Análise: O Ocidente precisa considerar a hipótese de um colapso político na Rússia
Motim do grupo mercenário Wagner contra o Kremlin levantou dúvidas sobre possiblidade de o líder russo se tornar ainda mais cruel na guerra - levando a uma escalada nuclear - ou, em caso de queda, se seu possível sucessor seria ainda mais implacável
O mundo acaba de ter um vislumbre de um futuro tentador, mas possivelmente ainda mais perigoso, sem o presidente russo, Vladimir Putin. As apostas ocidentais na guerra da Ucrânia aumentaram significativamente como resultado.
Um fim de semana amotinado que viu Yevgeny Prigozhin, o chefe do grupo mercenário Wagner, zombar flagrantemente do Kremlin antes de abortar sua marcha para Moscou evocou a história sangrenta de revoluções e golpes da Rússia.
Enquanto isso, os esforços da Casa Branca e de seus aliados estrangeiros para descobrir exatamente o que estava acontecendo sublinharam a natureza volátil de uma guerra que poderia reescrever o mapa da Europa e da história moderna. Por fim, uma guerra civil que parecia prestes a estourar foi evitada – pelo menos por enquanto.
O homem forte do Kremlin pareceu piscar em um confronto militar com os combatentes do grupo Wagner – em um ato que pode preservar seu controle do poder. Mas a afronta de Prigozhin – e a retirada de Putin, que o acusou de traição, mas horas depois concordou com um acordo para deixá-lo escapar para o exílio em Belarus – abriram os buracos mais profundos na autoridade do presidente russo em uma geração no poder.
Agora não há dúvida de que a guerra que Putin desencadeou para varrer a Ucrânia do mapa representa uma ameaça existencial a sua sobrevivência política. O resto do mundo deve agora lidar com as implicações.
“Este não é um desentendimento de 24 horas. É como se Prigozhin fosse a pessoa que olhou por trás da tela no Mágico de Oz e viu que o grande e terrível Oz era apenas um homenzinho assustado”, disse o ex-embaixador dos EUA na Ucrânia, John Herbst, a Christiane Amanpour, da CNN. “Putin foi diminuído para sempre por esta situação”.
Cismas em Moscou e entre o governo e o grupo Wagner de Prigozhin – a única força de combate russa que teve muito sucesso recente no campo de batalha – também podem agora evocar uma abertura para a Ucrânia, que quer avanços contra as já desmoralizadas e mal lideradas tropas de Moscou em sua nova contraofensiva.
Isso seria uma boa notícia para o Ocidente, que financiou e armou a luta do país. E não há dúvida de que os líderes da Otan adorariam ver Putin partir, já que não há sinal de que ele terminará a guerra retirando suas tropas da Ucrânia.
Por um tempo, parecia que um autocrata vacilante, militares da Rússia e chefes de milícias rivais poderiam acabar em uma guerra civil pelo controle de uma nação com um vasto arsenal nuclear. Tal instabilidade e conflitos internos na Rússia enviariam ondas de choque geopolíticas em todo o mundo.
[cnn_galeria active=”false” id_galeria=”2330002″ title_galeria=”Mercenários do Grupo Wagner se revoltam contra Putin na Rússia”/]
O Ocidente realmente não tem um lado no conflito interno que eclodiu neste fim de semana. Este foi um confronto entre Prigozhin – cujos homens são acusados de abusos brutais dos direitos humanos na Ucrânia, Síria e África – e Putin, que reviveu o horror ao estilo da Segunda Guerra Mundial na Europa, desrespeitou a lei internacional ao invadir um vizinho soberano e enfrenta um mandado de prisão por supostos crimes de guerra.
Prigozhin também não tem sido amigo dos EUA – ele admitiu ter interferido nas eleições americanas e prometeu fazer novamente.
Declarações de líderes ocidentais de que se tratava de um assunto interno da Rússia refletiram o desejo de negar a Putin um pretexto para renovar suas alegações de que ele é vítima de uma conspiração ocidental para derrubá-lo e suprimir a dignidade da Rússia como grande potência e reduzir sua esfera de influência geopolítica.
Kevin Liptak, da CNN, relatou que em conversas telefônicas com os líderes da França, Reino Unido e Alemanha, Joe Biden enfatizou a necessidade de manter a temperatura baixa e permitir que o que quer que esteja acontecendo na Rússia aconteça de acordo com seu mantra de evitar a “Terceira Guerra Mundial”.
E embora seja possível que uma rachadura no regime de Putin pressagie um eventual colapso que possa remover um dos maiores desafios da política externa de Washington – um novo impasse ao estilo da Guerra Fria com a Rússia – ninguém em Washington está apostando nisso.
“Acho que não queremos que um país que abrange 11 fusos horários e inclua repúblicas na Federação Russa de muitos grupos étnicos e sectários diferentes se desfaça”, disse o general aposentado David Petraeus no programa “State of the Union” da CNN.
“Este é o começo do fim de Putin? Não sabemos. Quem o seguir, se for esse o caso, será ainda mais ditatorial – que é o que temíamos que pudesse acontecer se Prigozhin tivesse tido sucesso? Poderia realmente haver um líder pragmático que intervém e percebe que foi um erro catastrófico esse esforço na Ucrânia e que precisam de alguma forma obter uma abordagem mais racional para a Europa e para o Ocidente?”, perguntou Petraeus, ex-diretor da CIA.
“Muitas, muitas incógnitas”.
Um Putin ferido pode ser um Putin ainda mais perigoso
Há muito tempo está claro que o sucesso ucraniano nesta guerra pode representar uma séria ameaça política ao governo de Putin. Mas uma coisa é postular isso em teoria. Após este fim de semana, esta nova realidade exigirá que o Ocidente examine mais uma vez seu ato de equilíbrio para salvar a Ucrânia.
É possível que a humilhação do líder russo possa levá-lo a exigir um ataque ainda mais cruel em uma guerra que já atingiu insensivelmente os civis ucranianos.
Se o conflito político na Rússia prejudicar ainda mais o moral de suas tropas e levar a perdas no campo de batalha, a posição de Putin pode se tornar ainda mais difícil. Isso alimentará os temores de que o líder russo possa ameaçar uma escalada catastrófica da guerra após meses falando sobre forças nuclear.
E se o fim de semana foi uma prévia de um possível colapso do regime de Putin, se a guerra continua indo de mal a pior para a Rússia, o Ocidente pode ter outra dor de cabeça.
Depois de meses de pesadas perdas no campo de batalha e dor econômica em casa causada pelas sanções ocidentais, era perceptível que a resistência mais potente a Putin não veio de um movimento democrático que ele passou anos esmagando. Era de uma força ainda mais direitista e brutal do que ele – Prigozhin.
E outro senhor da guerra radical e sanguinário, o líder checheno Ramzan Kadyrov, se ofereceu no sábado (24) para ajudar a suprimir a rebelião do grupo Wagner em nome de Putin, que é uma das razões pelas quais havia temores de um banho de sangue nas ruas de Moscou.
As maquinações nos bastidores da política de Moscou – um poço de urso povoado por chefes de milícias bandidos, chefes de inteligência e oligarcas – são impossíveis de prever. Mas as reviravoltas selvagens do fim de semana destacam a possibilidade de que quem quer que lidere a Rússia depois de Putin pode ser ainda mais implacável e difícil para o Ocidente lidar como seu inimigo de longa data.
Um dos projetos prediletos de Prigozhin, por exemplo, era a Internet Research Agency, uma fazenda de trolls usada pela Rússia para enviar uma torrente de desinformação pelas mídias sociais em um esforço para interferir nas eleições presidenciais norte-americanas de 2016.
“Estamos todos empolgados em ver que o poder de Putin está mais instável e o Estado mais frágil do que pensávamos, mas também devemos pensar no que aconteceria a seguir”, disse Robert English, especialista em Rússia e leste europeu, que dirige a Escola de Relações Internacionais da University of Southern California.
“Provavelmente será alguém como um Prigozhin ou outro tipo de líder militar que pretende o poder. Não um liberal como Alexei Navalny ou esses outros críticos liberais de Putin, mas um populista de direita que apela para a mesma antielite, instintos anticorrupção, mas tem suas próprias tendências ditatoriais brutais”, disse English.
Washington se pergunta se a turbulência acabou
A suposição em Washington é que a trégua anunciada às pressas mediada pelo presidente bielorrusso Alexander Lukashenko, que levou Prigozhin a interromper seu avanço sobre Moscou, está longe do fim da história. “É muito cedo para dizer exatamente aonde isso vai dar”, disse o secretário de Estado, Antony Blinken. “Eu suspeito que esta é uma imagem em movimento.”
Ao mesmo tempo, há uma sensação de que Putin – cujo governo há muito depende de sua capacidade de manter várias facções abaixo dele aplacadas – viu sua credibilidade como líder seriamente ferida.
Blinken disse que o fato de uma figura forte dentro da Rússia ter questionado diretamente a autoridade de Putin era “algo muito, muito poderoso”. Ele disse: “Isso acrescenta rachaduras; para onde vão, quando chegam lá, é muito cedo para dizer, mas claramente levanta novas questões com as quais Putin tem que lidar”.
A possibilidade de que um Putin enfraquecido possa buscar maneiras mais extremas de reverter uma guerra que ameaça seu poder deve preocupar os EUA e seus aliados. Biden tem sido inflexível sobre a necessidade de evitar que o conflito se transforme em um conflito direto Rússia-Otan.
Mas o fato de que a guerra agora está causando divisões profundas dentro da Rússia de uma forma que pode afetar a integridade de suas operações pode ser um argumento para uma escalada rápida da ajuda ocidental à Ucrânia.
A aparente vulnerabilidade de Putin provavelmente encorajará aqueles que argumentam que Biden tem sido muito tímido, apesar de reviver a aliança ocidental para ajudar a Ucrânia a se defender na mais ampla mobilização transatlântica desde o fim da Guerra Fria e enviar bilhões de dólares e armas avançadas.
Os críticos reclamam que o Ocidente deu à Ucrânia o suficiente para sobreviver, mas não para expulsar as tropas russas de todo o seu território e até mesmo da Crimeia, que Putin anexou ilegalmente em 2014.
O candidato presidencial republicano Will Hurd, ex-funcionário da CIA e congressista do Texas, disse no domingo (25) que declarações dos EUA e seus aliados de que estavam monitorando eventos na Rússia enviaram uma mensagem fraca a Putin.
“Há outra palavra para isso. Isso é cruzar os braços e não fazer nada”, disse Hurd. Após relatórios de inteligência sugerindo uma possível ação de Prigozhin, “deveríamos ter planejado com nossos aliados, deveríamos ter planejado com os ucranianos como aproveitar esta oportunidade”, disse Hurd.
Hurd – um dos poucos candidatos a ancorar sua campanha para atacar diretamente o líder do Partido Republicano, o ex-presidente Donald Trump – só recentemente pulou na corrida presidencial. Mas seus comentários refletem a realidade de que, embora a principal responsabilidade de Biden sejam as implicações da guerra na Ucrânia para a política externa, ele deve começar a considerar as implicações do conflito para suas perspectivas políticas.
Qualquer agravamento das já terríveis relações dos EUA com Moscou – ou incidentes que coloquem as forças dos EUA e da Rússia em conflito – provavelmente jogará nas mãos dos republicanos, especialmente Trump, que está alertando que o apoio de Biden à Ucrânia pode causar a Terceira Guerra Mundial.
As alegações de Trump de que ele poderia encerrar o conflito em 24 horas são tolas, e qualquer solução que ele propuser provavelmente beneficiará Putin, a quem ele admira há muito tempo. Mas enquanto a guerra na Ucrânia já domina o legado de Biden, é improvável que um colapso russo que leve ao caos global o ajude politicamente à medida que o ano eleitoral se aproxima.