Brasil assume Conselho de Segurança da ONU sem Ucrânia na pauta e driblando temas espinhosos
A guerra não deve ser um tema central e o governo quer evitar indisposições em disputa entre EUA, China e Rússia envolvendo o Haiti
O Brasil assume a presidência rotativa do Conselho de Segurança da ONU a partir deste domingo (1º). No mês que vai passar à frente do órgão, não há reuniões previstas sobre a guerra na Ucrânia.
O governo terá que lidar também com o fogo cruzado entre Estados Unidos, Rússia e China na discussão sobre o envio de uma missão de ajuda ao Haiti.
Fontes do governo afirmam que a guerra na Ucrânia não deve ter ênfase no mandato brasileiro, ainda que seja um tema central no órgão da ONU.
A diplomacia brasileira entende que a Rússia trava qualquer discussão sobre o assunto, então, pragmaticamente, não há o que fazer. Os russos são um dos cinco membros permanentes do Conselho e por isso têm poder de veto sobre as resoluções do órgão.
Também há uma percepção de que Lula não mudou de opinião sobre o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, mesmo após o encontro na Assembleia da ONU, em setembro, em Nova York. Interlocutores afirmam que Lula considera o presidente ucraniano prepotente, e o encontro há cerca de duas semanas só confirmou sua visão.
Em um briefing sobre a presidência do Brasil no Conselho, o secretário de Assuntos Multilaterais do Ministério das Relações Exteriores, embaixador Carlos Márcio Cozendey, afirmou que, embora não haja nenhuma reunião prevista, ao longo do mês “uma ou duas reuniões sobre a Ucrânia” podem acontecer porque muitos países têm demandado.
A possibilidade de haver reuniões só foi mencionada depois que o embaixador foi questionado sobre a ausência de debates previstos sobre o conflito no leste europeu.
O embaixador também afirmou que a guerra não tem novidades e nenhum avanço deve ser esperado durante a liderança brasileira no Conselho.
“Se acontecesse algum desenvolvimento novo, a presidência poderia entrar e aproveitar isso, chamar uma reunião, criar um processo dentro do Conselho. Mas. no momento, não tem muito esse cenário”, pontuou Cozendey.
O embaixador afirmou que no momento prevalece uma polarização. “Um lado vai e propõe uma reunião sobre a Ucrânia, um assunto que seja ruim para a Rússia, e o outro lado vai e propõe um assunto que seja ruim para a Ucrânia, fica um pouco nessa dinâmica”, disse.
Disputa sobre missão no Haiti
Um dos assuntos centrais durante o mês de presidência do Brasil será o envio de ajuda militar ao Haiti, um tema delicado nos âmbitos interno e externo do governo brasileiro.
Os Estados Unidos propuseram, junto ao Equador, uma missão de ajuda multinacional, que seria liderada pelo Quênia. Os americanos defendem a inserção da missão sob o capítulo 7 da Carta da ONU, que permite o uso da força para “restabelecer a paz e a segurança internacional”.
No briefing, o Itamaraty confirmou que há alguma resistência, sobretudo da China e da Rússia sobre a resolução.
Fontes do governo afirmam que o Itamaraty tenta se posicionar no meio do caminho, mas sem saber o que quer exatamente. Há um temor de que, ao endossar a missão, o país possa se indispor com os russos e os chineses.
A Rússia e a China pediram mudanças na proposta americana, impedindo que a discussão fosse finalizada no debate que ocorreu no Conselho na última sexta-feira (28). Ambos os países argumentam que não acreditam no sucesso da resolução como foi colocada, por causa de fracassos anteriores.
Mas, na realidade, Pequim e Moscou querem evitar que o envio de forças americanas eleve o poder de influência dos Estados Unidos na região, em meio à disputa por hegemonia entre as três grandes potências.
Outro ponto central da discussão é o envio de tropas militares brasileiras. Cozendey afirmou que o Haiti chegou a solicitar o apoio de policiais do Brasil para treinamento no país.
“O único pedido no momento é esse que mencionei, que pessoas pudessem ir ao Haiti conversar com o pessoal que está organizando a missão para ajudar no planejamento. Por enquanto é isso que existe”, disse o embaixador.
Vinícius Rodrigues Vieira, professor de relações internacionais da Faap e FGV, avalia que o envio de militares ao Haiti fortaleceria a imagem das Forças Armadas, algo que o governo quer evitar em meio à CPMI que investiga os atos de 8 de janeiro.
“Primeiro, o Brasil precisa fazer com que um presidente civil recupere as rédeas das Forças Armadas, e isso não vai acontecer enquanto a questão do 8 de janeiro e todo o apoio do golpismo de Bolsonaro não for devidamente resolvida”, afirma Vieira
Reforma no Conselho de Segurança
O Brasil assume a presidência do Conselho de Segurança da ONU em meio a críticas sobre o funcionamento do colegiado e perda de eficácia das instituições multilaterais. E o presidente Lula tem sido uma das vozes mais incisivas sobre a defesa de reforma do colegiado.
O grupo se reuniu pela primeira vez em 1946, e tem o objetivo de manter a paz e a segurança internacional. Mas sua capacidade de evitar conflitos vem sendo questionada desde a guerra do Iraque, em 2003, ceticismo que só aumentou depois da invasão da Ucrânia.
Os cinco países com assento permanente — China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia — têm poder de veto sobre qualquer decisão.
A Rússia poderia vetar resoluções que condenam a sua agressão à Ucrânia, assim como EUA vetariam condenação à Guerra no Iraque.
Em visita a Madri, em abril, Lula acusou os membros permanentes de serem promotores de guerras.
“Nós vivemos num mundo em que o Conselho de Segurança da ONU, os membros permanentes, todos eles são os maiores produtores de armas do mundo, são os maiores vendedores de armas do mundo e são os maiores participantes de guerra do mundo”, disse o presidente na ocasião.
Na reunião da Assembleia Geral da ONU, na última terça-feira (19), Joe Biden foi o único dos membros permanentes do Conselho a participar do encontro, o que demonstrou o esvaziamento do principal fórum multilateral global.
Mas, como o próprio embaixador brasileiro afirmou no briefing, o Conselho de Segurança não é o foro correto para discutir reformas, e sim a Assembleia da ONU.
Guilherme Casarões, cientista político e professor da FGV, acredita que não há nada que possa ser feito no curto prazo.
“A discussão sobre reforma do Conselho vem desde pelo menos a década de 1990, e o modelo que hoje serve de parâmetro para as discussões, a proposta apresentada pelo G4 [aliança entre Alemanha, Brasil, Índia e Japão para ampliar o Conselho], nasce em 2004”, pontua.
“Ou seja, não se trata de trazer argumentos novos, mas de criar condições políticas para viabilizar a realização da reforma”.
Mas o professor acredita que com o mundo dividido e passando por desafios importantes, como a guerra na Ucrânia, esse consenso parece mais distante.
Composição do Conselho
O mais poderoso órgão executivo da ONU é formado por 15 países, sendo dez rotativos — com mandatos de dois anos —, e cinco permanentes. Já a presidência rotativa tem duração de um mês.
O Brasil é o segundo país que mais teve mandatos no Conselho, apenas atrás do Japão, o que o torna a nação emergente com maior participação no colegiado, tendo permanecido 22 anos ao todo.
O atual período dos brasileiros tem vigência até dezembro deste ano.
Não é praxe que o presidente participe das reuniões do Conselho, mas sim o chanceler. As pautas são definidas previamente, mas o ministro pode escolher quais debates quer participar em Nova York.
O ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, vai participar de três debates: o primeiro, no dia 20 de outubro, que trata sobre como organizações multilaterais podem prevenir conflitos antes que ocorram.
O segundo será no dia 24, sobre Oriente Médio, onde se discutirá a Palestina.
Já o terceiro, no dia 25, com Vieira presidindo o debate “Mulheres, paz e segurança”, quando será divulgado um relatório anual sobre o tema, tratando do papel e das mulheres em situações de conflito e seus efeitos desproporcionais sobre elas.