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    Como a Califórnia se tornou referência na gestão da crise hídrica

    Estado mais populoso dos EUA é veterano em secas. Mudanças na legislação e na infraestrutura permitiram à região florescer apesar das adversidades climáticas

    Eloá Orazem, colaboração para a CNN, de Los Angeles

    “O governo não pode fazer chover, mas pode administrar o uso da água.” Foi essa a resposta que, em janeiro de 2014, o então governador da Califórnia, Jerry Brown, deu a um jornalista que o questionava sobre a crise hídrica que o estado mais populoso e rico dos Estados Unidos atravessava.

    Quem recorre frequentemente a esse simbólico diálogo é Jeanine Jones, gerente de recursos interestaduais do Departamento de Recursos Hídricos da Califórnia, órgão governamental criado em 1956 para lidar exclusivamente com os desafios hídricos da região.

    Em entrevista à CNN, a americana invocou a fala do ex-governador democrata para explicar, de maneira bastante direta, que não existe uma saída definitiva para o problema da seca, mas que há muito a ser feito para amenizar seu impacto. “O mais próximo que se pode chegar de uma solução é reduzir os danos”, diz Jeanine.

    Secas são fenômenos comuns no estado californiano, cujo clima semiárido mediterrâneo é comumente confundido com o desértico, dadas as semelhanças. “O período mais seco registrado pelos nossos estudos na região aconteceram nos anos entre 1920 e 1930. Depois tivemos uma grave crise hídrica em 1976 e 1977, e mais seis anos de seca entre 1987 e 1992”, conta Jeanine.

    No século atual, a primeira emergência por seca foi entre 2007 e 2009, seguida por uma seca de cinco anos entre 2012 a 2016. Agora, novamente, o estado enfrenta o segundo ano consecutivo de condições de seca. Jeanine atenta para o fato de que, neste século, as crises hídricas estão mais frequentes e menos intervaladas, e com piores condições, uma vez que as temperaturas estão escalando.

    A situação da Califórnia é tão crítica que, no dia 8 de julho, o atual governador do estado, o também democrata Gavin Newson, estendeu para 50 condados a declaração de emergência hídrica. Isso significa que 42% da população local vive em área ameaçada, já que a declaração de emergência somente é colocada em vigor quando as projeções de abastecimento de água ficam inferiores a 75% da média.

    Apesar do alarme, a população não se mostra abalada e parece confiar nas estratégias regionais. “Depois de passar por tantas crises hídricas você finalmente entende que a seca sempre será um risco e uma ameaça, e que a única coisa que podemos fazer é nos preparar para ela”, diz Jeanine.

    Com uma infraestrutura bilionária já ativa e operante, é provável que a seca não provoque grandes mudanças na vida dos californianos. No Brasil, além do risco de apagões e de desabastecimento, as contas de água e luz foram reajustadas, colocando no bolso do consumidor a principal estratégia de conscientização de consumo.

    O prejuízo, contudo, não fica apenas com o contribuinte. Embora não haja uma estimativa da perda econômica por conta da crise, um levantamento publicado pela Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul), em junho do ano passado, estimou em R$ 36,1 bilhões as perdas apenas para a economia do Estado com a seca que prejudicou a agricultura entre dezembro de 2019 e janeiro de 2020. O valor corresponde a quase 8% do PIB local.

    Na Califórnia, os cálculos de Jay Lund, professor de Engenharia Civil e Ambiental na Universidade UCDavis e membro da Academia Nacional de Engenharia, estimam que o estado tenha perdido apenas US$ 10 bilhões ao longo de cinco anos, ou 0,09% de sua economia.

    À CNN, Lund revela como o estado conseguiu solucionar a equação de ter mais secas e menos prejuízo financeiro, social e cultural: “Toda crise hídrica é como um teste, em que você tem que repetir tudo o que foi bem sucedido no passado, e acrescentar algo mais”.

    O sucesso das políticas e estratégias californianas é tanto que o Departamento de Recuros Hídricos do estado é assediado por órgãos de diferentes regiões dos Estados Unidos e além. Segundo Akiela Moses, porta-voz da instituição, não há informações sobre interesse brasileiro em um dos projetos, mas isso não significa que a agência não tenha sido acionada por autoridades do Brasil em algum momento. 

    Estruturar para aguentar

    Não se enfrenta uma seca apenas fechando a torneira. A Califórnia aprendeu essa lição há décadas. O estado investiu na construção de tubulações inter-regionais, projetos locais de armazenamento de água, armazenamento de água subterrânea, reutilização de águas residuais, e planos de contingência.

    Hoje mais de 1,5 mil reservatórios e represas compõem o sistema de irrigação local, dos quais 240 são administrados por agências federais e estaduais, e respondem por 60% de toda a capacidade de armazenamento regional.

    Centro de filtragem e decantação em aqueduto na Califórnia
    Um conjunto de portões é mostrado onde o trabalho de reparo de filtragem e decantação está sendo feito num aqueduto californiano perto de Lost Hills, no condado de Kern
    Foto: California Department of Water Resources

    Milhares de quilômetros de tubulações interligam os reservatórios, e permitem que o governo leve água de uma região a outra, mesmo que distante, administrando focos mais críticos. “Temos um sistema de irrigação parrudo e muita água subterrânea. Isso nos ajuda a atravessar longos períodos de seca, de até dois anos, dependendo da gravidade”, conta Lund.

    Além dessas soluções, a Califórnia também lança mão da dessalinização. Atualmente, o estado conta com 11 usinas do tipo e avalia a construção de outras 10. Mas esse método de purificar água salobra é pouco vantajoso do ponto de vista financeiro, por conta do alto consumo de energia. Enquanto mil galões de água “convencional” custam US$ 2 ao consumidor, os mesmos mil galões de água dessalinizada custariam entre US$ 2,5 e US$ 5.

    Um americano típico usa de 80 a 100 galões de água por dia, de acordo com o U.S. Geological Survey. O país inteiro consome cerca de 400 bilhões de galões diariamente. Mesmo com essa desvantagem, as usinas de dessalinização servem de apoio para a administração da crise hídrica, e podem fazer a diferença em anos mais secos.

    Economia diversa

    A crise hídrica não chega a comprometer a fertilidade da economia californiana, cujo PIB de 2020 passou dos US$ 3 trilhões. É que gradualmente o estado foi se tornando independente de atividades que consomem muita água, como a agricultura. Esse setor respondia por 30% da economia da Califórnia em 1920; hoje é responsável por menos de 4% do PIB estadual – e ainda assim consome 80% da água disponível.

    O setor agrícola também tem suas estratégias bem definidas para lidar com a crise hídrica. Historicamente, minimizou suas perdas financeiras alocando água e esforços em safras de maior valor, como as amêndoas. Mas a situação atual é tão drástica que muitos fazendeiros estão derrubando suas plantações e buscando produtos que consumam menos água em seu cultivo. 

    Plantação de amêndoas é derrubada na Califórnia
    Plantação de amêndoas é derrubada na Califórnia por causa da seca. Fazendeiros estão substituindo amendoeiras por produtos com menos consumo de água em seu cultivo
    Foto: Justin Sullivan/Getty Images

     

    De qualquer forma, cerca de 85% do emprego e da receita bruta da agricultura local é proveniente das safras de frutas, nozes e vegetais, que usam menos da metade de toda a área irrigada. O restante da terra agrícola e o uso da água suportam grãos e colheitas de alimentos. A produção de leite e gado de corte representa cerca de um quarto de todo o valor agrícola e depende da produção de silagem local e de fora do estado.

    O uso da água urbana tem uma estrutura econômica semelhante, com cerca de metade do uso da água urbana da Califórnia sendo para irrigação da paisagem, fornecendo relativamente pouca contribuição econômica. Em 2015, o Estado determinou uma redução média de 25% no uso de água urbana, variando de 8% a 36% localmente, com cidades com maior uso de água per capita sendo obrigadas a reduzir mais o consumo. As reduções foram acomodadas principalmente na irrigação da paisagem, com pouco impacto econômico, apesar das consequências ambientais, como a perda de árvores.

    Mudar é lei

    A legislação é outro ponto fundamental na administração das secas, uma vez que as regras vigentes têm de dialogar com todos os setores da sociedade. Desde 2018, uma das diretrizes locais exige que os chuveiros na Califórnia tenham vazão de 1,8 galão de água por minuto, o padrão mais rígido do país. Em outros estados, o limite é de 2,5 galões por minuto.

    Na esteira desse acordo foi estabelecido outro, que determina que os vasos sanitários da Califórnia não consumam mais de 1,28 galão de água por descarga, enquanto as torneiras dos banheiros estão limitadas a dar vazão a 1,2 galão por minuto. Os mictórios não podem usar mais do que 0,125 galão por descarga, e as torneiras da cozinha devem usar apenas 1,8 galão por minuto.

    No Brasil, uma lei federal de 2018 estabelece que construções novas “deverão conter equipamentos mecânicos ou eletrônicos para evitar o desperdício de água” em seus banheiros públicos. A implementação e fiscalização da regra fica a cargo dos municípios.

    Apesar das restrições, essas não são exatamente as medidas mais polêmicas na região. Em 2014 foi aprovado o texto que proíbe bares e restaurantes de servir, de maneira voluntária, um copo d’água aos clientes – somente são autorizados a fazê-lo depois de solicitados pelos próprios visitantes.

    Copo de água em restaurante da Califórnia
    Desde 2014, uma lei da Califórnia exige que restaurantes só forneçam água aos clientes que pedirem
    Foto: Smith Collection/Gado/Getty Images

     “Essas medidas parecem bobas, mas elas têm algum impacto. No caso das torneiras, elas promovem uma economia acumulada ao longo dos anos”, explica Lund. “Agora, a regra do copo d’água é mesmo pouco eficaz do ponto de vista prático. Acho que é uma medida simbólica, quase educacional. Ajuda a lembrar a população da crise hídrica que vivemos”.

    Há regras que limitam as irrigações de gramados, o uso de recursos hídricos em chafarizes e monumentos e muitas outras. Mas nem todas as leis dizem respeito apenas ao consumo e à conscientização dos cidadãos.

    Para o professor Lund, o melhor exemplo de uma legislação eficiente vem também de 2014, quando Jerry Brown assinou a Lei de Gerenciamento Sustentável de Águas Subterrâneas (SGMA, na sigla em inglês). “Um século depois que legislamos as chamadas águas superficiais, encontradas em rios, reservatórios e bacias, passamos a estabelecer padrões para as águas subterrâneas, que são absolutamente cruciais para a região”, disse à CNN.

    Segundo ele, essa nova legislação não apenas melhora as perspectivas de lidar com secas futuras, mas também promove uma coordenação mais ampla e gerenciamento mais estrito da água em escalas locais e regionais.

    Por fim, Lund pondera que todos esses esforços não podem ou devem ser feitos de maneira isolada. O mundo passa por mudanças climáticas significativas, e o compartilhamento de informações, infraestruturas e aprendizados é fundamental para a manutenção da vida e da biodiversidade: “Estamos fazendo a transição para uma condição climática diferente e temos que gerenciar melhor nossa resiliência, sobretudo a longo prazo. Não podemos ou devemos pensar que tudo isso é uma casualidade pontual”.

    As décadas de experiência na gestão de crises hídricas não blindam a Califórnia de novos desafios, como o perigo de blecautes por conta da pressão na rede elétrica. O estado mais rico dos Estados Unidos obteve, em 2019, 17% de sua eletricidade de hidrelétricas, e o baixo índice dos reservatórios tiram agora o sono das autoridades.

    A situação fica ainda mais delicada pelo fato de ser verão no hemisfério norte, quando os americanos pesam a mão no ar-condicionado. Até agora não houve, em grandes centros urbanos e cidades satélites, racionamento de água ou apagões. Mas essas são duas cartas na manga do governo, caso os reservatórios atinjam níveis mais críticos.

    Por enquanto, Gavin Newsom, o democrata à frente do estado, pediu a todos os moradores que reduzam, voluntariamente, 15% do seu consumo de água. Para ajudar a população a economizar os recursos hídricos, as agências estaduais estão mais uma vez estabelecendo uma parceria com fornecedores locais de água para promover dicas de conservação por meio da campanha Save Our Water que tem, entre outras coisas, um website com informações úteis.

    Na página, os californianos podem descobrir maneiras simples de reduzir o gasto de água. São dicas como “encha a banheira apenas até a metade”, “tome banho de 5 minutos” e “lave um tanque cheio de roupas”. Apesar do apelo governamental e das inúmeras reportagens sobre o tema, os moradores locais seguem “ostentando”: com piscinas cheias até a borda, com calçadas sendo lavadas com mangueira e mais. Pelo menos em casa, com chuveiros e torneiras regulamentadas, o controle do uso hídrico é feito na base da lei.