Chilenos votam nova constituição em plebiscito neste domingo (4)
Manifestações populares que se acentuaram em 2019 levaram à confecção de uma nova Carta Magna após 42 anos; comparecimento às urnas é obrigatório
Após 42 anos, os chilenos decidirão se aprovam ou não uma nova constituição. O plebiscito deste domingo (4) será obrigatório para todos aqueles que têm domicílio eleitoral no Chile. Quem não comparecer estará sujeito a multa.
As urnas estarão disponíveis entre 8h e 18h (horário local) e, de acordo com o serviço eleitoral, 15 milhões de pessoas estão aptas a votar. Apenas aqueles que estiverem doentes, fora do país, a mais de 200 km do local indicado para votação ou tiverem algum outro impedimento grave –devidamente verificado por um juiz– poderão se ausentar.
Os eleitores responderão à seguinte pergunta: “você aprova o texto da Nova Constituição proposto pela Convenção Constitucional?”. As escolhas possíveis são: “aprovo” ou “rejeito”.
Essa será a primeira votação obrigatória no país latino desde 2012, quando o comparecimento às urnas se tornou voluntário.
Reivindicação antiga
A redação de uma nova Constituição é uma demanda antiga dos chilenos, conforme explica Regiane Bressan, professora de Relações Internacionais da Unifesp. O texto atual foi implementado durante a ditadura de Augusto Pinochet, em 1980, e, em 2019, grandes manifestações populares pediram a elaboração da nova carta constitucional.
“Essa constituição é tida como ultrapassada, e a população vem justamente clamando por um texto mais atual, que atenda às demandas contemporâneas e, sobretudo, maior intervenção do Estado em alguns setores-chave, como saúde, educação e aposentadoria”, diz.
Então, em 2020, 78% dos chilenos votaram a favor da formação da Convenção Constitucional. O projeto final, elaborado por 78 homens e 77 mulheres, foi entregue em 4 de julho deste ano ao presidente Gabriel Boric e disponibilizado para leitura popular.
Possíveis definições
Se o texto for aprovado, uma sessão do plenário do Congresso chileno será convocada para promulgação da nova Constituição.
Agora, se houver a rejeição da nova carta constitucional, o presidente Boric defende que seja eleita uma nova convenção, sem a necessidade de realizar outro plebiscito para saber se o povo quer mudar a constituição (o que já foi feito em 2020).
Nesse caso, outros constituintes poderiam ser eleitos, no mínimo, 125 dias após o resultado dessa votação de domingo.
Regiane Bressan também pontua que é possível que o governo do Chile tente mudar a Carta Magna por meio de emendas parlamentares, e não com uma alteração “total” do texto.
Destaques
O projeto da nova Constituição se baseia em dez pilares que reúnem “elementos fundamentais e normas mais relevantes”, segundo a convenção.
Os 10 pontos principais são:
- Democracia: com atenção à transparência, igualdade, liberdade de pensamento e expressão, além de mecanismos para democracia participativa;
- Inclusão: consagrando, entre outras coisas, direitos para mulheres, crianças e adolescentes, pessoas de povos e nações indígenas, pessoas com deficiência, pessoas de diversidade e dissidência sexo-genéricas;
- Tradição institucional: marcando, entre outras coisas, o fim do Senado, substituído pela Câmara das Regiões, em que cada região terá o mesmo número de representantes e reconhecendo também os ordenamentos jurídicos dos povos indígenas;
- Garantias de direitos: assegura direitos essenciais como saúde, educação, reconhecimento do trabalho doméstico e de cuidados, direito à moradia, alimentação adequada, direito humano à água e ao saneamento básico e o direito de viver em local seguro e livre de violência; ainda inclui a paridade e perspectiva de gênero;
- Liberdade: reconhece a liberdade de religião, pensamento, expressão, ensino e a liberdade de empreender e desenvolver atividades econômicas;
- Igualdade de gênero: protege o direito a uma vida livre de violência de gênero, os direitos sexuais e reprodutivos e o direito à identidade, e destaca a perspectiva de gênero na Justiça, os princípios de paridade e representação política partidária e inclusiva;
- Proteção da natureza e do meio ambiente: confirma os direitos da natureza e o dever especial de custódia do Estado sobre os bens comuns naturais do país;
- Regiões: reconhece a autonomia dos governos municípios e demais entidades regionais, além de formação de autonomias territoriais indígenas;
- Projeção futura: incorporam-se o direito à participação política digital, à informação, ao conhecimento, à educação e à conectividade digital, e à proteção de dados pessoais;
- Economia responsável: o projeto consagra os princípios de responsabilidade fiscal, equidade territorial e desenvolvimento em harmonia com a natureza, assim como papel mais ativo do Estado.
Dentro destes destaques, há, por exemplo, o conceito de plurinacionalidade. Joana Salém, especialista em América Latina e doutora em história econômica pela USP, explica que essa ideia é “a compreensão de que um país pode ser composto por mais de uma nação, e que uma nação não anula as demais”, necessitando relação intercultural com as demais dentro do mesmo país.
“Então, seria reconhecer os povos indígenas como nações autodeterminadas, com cosmovisões próprias, também com organismos políticos próprios, com justiça própria dentro de uma outra nação”, adiciona.
Além disso, o projeto dispõe sobre direitos sexuais e reprodutivos, prevendo “entre outros, o direito de decidir livre, autônoma e informadamente sobre o próprio corpo, sobre o exercício da sexualidade, reprodução, prazer e contracepção”. O aborto também passaria a ser legal no país.
Campanha de desinformação e rejeição em pesquisas
Ambas as especialistas afirmam que alguns grupos ligados à extrema-direita estão disseminando fake news e desinformação sobre a nova carta constitucional.
Salém pontua que isso acontece principalmente por meio das redes sociais, canalizado no que foi montado a partir da campanha de José Antônio Kast. Ele foi o candidato de extrema-direita que disputou o segundo turno das eleições presidenciais chilenas no ano passado, sendo derrotado por Gabriel Boric.
Ela afirma que o método utilizado nessa campanha de desinformação tem sido aplicado “pelas extremas-direitas em diferentes partes do mundo”. “Ele tem sido chamado por alguns de método “Bannon”, porque é baseado no Steve Bannon, que foi um assessor político do [Donald] Trump [ex-presidente dos EUA] responsável pela sua comunicação, por essa estratégia de criação de mentiras e notícias falsas que circulam em alta velocidade em portais suspeitos, mas que disfarçam de verdadeiros”, explica.
Principais fake news sobre a nova constituição do Chile:
- Nome do país vai mudar;
- Fim da bandeira e do hino chilenos;
- Não haverá mais polícia;
- Venezuelanos e haitianos vão tomar o poder;
- Indígenas ficariam impunes por crimes;
- Imigrantes e indígenas tomarão o poder;
- Aborto permitido aos 9 meses de gravidez;
- Chilenos não podem percorrer o território nacional porque estará sob controle indígena e de imigrantes;
- Não será permitido comprar garrafas de água e gelo;
- Não haverá mais educação e saúde privada;
- Não haverá propriedade privada;
- Religião será proibida;
- Há enorme risco de fraude que dará vitória à aprovação;
- O serviço eleitoral fraudará os votos com nomes de mortos para a aprovação do texto.
Uma pesquisa divulgada no dia 20 de agosto revelou que 49% dos entrevistados votariam “rejeição” no plebiscito “com as informações que têm hoje”. Enquanto isso, 39% garantiram que escolheriam “aprovação”. Além disso, 12% declararam que “não sabem/não votarão”.
O levantamento projetou, então, com a estimativa do número de eleitores para o plebiscito, que 54% deles se inclinaram para a rejeição, enquanto 46% aprovariam a nova Carta Magna.
Joana Salém destaca que há críticas quanto à metodologia das pesquisas, que poderiam não estar captando a opinião de parte da classe trabalhadora, que tem tendência maior ao “sim”.
“Apesar de essas pesquisas estarem dando vitória ao rechaço, ainda existe uma margem de possibilidade importante de que a aprovação ganhe, porque a batalha contra as fake news ainda está aberta, ainda está acontecendo”, afirma.
A especialista ressalta, então, que apenas o próprio plebiscito poderá mostrar o grau de eficiência da campanha de fake news contra a nova constituição chilena.
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Uma mulher vota durante o referendo para aprovar ou rejeitar a nova constituição em 4 de setembro de 2022 em Santiago, Chile. O projeto substituiria a atual constituição imposta durante a ditadura de Augusto Pinochet • Photo by Jonnathan Oyarzun/Getty Images
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Visão detalhada de um cartão de voto durante o referendo para aprovar ou rejeitar a nova constituição em 4 de setembro de 2022 em Santiago, Chile. O projeto substituiria a atual constituição imposta durante a ditadura de Augusto Pinochet. • Photo by Marcelo Hernandez/Getty Images
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Um homem vota durante o referendo para aprovar ou rejeitar a nova constituição em 4 de setembro de 2022 em Santiago, Chile. O projeto substituiria a atual constituição imposta durante a ditadura de Augusto Pinochet. • Photo by Marcelo Hernandez/Getty Images
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Um homem com dois filhos espera para votar durante o referendo para aprovar ou rejeitar a nova constituição em 4 de setembro de 2022 em Santiago, Chile. O projeto substituiria a atual constituição imposta durante a ditadura de Augusto Pinochet. • Photo by Jonnathan Oyarzun/Getty Images
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Uma mulher vota durante o referendo para aprovar ou rejeitar a nova constituição em 4 de setembro de 2022 em Santiago, Chile. O projeto substituiria a atual constituição imposta durante a ditadura de Augusto Pinochet. • Photo by Marcelo Hernandez/Getty Images
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Presidente do Chile, Gabriel Boric, ao realizar voto em plebiscito neste domingo (4). • Redes sociais/Reprodução
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