Como Geraldine Ferraro e Sarah Palin prepararam o terreno para Kamala Harris
Apenas três mulheres já concorreram à vice-presidência dos EUA pelos dois grandes partidos
NOTA DO EDITOR: Thomas Balcerski ensina história na Universidade Eastern Connecticut State. Ele é o autor de “Bosom Friends: The Intimate World of James Buchanan and William Rufus King” (“Amigos do peito: O mundo íntimo de James Buchanan e William Rufus King” (sem edição no Brasil). Ele tuíta em @tbalcerski. As opiniões expressas neste texto são dele.
Depois do caos do debate presidencial da última terça-feira (29), o confronto de vice-presidentes nesta quarta-feira (7), com transmissão da CNN Brasil, às 21h45, será um evento que todos acompanharão com atenção. Será que o vice-presidente Mike Pence e a senadora pela Califórnia Kamala Harris irão restaurar alguma aparência do decoro que vimos em anos anteriores?
Na história dos debates vice-presidenciais televisionados, dois se destacam pela enorme audiência que atraíram: a disputa de 1984 entre George H. W. Bush e Geraldine Ferraro e a competição de 2008 entre Joe Biden e Sarah Palin. O embate Bush-Ferraro foi o mais assistido evento na história do debate de vices, até ser superado pelo confronto Palin-Biden.
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Além da possibilidade de que o debate desta semana também uma audiência muito alta, o confronto também trará uma dinâmica semelhante à de seus predecessores de 1984 e 2008: uma candidata mulher enfrentando um adversário do sexo masculino. Kamala Harris enfrenta um desafio que muitas outras mulheres na política encontraram: a necessidade de ser dura nas questões e ao mesmo tempo ser simpática o suficiente para atrair os eleitores, uma expectativa que poucos políticos homens enfrentam.
Para Harris vencer o debate na quarta-feira, ela provavelmente precisará triangular-se entre a resistência mostrada por Geraldine Ferraro e a simpatia apresentada por Sarah Palin.
Será que o debate desta semana pode provar que a terceira vez dá sorte para uma candidata a vice-presidente? Vamos olhar novamente para esses dois embates de vices do passado para uma prévia do que pode estar por vir:
1984: Geraldine Ferraro x George H. W. Bush
Em 1984, Ronald Reagan estava em busca da reeleição e concorria contra o indicado democrata Walter Mondale, ex-vice-presidente de Jimmy Carter. Para ganhar terreno contra o popular Reagan, Mondale fez história ao escolher a então deputada Ferraro, de Nova York. Ele esperava atrair eleitoras, muitas delas foram desprezadas por Reagan.
Desde o início, Ferraro, que tinha a reputação de ser uma política forte e séria, enfrentou o sexismo evidente. A mídia questionou sua credibilidade como candidata e investigou seus antecedentes. A questão das relações financeiras de seu marido, incluindo a liberação de suas declarações fiscais, também a perseguiu durante a campanha. Esposa de Bush, Barbara Bush, descreveu Ferraro desta forma: “Eu não posso dizer isso, mas rima com faca”. (Ela mais tarde ligou para se desculpar, mas a confusão foi parar até no programa “Saturday Night Live”).
Em seu debate com Bush, Ferraro teve que caminhar sobre uma linha tênue entre parecer muito assertiva e não ser dura o suficiente. Antes do debate, o lado de Bush chegou a dizer que ela era “muito reclamona”. Mas ela deu a volta por cima exibindo o histórico de Reagan como presidente: “Vou me tornar o exército da verdade formado por uma mulher só”, ela prometeu, “e vamos começar hoje à noite”.
Bush defendeu Reagan, mas também se desviou para o chauvinismo masculino. Em um episódio vergonhoso do debate, ele recorreu ao puro e simples mansplaining ao falar: “Deixe-me ajudá-la com a diferença, Senhora Ferraro, entre o Irã e a embaixada no Líbano”.
Ferraro ficou indignada e atirou de volta uma frase aparentemente não ensaiada: “Deixe-me apenas dizer, antes de tudo, que quase me ofendo, vice-presidente Bush, com a atitude paternalista que o senhor tem ao querer me ensinar política externa”.
Como se isso não bastasse, Ferraro também enfrentou jornalistas sem noção. Durante o debate, um repórter perguntou se ela pensava que os soviéticos “poderiam ficar tentados a tentar tirar vantagem de você simplesmente porque você é uma mulher”.
Espectadores que assistiram deram a vitória no debate a Bush, e os resultados das eleições em novembro renderam uma vitória esmagadora para a chapa republicana. Mas Ferraro abriu novos caminhos e abriu o caminho para as futuras mulheres concorrerem a um grande partido.
“O verdadeiro teste da minha candidatura virá”, declarou a deputada em sua autobiografia de 1985, “quando a próxima mulher se candidatar a um cargo nacional”. Ferraro faleceu em 2011, aos 75 anos.
2008: Sarah Palin x Joe Biden
A decisão de John McCain de escolher Sarah Palin como sua companheira de chapa preocupou Barack Obama e a equipe de Joe Biden. A jovem governadora do Alasca exalava um charme folclórico, com versos coloridos sobre as mães do hóquei, “Joe Sixpack” (um apelido para o norte-americano comum) e uma frase de efeito sonoro: “Pode apostá!”
Mas Palin também soube usar o fato de ser apenas a segunda candidata a vice-presidente de um partido importante. Aproveitando o impulso da histórica corrida primária democrata de Hillary Clinton em 2008, ela declarou que “as mulheres dos Estados Unidos ainda não terminaram seu trabalho”.
Como Ferraro, Palin enfrentou pressões exclusivas das mulheres. Apesar de Palin rejeitar a ideia que o sexismo estava trabalhando contra ela, ela mais tarde enfrentou escrutínio intenso sobre o custo de seu guarda-roupa de campanha. A governadora do Alasca revidou, como Hillary Clinton havia feito antes dela, e condenou o “padrão duplo” na investigação que ganhou o apelido de “Guarda-roupagate”.
Uma entrevista desastrosa com a apresentadora Katie Couric, em que Sarah Palin parecia despreparada para o cargo, foi exibida apenas alguns dias antes do debate entre vices. E mesmo que a governadora ofuscasse o veterano senador de Delaware e atraísse multidões muito maiores em comícios políticos, ela enfrentava baixas expectativas antes do debate.
O debate começou de forma calma. Palin focou mas mensagens de campanha, apresentando-se como alguém de fora de Washington que fazia parte de uma “equipe de rebeldes” com o companheiro de chapa John McCain. Biden tentou ligar McCain ao governo Bush, e Palin questionou a prontidão de Obama para ser presidente.
Houve uma tensão perceptível quando o assunto mudou para como cada candidato poderia atuar como presidente. Biden repetiu a famosa pergunta retórica de Ronald Reagan de 1980, quando ele pediu aos eleitores que considerassem se o “governo do presidente George W. Bush melhorara sua situação nos últimos oito anos”.
A réplica de Palin? Uma das frases mais memoráveis do debate: “Ah, não diga que vai ser assim, Joe, lá vai você de novo voltando para o passado”. Até Biden não conseguiu evitar o riso.
Quase 70 milhões de espectadores assistiram o programa, estabelecendo um recorde de audiência nos debates de vice e ultrapassando a audiência de cada um dos três debates entre Obama e McCain. Mesmo que muitos tenham avaliado o desempenho de Palin como superior às expectativas, a mídia de entretenimento popular continuou zombando dela.
Nos anos seguintes, Palin abraçou o significado de sua candidatura como mulher concorrendo à Casa Branca, chegando a aconselhar Kamala Harris quando a senadora da Califórnia foi escolhida como companheira de chapa de Biden. Ela também provou ser uma figura duradoura na cultura popular norte-americana e já sugeriu que vai concorrer ao senado em 2022.
Como Geraldine Ferraro disse uma vez, “Cada vez que uma mulher concorre, as mulheres ganham”. Harris, a primeira mulher negra e com origens também no sul da Ásia a aparecer em uma grande eleição, já quebrou barreiras para as gerações futuras de mulheres negras. Se a resposta aos debates anteriores de vice-presidente de 1984 e 2008 servirem de indicação, milhões de norte-americanos entrarão em sintonia para vê-la em ação.
(Texto traduzido, leia o original em inglês).