Conflitos étnicos e hostilidade com o Ocidente marcam 30 anos do fim da URSS
Dissolução do antigo bloco comunista foi seguida de declínio e posterior retomada da Rússia e aproximação de algumas ex-repúblicas soviéticas com Ocidente
Em 26 de dezembro de 1991, o Soviete Supremo reconheceu a independência dos 15 territórios que formavam a URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) e dissolveu, oficialmente, a superpotência comunista que antagonizou com os Estados Unidos na Guerra Fria.
Foi a conclusão de um processo que durou alguns anos, passando pelas reformas idealizadas pelo líder soviético Mikhail Gorbachev ainda nos anos 1980; a queda do muro de Berlim e o fim dos governos “satélites” da União Soviética no Leste Europeu; a onda de protestos e conflitos que atingiu a região durante essa transição; e, por fim, a dissolução da própria URSS depois de 69 anos de história.
Além da Rússia, 14 repúblicas se tornaram independentes, sendo que três delas – Estônia, Letônia e Lituânia – se afastaram imediatamente do legado soviético, posteriormente ingressando na União Europeia e na Otan (Organização do Atlântico Norte, o braço militar do Ocidente, liderado pelos Estados Unidos).
As repúblicas restantes se dividiram entre aquelas que continuaram aliadas à Rússia e outras que tiveram relações mais tumultuadas com o Kremlin ao longo dos anos. É o caso, por exemplo, de Geórgia e Ucrânia, que entraram em disputa territorial com os russos e também buscaram apoio de Estados Unidos e Europa nesses conflitos.
Para boa parte dos analistas do Ocidente, a queda da União Soviética representou a “vitória do modelo de democracia liberal ocidental”, como definiu o norte-americano Francis Fukuyama no livro “O Fim da História” (1992).
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O status dos Estados Unidos como a única superpotência do mundo sugeriu, segundo essas análises, o nascimento de uma ordem unipolar, capitalista, que se estenderia ao resto do mundo.
Trinta anos depois, no entanto, o cenário é outro. Do lado oriental, o “mergulho” da Rússia e ex-repúblicas comunistas no capitalismo liberal, no início dos anos 1990, renderam uma crise econômica e de identidade desses países – turbulência que motivaria, entre outras coisas, a ascensão do governo centralizador de Vladimir Putin e em uma nova polarização com a Otan.
Estados Unidos e Europa, por sua vez, também enfrentaram diversos obstáculos nos últimos 30 anos: guerras prolongadas, impopulares e de efeitos negativos no Oriente Médio; crises econômicas; a ascensão econômica da China e a consequente perda de influência americana no cenário internacional.
Para discutir a dissolução da União Soviética e seus efeitos 30 anos depois, a CNN ouviu três especialistas em assuntos ligados à Rússia e à União Soviética: Fabiano Mielniczuk, coordenador do programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul); Vicente Ferraro, mestre em Ciência Política pela Higher School of Economics de Moscou; e Cesar Albuquerque, pesquisador no Laboratório de Estudos da Ásia da Universidade São Paulo.
O fator Gorbachev
Na noite de 25 de dezembro de 1991, a bandeira vermelha soviética foi baixada do Kremlin pela última vez, agora substituída pela da Federação Russa, tricolor.
Horas antes, naquele mesmo dia, o líder soviético, Mikhail Gorbachev, renunciou e cedeu os poderes e códigos nucleares da ex-URSS para Boris Yeltsin, presidente da Rússia. O fim do bloco comunista estava consolidado.
Gorbachev foi um dos principais protagonistas desse processo de dissolução. Ao chegar ao poder, em 1984, o líder colocou em prática um plano de reforma do modelo comunista, elaborando as políticas da perestroika (reconstrução) e glasnost (abertura).
“Houve várias tentativas de reforma do sistema soviético, ainda nos anos 1960 e 1970. Mas foi Gorbachev quem transformou isso em projeto e colocou na prática”, resume Cesar Albuquerque.
O professor, estudioso do governo Gorbachev, afirma que o líder percebeu que o modelo marxista de economia planificada se mostrava insustentável naquele momento.
Além disso, os custos militares com a Guerra Fria haviam engessado a capacidade de investimento da União Soviética. “Ele buscou liberar esses recursos. Gorbachev levantou a bandeira da política externa, negociou com os Estados Unidos e percebeu que um sistema de coexistência e cooperativa econômica seria mais vantajoso para os dois lados.”
Outra postura importante de Gorbachev, segundo Albuquerque, foi de não interferir no fim dos regimes-satélites dos soviéticos, como Alemanha Oriental, Tchecoslováquia, Polônia, Romênia, Hungria, Bulgária e Albânia.
“Em vez de mobilizar o Exército Vermelho, Gorbachev respeitou a soberania dos países. Em troca, ele fez algumas negociações – como, por exemplo, pelo não avanço da Otan pela Europa Oriental”, conta o pesquisador.
Repúblicas em protesto
Nesse mesmo período, entre 1988 e 1991, vários protestos de rua e movimentos políticos contrários à União Soviética surgiram no bloco, evidenciando os conflitos étnicos e a ascensão de movimentos nacionalistas.
Estônia, Lituânia e Letônia, historicamente mais resistentes ao domínio soviético, logo buscaram a independência, impulsionadas pela divulgação de detalhes envolvendo um pacto secreto entre Joseph Stalin e Adolf Hitler que levou os países a serem incorporados pela URSS em 1940.
A abertura política gradual também rendeu a Gorbachev resistência na própria Rússia, agora liderada pelo seu ex-aliado Boris Yeltsin. Ele também enfrentou outros conflitos étnicos, como a disputa entre Azerbaijão e Armênia pela região de Nagorno-Karabakh – que, ainda hoje, tem maioria armênia, mas é controlada pelo governo azeri.
Países como Moldávia, Geórgia e Ucrânia, além de regiões dentro da própria Rússia, como Chechênia, Abkházia e Ossétia do Sul, também se declaram independentes da URSS em algum momento. Em comum, estão os confrontos envolvendo os diferentes povos que habitam a região.
“A dissolução da União Soviética teve um impacto grande na questão da nacionalidade”, diz Cesar Albuquerque. “No período soviético, esses conflitos étnicos eram controlados pela força militar. Com o enfraquecimento, essas questões voltam à tona e o desfecho se torna incontornável.”
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Albuquerque cita um referendo popular que apontou, em março de 1991, a preferência da maioria dos soviéticos, em pelo menos nove repúblicas, de que o bloco continuasse unido em um Estado, não socialista. A votação, no entanto, não satisfez os grupos separatistas.
Gorbachev, pressionado tanto pelo grupo de Yeltsin, pró-independência, quanto pelos comunistas contrários às reformas e à descentralização do Estado, perdeu cada vez mais força.
Em agosto de 1991, o grupo comunista pró-URSS fracassou na tentativa de um golpe para depor Gorbachev e prender Yeltsin. “Foi a última tentativa de reestruturar o sistema, que acabou sepultando-o em definitivo”, resume Albuquerque.
Em 8 de dezembro, Yeltsin, consolidado como presidente da Rússia, e os líderes de Ucrânia e Belarus assinaram um acordo que indicava o fim da União Soviética e criava a Comunidade dos Estados Independentes, um novo bloco de parceria entre as repúblicas. O fim da URSS foi a consequência imediata.
“A leitura final é que o sistema soviético começou a cair sem que outro fosse estruturado para substitui-lo”, conclui o pesquisador. “Desmontaram os sistemas da economia planificada, do partido único, e a velocidade do processo simplesmente não foi acompanhado por um novo modelo”, define Albuquerque.
O mergulho caótico da Rússia no capitalismo
Se o período da dissolução foi conturbado, a década que estava por vir reservava novas e diferentes dificuldades. Na Rússia, uma política agressiva chamada “terapia de choque”, elaborada pelo governo Yeltsin com a assessoria do FMI (Fundo Monetário Internacional), injetou o capitalismo e a economia no país.
A privatização das grandes estatais soviéticas representou uma das medidas mais controversas dessa política. O governo russo criou um sistema em que transformava ações das estatais em vouchers, que eram entregues à população.
“Foi um processo muito mal planejado pelo FMI e pelo Ocidente. Basicamente, estimaram o PIB [Produto Interno Bruto] da URSS no momento que ela foi dissolvida e pulverizaram o valor entre os russos”, explica Fabiano Mielniczuk. “Mas eles não podiam fazer nada com o voucher, porque não tinham dinheiro para comprar comida.”
Essa política também resultou no surgimento dos “oligarcas” russos que compraram a maior parte dos vouchers da população por valores abaixo do que estava indicado. Esse grupou passou a controlar as grandes empresas do país e dar as cartas na economia e na política.
Em meio a suspeitas de corrupção e conluio com políticos, inclusive Yeltsin, os oligarcas também eram acusados de criminosos pela população – um ponto que é defendido por Mielniczuk.
“Quem tinha dinheiro para comprar ações naquela época? Aqueles que já lucravam, durante o período da URSS, com o mercado negro, tráfico de armas e bebidas, prostituição. Foram eles que se tornaram os oligarcas dos anos 1990, e ganharam tanto poder que compraram órgãos de imprensa e garantiram a reeleição do Yeltsin em 1996”, diz o professor.
Enquanto o grupo de empresários acumulava riquezas, o país entrou em um grave período de crise econômica, marcado por uma inflação galopante, desvalorização da moeda nacional, o rublo, e uma crescente insatisfação com o governo e com o Ocidente, vistos como o responsável pelo ingresso fracassado do país no sistema capitalista.
Yeltsin renunciou em 31 de dezembro de 1999 e indicou para a presidência Vladimir Putin, então primeiro-ministro e ex-agente da KGB, o antigo Serviço Secreto soviético. “A Rússia estava implodindo, e essa nova elite estava comandando o Estado. Para o Yelstin, a saída foi colocar Putin”, explica o professor. “Ele ainda era uma figura sem expressão, mas tinha experiência em inteligência e conhecia os podres dos oligarcas”, completa Mielniczuk.
A ascensão de Putin e a retomada russa
Putin subiu ao poder em meio à Segunda Guerra da Chechênia, região no sul do país dominada por grupos separatistas. Sob comando do novo presidente, as tropas federais retomam o controle e debelam o conflito, e a Rússia começou a viver um novo período.
“O desempenho na crise impulsiona sua popularidade e o prestígio militar russo, que estava muito debilitado. A população vê Putin como um líder forte, disposto a fortalecer o Estado e recuperar o status geopolítico de grande potência”, diz Vicente Ferraro. “É um contraste em relação a Yeltsin, fraco e impopular.”
Em seus primeiros anos de governo, Putin retoma a centralização do Estado e tira poder dos governadores e das elites regionais, assim como dos oligarcas, estatizando órgãos de imprensa e empresas exportadoras de recursos naturais. O país também enfrenta um crescimento econômico com a valorização do petróleo e gás no mercado internacional, ampliando a popularidade do novo presidente.
Tão importante quanto a retomada econômica e a centralização do Estado foram as ações de Putin para reacender o nacionalismo e o orgulho dos russos, abalado depois da década de 1990. Ao mesmo tempo, cresce o ressentimento em relação ao Ocidente, tanto pela participação na transição caótica para o capitalismo quanto pela expansão da União Europeia e da Otan pela região de influência da Rússia.
Nesse ponto específico, estão no contexto a entrada na Otan, a partir de 1999, de dez países que fizeram parte do Pacto de Varsóvia, aliança militar liderada pela URSS que foi dissolvida em 1991. A lista inclui Polônia, Estônia, Letônia e Lituânia, que fazem fronteira com a Rússia; Geórgia e Ucrânia, hoje antagonistas de Moscou, também negociaram para ingressar na organização.
Para o governo Putin, essa expansão é inaceitável e indica a hostilidade dos Estados Unidos e do Ocidente em relação à Rússia. “A Otan e o Pacto de Varsóvia foram alianças militares criadas para proteger seus respectivos blocos na Guerra Fria. O Pacto de Varsóvia foi desfeito, enquanto a Otan expandiu suas fronteiras. Ela pressupõe que ainda havia algo que deveria ser combatido; no caso, a Rússia”, diz Fabiano Mielniczuk.
Conflito de narrativas na Ucrânia
Para o Kremlin, esses movimentos indicam o objetivo do Ocidente de afastar antigos aliados do país e estimular o separatismo em regiões russas para enfraquecer Moscou. Segundo os analistas, essa é uma das explicações para o atual confronto na Ucrânia, sintetizado em um conflito de narrativas entre o lado ocidental e os russos.
Em 2013, o então presidente ucraniano, Viktor Yanukovych, suspendeu a assinatura de um tratado econômico com a União Europeia e fechou um acordo com os russos, estimulando uma onda de protestos no país que levariam a sua deposição em fevereiro de 2014.
Putin reagiu anexando a Crimeia, enquanto Donetsk e Lugansk, no leste ucraniano, se declararam independentes; as três regiões têm maioria étnica de russos. “Para Moscou, está acontecendo uma guerra étnica na Ucrânia, e essas regiões se rebelaram contra um golpe de Estado estimulado pelo Ocidente”, diz Vicente Ferraro. “Segundo a Ucrânia, o país foi invadido pela Rússia, e o separatismo nasceu por esse motivo. Acho que as duas narrativas têm um pouco de sentido.”
De acordo com Fabiano Mielniczuk, os milhares de militares russos posicionados na fronteira leste da Ucrânia indicam que a anexação dessas regiões acontecerá em breve, já no início de 2022.
“A probabilidade de a Ucrânia ser dividida no meio é alta. Isso pode aumentar a popularidade do Putin, que não terá problemas em administrar essas regiões, e vai criar um problema para a Europa resolver no futuro”, diz Mielniczuk, que considera difícil uma intervenção norte-americana, ou da Otan, para conter as tropas russas.
“Isso causaria um conflito nuclear”, diz.
O futuro da Rússia e do autoritarismo na região
Mielniczuk aponta que a estratégia de Putin, para além do conflito na Ucrânia, é ganhar força em sua negociação comercial com a Europa, que depende dos gasodutos russos para geração de energia. “No momento em que as tensões entre EUA e China ficarem mais fortes, isso vai tirar um pouco o foco da Rússia e abrirá espaço para a negociação com os europeus”, prevê.
Para Vicente Ferraro, no entanto, o foco de Putin nas ações militares também pode render problemas para o país no longo prazo. “Essas táticas intervencionistas podem aprofundar medidas de isolamento, como as sanções econômicas impostas pelo Ocidente, e gerar instabilidade regional e desconfiança em países vizinhos, minando projetos de integração promovidos por Moscou e debilitando a própria economia”, diz o especialista.
Enquanto isso, Putin mantém um Estado centralizado nas suas mãos, uma característica que também aparece nas ex-repúblicas soviéticas que permanecem mais aliadas a Moscou, como Belarus, Azerbaijão, Tadjiquistão, Turcomenistão, Uzbequistão e Cazaquistão.
No caso das quatro repúblicas da Ásia Central, Ferraro diz que, ao contrário dos países do leste europeu, a percepção sobre o período soviético é mais positivo. “Foi uma era associada à industrialização, escolarização e ao desenvolvimento econômico” conta. “Vários fatores contribuíram para o estabelecimento de regimes autoritários: fraca oposição, baixa pressão política e distância geográfica do Ocidente, ausência de incentivos para integração com a Europa”, explica Ferraro.
Para ele, há alguma expectativa de maior abertura política nesses países, mas não para os próximos anos. “No longo prazo, insatisfações econômicas têm o potencial de levar a uma maior mobilização popular contra esses regimes”, diz ele.
Trinta anos depois, o antigo território soviético e seu maior país, a Rússia, ainda enfrentam boa parte dos problemas que lidou com a queda do regime: conflitos étnicos, desafios econômicos, governos centralizados e relações tumultuadas com os vizinhos. O futuro imaginado por analistas ocidentais em 1991, no entanto, se mostrou bem diferente.
“Nesse contexto da ordem unipolar, assistimos a práticas intervencionistas dos EUA e da OTAN, sem o consentimento de organismos internacionais. Mas esse movimento tem sucumbido com a ascensão da China, a retomada geopolítica da Rússia, contestações à globalização, crises em algumas democracias e a difusão de autoritarismos”, diz Vicente Ferraro.
“Em resumo: o cenário otimista pós-Guerra Fria veio por água abaixo, mas ainda é cedo para projetarmos as consequências da quebra da ordem unipolar e desse momento conturbado que vivemos.”