potência”, diz Vicente Ferraro. “É um contraste em relação a Yeltsin, fraco e impopular.”

    Em seus primeiros anos de governo, Putin retoma a centralização do Estado e tira poder dos governadores e das elites regionais, assim como dos oligarcas, estatizando órgãos de imprensa e empresas exportadoras de recursos naturais. O país também enfrenta um crescimento econômico com a valorização do petróleo e gás no mercado internacional, ampliando a popularidade do novo presidente.

    O presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante teleconferência em Moscou
    Presidente da Rússia, Vladimir Putin / Trabalharemos com qualquer pessoa que tenha a confiança do povo americano”

    Tão importante quanto a retomada econômica e a centralização do Estado foram as ações de Putin para reacender o nacionalismo e o orgulho dos russos, abalado depois da década de 1990. Ao mesmo tempo, cresce o ressentimento em relação ao Ocidente, tanto pela participação na transição caótica para o capitalismo quanto pela expansão da União Europeia e da Otan pela região de influência da Rússia.

    Nesse ponto específico, estão no contexto a entrada na Otan, a partir de 1999, de dez países que fizeram parte do Pacto de Varsóvia, aliança militar liderada pela URSS que foi dissolvida em 1991. A lista inclui Polônia, Estônia, Letônia e Lituânia, que fazem fronteira com a Rússia; Geórgia e Ucrânia, hoje antagonistas de Moscou, também negociaram para ingressar na organização.

    Para o governo Putin, essa expansão é inaceitável e indica a hostilidade dos Estados Unidos e do Ocidente em relação à Rússia. “A Otan e o Pacto de Varsóvia foram alianças militares criadas para proteger seus respectivos blocos na Guerra Fria. O Pacto de Varsóvia foi desfeito, enquanto a Otan expandiu suas fronteiras. Ela pressupõe que ainda havia algo que deveria ser combatido; no caso, a Rússia”, diz Fabiano Mielniczuk.

    Conflito de narrativas na Ucrânia

    Para o Kremlin, esses movimentos indicam o objetivo do Ocidente de afastar antigos aliados do país e estimular o separatismo em regiões russas para enfraquecer Moscou. Segundo os analistas, essa é uma das explicações para o atual confronto na Ucrânia, sintetizado em um conflito de narrativas entre o lado ocidental e os russos.

    Em 2013, o então presidente ucraniano, Viktor Yanukovych, suspendeu a assinatura de um tratado econômico com a União Europeia e fechou um acordo com os russos, estimulando uma onda de protestos no país que levariam a sua deposição em fevereiro de 2014.

    Putin reagiu anexando a Crimeia, enquanto Donetsk e Lugansk, no leste ucraniano, se declararam independentes; as três regiões têm maioria étnica de russos. “Para Moscou, está acontecendo uma guerra étnica na Ucrânia, e essas regiões se rebelaram contra um golpe de Estado estimulado pelo Ocidente”, diz Vicente Ferraro. “Segundo a Ucrânia, o país foi invadido pela Rússia, e o separatismo nasceu por esse motivo. Acho que as duas narrativas têm um pouco de sentido.”

    Tropas Rússia Ucrânia
    Tropas russas próximas à fronteira com a Ucrânia / Reuters

    De acordo com Fabiano Mielniczuk, os milhares de militares russos posicionados na fronteira leste da Ucrânia indicam que a anexação dessas regiões acontecerá em breve, já no início de 2022.

    “A probabilidade de a Ucrânia ser dividida no meio é alta. Isso pode aumentar a popularidade do Putin, que não terá problemas em administrar essas regiões, e vai criar um problema para a Europa resolver no futuro”, diz Mielniczuk, que considera difícil uma intervenção norte-americana, ou da Otan, para conter as tropas russas.

    “Isso causaria um conflito nuclear”, diz.

    O futuro da Rússia e do autoritarismo na região

    Mielniczuk aponta que a estratégia de Putin, para além do conflito na Ucrânia, é ganhar força em sua negociação comercial com a Europa, que depende dos gasodutos russos para geração de energia. “No momento em que as tensões entre EUA e China ficarem mais fortes, isso vai tirar um pouco o foco da Rússia e abrirá espaço para a negociação com os europeus”, prevê.

    Para Vicente Ferraro, no entanto, o foco de Putin nas ações militares também pode render problemas para o país no longo prazo. “Essas táticas intervencionistas podem aprofundar medidas de isolamento, como as sanções econômicas impostas pelo Ocidente, e gerar instabilidade regional e desconfiança em países vizinhos, minando projetos de integração promovidos por Moscou e debilitando a própria economia”, diz o especialista.

    Enquanto isso, Putin mantém um Estado centralizado nas suas mãos, uma característica que também aparece nas ex-repúblicas soviéticas que permanecem mais aliadas a Moscou, como Belarus, Azerbaijão, Tadjiquistão, Turcomenistão, Uzbequistão e Cazaquistão.

    No caso das quatro repúblicas da Ásia Central, Ferraro diz que, ao contrário dos países do leste europeu, a percepção sobre o período soviético é mais positivo. “Foi uma era associada à industrialização, escolarização e ao desenvolvimento econômico” conta. “Vários fatores contribuíram para o estabelecimento de regimes autoritários: fraca oposição, baixa pressão política e distância geográfica do Ocidente, ausência de incentivos para integração com a Europa”, explica Ferraro.

    Mísseis são disparados de testes militares russos em novembro / Foto: Yuri Smityuk\TASS via Getty Images

    Para ele, há alguma expectativa de maior abertura política nesses países, mas não para os próximos anos. “No longo prazo, insatisfações econômicas têm o potencial de levar a uma maior mobilização popular contra esses regimes”, diz ele.

    Trinta anos depois, o antigo território soviético e seu maior país, a Rússia, ainda enfrentam boa parte dos problemas que lidou com a queda do regime: conflitos étnicos, desafios econômicos, governos centralizados e relações tumultuadas com os vizinhos. O futuro imaginado por analistas ocidentais em 1991, no entanto, se mostrou bem diferente.

    “Nesse contexto da ordem unipolar, assistimos a práticas intervencionistas dos EUA e da OTAN, sem o consentimento de organismos internacionais. Mas esse movimento tem sucumbido com a ascensão da China, a retomada geopolítica da Rússia, contestações à globalização, crises em algumas democracias e a difusão de autoritarismos”, diz Vicente Ferraro.

    “Em resumo: o cenário otimista pós-Guerra Fria veio por água abaixo, mas ainda é cedo para projetarmos as consequências da quebra da ordem unipolar e desse momento conturbado que vivemos.”