Análise: Disputa entre UE e Reino Unido expõe o nacionalismo na vacinação
Bloco europeu acusa AstraZeneca de estar atrasando entregas, enquanto cumpre com os prazos para o Reino Unido
A Assembleia Geral da ONU, em setembro do ano passado, foi um momento crucial na pandemia: nela, os líderes começaram a mostrar alguma unidade enquanto as mortes por Covid-19 se aproximavam de um milhão.
Segundo os próprios dirigentes, eles haviam aprendido duras lições com os danos causados ao armazenamento de equipamentos de proteção. Quando uma vacina fosse desenvolvida, os mais vulneráveis do mundo seriam os primeiros da fila, afirmaram.
Agora, as vacinas já chegaram e essa solidariedade se desgastou. Entre o Reino Unido e a União Europeia (UE), ela desapareceu totalmente e deu lugar a uma batalha aberta sobre quem tem mais direito a dezenas de milhões de doses produzidas pela farmacêutica sueco-britânica AstraZeneca. Enquanto isso, muitos países em desenvolvimento ainda lutam para conseguir iniciar a vacinação.
O perigoso nacionalismo nas discussões sobre a imunização, temido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e outros defensores da saúde pública, enfim, chegou. E começou pela Europa, a região que geralmente ostenta os maiores níveis de igualdade do mundo em muitas métricas.
A disputa gira em torno do acordo da UE com a AstraZeneca, que recentemente informou ao bloco que não seria capaz de fornecer o número de doses que o bloco esperava até o final de março. Os líderes da UE estão furiosos, porque a empresa parece estar cumprindo suas entregas para o Reino Unido, mas não as deles.
Além disso, embora as queixas da UE sejam amplamente direcionadas à AstraZeneca, a disputa gerou animosidade em ambos os lados do Canal da Mancha, com os dois lados cheios de queixas após quatro anos de disputas sobre os termos de seu divórcio, o Brexit.
Na sexta-feira (29), a sede da UE, em Bruxelas, impôs limites às exportações de vacinas para manter o controle de quantas doses estavam deixando o continente e para onde estavam indo, o que os líderes chamaram de medida de transparência, mas que, no fundo, parece ser uma proibição de exportação direcionada.
“A medida não tem como alvo nenhum país específico”, disse o vice-presidente executivo da Comissão Europeia, Valdis Dombrovskis, durante uma coletiva de imprensa em Bruxelas. No entanto, no anúncio, ele também divulgou uma lista de dezenas de países isentos dos controles, incluindo muitas nações de baixa renda. Como era se esperar, o Reino Unido não estava na lista.
“O Reino Unido tem acordos juridicamente vinculativos com fornecedores de vacinas e não espera que a UE, como amiga e aliada, faça algo para interromper o cumprimento desses contratos”, disse um porta-voz do governo britânico.
A UE também disse que invocaria uma cláusula no acordo do Brexit para impor controles sobre as exportações para a Irlanda do Norte para garantir que as doses enviadas para a região não fossem remetidas para o resto do Reino Unido.
Em seguida, recuou da ameaça na madrugada da noite de sexta-feira, depois que líderes do Reino Unido e da Irlanda buscaram esclarecimentos urgentes de Bruxelas sobre a ação altamente polêmica.
E a vacina feita no Reino Unido?
Os líderes da UE dizem que a AstraZeneca está priorizando o Reino Unido em suas entregas. Em resposta, foi feita uma inspeção local em uma fábrica da AstraZeneca na Bélgica na quinta-feira (28) para garantir que a empresa dizendo a verdade sobre o baixo fornecimento ali. Alguns defensores do Brexit reagiram às ações, rotulando a UE de lenta e incompetente.
Peter Bone, um parlamentar do Partido Conservador britânico, disse que os líderes da UE foram “intimidadores” por inspecionar a fábrica belga. Em entrevista à talkRADIO na sexta-feira, ele os acusou de “tentar encobrir seus próprios fracassos” e reverteu a acusação da UE, dizendo que Bruxelas estava tentando desviar vacinas feitas no Reino Unido para seu próprio povo.
Mas o contrato da UE com a AstraZeneca – que a UE publicou na sexta-feira – afirma que as doses para o bloco podem vir de uma cadeia de suprimentos que inclui fábricas com sede no Reino Unido. Da mesma forma, o Reino Unido está recebendo doses da Europa.
Uma fonte familiarizada com o assunto disse que o Reino Unido ainda está recebendo um pequeno número de vacinas feitas em fábricas europeias e que suas doses iniciais vieram da Europa também.
O governo do Reino Unido, que está quilômetros à frente da UE na vacinação de sua população, não divulgou seu contrato com a empresa e se recusou repetidamente a divulgar à CNN quantas doses tem em mãos, citando “razões de segurança”.
O Departamento de Negócios, Energia e Estratégia Industrial (BEIS) do Reino Unido disse à CNN que a “maioria” das doses no país foi feita dentro do Reino Unido, admitindo que algumas vieram de outros lugares.
As reduções do contrato publicado tornam impossível saber o quanto o bloco foi atingido, mas a AstraZeneca confirmou na sexta-feira que pretendia enviar pelo menos 31 milhões de doses para a UE até o final de março. A agência de notícias Reuters havia relatado anteriormente que a empresa havia reduzido a quantidade do primeiro trimestre de 80 milhões para 31 milhões de doses.
O que a UE quer saber é por que não está recebendo doses do Reino Unido. O BEIS não respondeu à pergunta da CNN sobre se o Reino Unido havia pedido para ser priorizado em seu contrato com a AstraZeneca, dizendo apenas que havia pedido 100 milhões de doses e tinha prazos acordados para entrega.
Pascal Soriot, CEO da AstraZeneca, no entanto, disse abertamente que a empresa forneceu primeiro para o Reino Unido.
“O contrato com o Reino Unido foi assinado primeiro e o país, é claro, disse ‘vocês nos atendem primeiro’, e isso é justo”, afirmou ao jornal italiano “La Republicca” na quarta-feira (27). Por outro lado, segundo o CEO, o contrato da UE não vinculava legalmente a empresa a um cronograma específico.
A Comissária de Saúde da UE, Stella Kyriakides, negou essa alegação.
Rejeitamos a lógica de que quem chegar primeiro é o primeiro a ser servido. Pode ser assim no açougue do bairro, mas não em contratos e não em nossos acordos de compra antecipada
Boa parte do problema parece advir do uso do termo “Melhores Esforços Razoáveis” no contrato. Em seu acordo com a UE, a AstraZeneca concordou em envidar seus melhores esforços para aumentar a capacidade de produção das doses que a UE havia encomendado. Qualquer ação legal envolveria uma decisão sobre se a empresa havia realmente tentado o melhor esforço possível para produzir e entregar os produtos.
Em um comunicado da AstraZeneca na sexta-feira, Soriot não revelou quaisquer novos detalhes de seu acordo com a UE, dizendo apenas que a questão era “muito infeliz” e que a empresa estava “trabalhando 24 horas por dia, sete dias por semana” para obter novos materiais e melhorar o fornecimento.
“A fabricação de vacinas é extremamente complicada, não é como fazer um suco de laranja, é muito difícil e as equipes que estão fabricando esses produtos têm que ser treinadas e dominar o processo”, afirmou, acrescentando que o Reino Unido tinha uma vantagem na abordagem de problemas inerentes gerados quando se produz algo novo.
Vitória política
É compreensível que a UE e o Reino Unido queiram garantir o maior número possível de doses nesta fase inicial dos seus programas de vacinação. Afinal, a pandemia atingiu profundamente o Reino Unido e o bloco.
Dos países mais afetados do mundo, o Reino Unido agora tem um dos maiores índices de mortes confirmadas de Covid-19 em proporção à sua população. As nações da UE também têm lutado com ondas devastadoras que atingiram seus cidadãos idosos e vulneráveis.
Mas, enquanto o Reino Unido continua aplicando centenas de milhares de vacinas de Covid-19 por dia, a Espanha teve que suspender parcialmente seu programa de vacinação esta semana, já que seu estoque de doses está baixíssimo. A Alemanha atrasou seu programa e a França diz que o seu também está sob ameaça.
Muita coisa acontece na esfera política em um programa de vacinação bem-sucedido. O governo do primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, foi criticado por grande parte da mídia e do público por uma resposta confusa à pandemia. Mas a liderança do país em desenvolver, aprovar e agora distribuir as vacinas está sendo bastante elogiada. É uma vitória política muito necessária para Johnson.
A União Europeia também está determinada a parecer forte e eficiente depois que o Reino Unido deixou oficialmente o bloco em 31 de dezembro. A sede da UE em Bruxelas não quer que a sua decisão de centralizar a aquisição e distribuição de vacinas, em nome da igualdade e justiça, pareça um fracasso.
O que parece não estar acontecendo é qualquer tipo de discurso civilizado entre o Reino Unido e a UE sobre o que fazer a respeito do déficit de vacinas. Contratos à parte, o desafio inédito de aumentar as doses para dezenas de milhões pode ser uma oportunidade de coordenação para garantir que os mais vulneráveis sejam vacinados primeiro.
Foi apenas em setembro, na Assembleia Geral da ONU, que Boris Johnson disse que “seria fútil tratar a busca por uma vacina como uma disputa pela estreita vantagem nacional”.
“A saúde de cada país depende de todo o mundo ter acesso a uma vacina segura e eficaz, onde quer que ocorra uma descoberta; e, no Reino Unido, faremos tudo ao nosso alcance para que isso aconteça”.
Terje Andreas Eikemo, diretor do Centro de Pesquisa de Desigualdades em Saúde Global da Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia, disse que as vacinas devem ser compartilhadas entre as pessoas mais vulneráveis do mundo primeiro, independentemente de onde vivam.
“É natural que os governos queiram colocar suas próprias populações em primeiro lugar, e isso é algo que acontece quando há um bem que é limitado. Quando você tem isso em uma sociedade, muitas vezes resultará no que estamos vendo com a UE e o Reino Unido”, disse à CNN.
“Todos estão tentando obter o que é melhor para suas populações, mas precisamos permanecer inclusivos. Este é um problema global, não nacional”.
O sul do mundo aguarda sua vez
Há muito nervosismo em grande parte do mundo em desenvolvimento: as pessoas desses países estão observando algumas das nações mais ricas lutarem por doses depois de comprar um grande número de vacinas em acordos de compra antecipada antes mesmo de serem comprovadas.
A doutora Nashwa Ahmad, do Hospital South City em Karachi, Paquistão, disse à CNN que ela e seus colegas estão esperando há semanas por notícias sobre o acesso às vacinas.
“Nossos profissionais de saúde ainda têm que continuar fazendo seu trabalho por horas intermináveis sem a proteção das vacinas. É muitíssimo difícil”, afirmou.
Enquanto isso, as nações ricas continuam expandindo seus já grandes contratos de compra antecipada. O Reino Unido garantiu mais de 360 milhões de doses com antecedência e planeja comprar mais de 150 milhões da Johnson & Johnson e Valneva. Isso seria suficiente para cobrir quase quatro vezes toda a sua população.
A UE garantiu quase 1,6 bilhões de doses, o suficiente para cobrir a população três vezes. Outros países também estão com excesso de estoque. O Canadá, por exemplo, comprou o suficiente para cobrir sua população quase quatro vezes.
No Fórum Econômico Mundial realizado remotamente em Davos, Suíça, na semana passada, o presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, criticou as nações ricas por acumularem e pediu que as compartilhassem com os mais vulneráveis do mundo.
Alguns países até foram além e adquiriram até quatro vezes o que sua população precisa, e isso foi feito para acumular essas vacinas. E agora isso está sendo feito com a exclusão de outros países do mundo que mais precisam dela
Antecipando-se a esse problema, a iniciativa COVAX foi criada em junho do ano passado com o objetivo de disponibilizar dois bilhões de doses de vacinas para serem distribuídas em partes do mundo onde havia lacunas, principalmente no sul global (os países em desenvolvimento).
Mesmo assim, cobrirá apenas cerca de 20% das pessoas em cada país elegível. Na verdade, as mesmas nações ricas acusadas de acumular estão doando para a iniciativa, com o Reino Unido sendo o maior doador de um único país.
As disputas por suprimentos renovaram os apelos para que todos os países trabalhem em um sistema centralizado para evitar essa distribuição desigual de doses.
“Embora muitos tenham contribuído de forma louvável com grandes somas de dinheiro para COVAX, eles minam sua eficácia e o esforço geral para acabar com a pandemia o mais rápido possível para todos ao se envolverem simultaneamente no armazenamento de vacinas”, pontuou Obiora Okafor, o especialista independente da ONU em direitos humanos e solidariedade internacional.
Mas parece haver pouca esperança de que isso realmente aconteça. Mesmo a OMS – cujo chefe disse em setembro que as vacinas iniciais devem atingir “algumas pessoas em todos os países, ao invés de todas as pessoas em alguns países” – parece ter perdido a esperança de uma resposta verdadeiramente colaborativa.
Quando questionado pela CNN em uma coletiva de imprensa se o Reino Unido deveria ser autorizado a obrigar a AstraZeneca a fornecer primeiro as doses da vacina, o diretor regional da OMS para a Europa, Hans Kluge, disse que “solidariedade não significa necessariamente que cada país do mundo comece exatamente a vacinar no mesmo momento”.
James Frater, Chris Liakos, Luke McGee, Schams Elwazer e Sophia Saifi, da CNN, contribuíram para esta reportagem.
Texto traduzido. Leia o original, em inglês.