Análise: como a saída da Rússia do acordo de grãos pode afetar a fome no mundo
Rússia suspendeu participação no tratado após um ataque com drones na Crimeia
A decisão da Rússia de suspender indeterminadamente um acordo que garantia a passagem segura para navios que transportavam grãos a partir da Ucrânia provocou “graves preocupações” com o fornecimento global de alimentos, em um momento em que o mundo enfrenta uma crescente crise de fome.
Organizações humanitárias globais, a União Europeia, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e as Nações Unidas (ONU) pediram a Moscou que volte atrás, alertando que qualquer declínio nas exportações vindas da Ucrânia pode ter consequências potencialmente mortais.
Veja abaixo o que sabemos até agora sobre o acordo e o impacto da quebra dele.
Entenda o que é o acordo
O acordo entre a Rússia e a Ucrânia foi negociado em julho pelas ONU e pela Turquia, estabelecendo um procedimento que garantia a segurança dos navios que transportam grãos, fertilizantes e outros alimentos ucranianos através de um corredor humanitário no Mar Negro.
Assim, todos os navios que chegavam e saíam dos portos da Ucrânia foram inspecionados e monitorados por equipes internacionais compostas por funcionários da Rússia, Ucrânia, Turquia e da ONU.
Depois que o governo russo anunciou que estava se retirando do acordo “por um período indefinido de tempo”, as partes restantes anunciaram que continuariam com o programa e com as inspeções sem a outra nação.
O presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan, disse nesta segunda-feira (31) que está determinado a tentar manter viva a iniciativa. “Um terço do trigo do mundo é produzido pela Rússia e pela Ucrânia. Vocês são as testemunhas mais próximas de nossos esforços para entregar este trigo aos países que enfrentam a ameaça da fome”, disse Erdogan em um evento em Istambul.
No entanto, o Kremlin alertou contra a continuação do negócio. Questionado se era possível manter os embarques de grãos sem a participação da Rússia, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, alertou a jornalistas nesta segunda que, sem o país para garantir a segurança da navegação, “tal acordo é dificilmente viável”.
Situação de momento
Apesar da decisão da Rússia de desistir do acordo, o governo ucraniano informou que 12 navios conseguiram deixar os portos do Mar Negro na manhã desta segunda-feira.
Entre eles, o Ikaria Angel, que é fretado pelo Programa Mundial de Alimentos e estava carregado com 30 mil toneladas de trigo, com destino ao Chifre da África, que atualmente vive uma grande crise alimentar.
A movimentação dos transportes nesta segunda sugerem que, apesar da decisão russa, o país não conseguiu reimpor, até o momento, um bloqueio completo aos portos do Mar Negro da Ucrânia.
A ONU afirmou no domingo (31) que um plano foi colocado em prática para permitir que 16 navios se deslocassem nesta segunda – 12 saindo de portos ucranianos e 4 em direção a eles. A organização acrescentou que havia 21 navios dentro ou perto dos portos ucranianos, com capacidade total de mais de 700 mil toneladas de alimentos, que foram impactados pelo anúncio.
No entanto, autoridades da Ucrânia alertaram que dezenas de barcos podem ser impedidos de navegar.
Importância do acordo
A Ucrânia desempenha um papel fundamental no mercado global de alimentos. Segundo a ONU, o país normalmente fornece ao mundo cerca de 45 milhões de toneladas de grãos por ano, estando entre os cinco maiores exportadores globais de cevada, milho e trigo. É também o maior exportador de óleo de girassol, respondendo por 46% das exportações mundiais.
Em tempos normais, a Ucrânia exportaria cerca de três quartos dos grãos que produz. Cerca de 90% dessas exportações já foram enviadas por via marítima dos portos do Mar Negro, de acordo com dados da Comissão Europeia.
Quando a Rússia lançou sua invasão da Ucrânia no final de fevereiro, efetivamente impôs um bloqueio aos navios que saíam dos portos do país. O impacto da guerra nos mercados globais de alimentos era iminente e extremamente perigoso, especialmente por a Ucrânia ser um importante fornecedor de grãos para o Programa Mundial de Alimentos.
A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, um órgão da ONU, alertou que até 47 milhões de pessoas podem ter “insegurança alimentar aguda” por causa da guerra.
Com essas questões em mente, o acordo do Mar Negro forneceu um alívio muito necessário. A ONU estima que a redução dos preços dos alimentos básicos como resultado da negociação impediu indiretamente que cerca de 100 milhões de pessoas caíssem na pobreza extrema.
O órgão acrescentou que, nesta segunda-feira (31), mais de 9,5 milhões de toneladas métricas de alimentos foram exportadas sob o acordo desde que entrou em vigor.
Shashwat Saraf, diretor de emergência da África Oriental do Comitê Internacional de Resgate, disse que um colapso do tratado “atingia mais aqueles à beira da fome”.
“O bloqueio está gerando sérias preocupações sobre a crescente crise global da fome, especialmente na África Oriental, onde mais de 20 milhões de pessoas estão passando fome, ou em lugares como o Iêmen, que depende da Rússia e da Ucrânia para quase metade de sua importação de trigo e onde mais de 19 milhões de pessoas precisam de assistência alimentar”, destacou.
“Qualquer tentativa de minar o acordo é um ataque a famílias famintas em todo o mundo, cujas vidas e meios de subsistência dependem desta iniciativa”, advertiu a administradora da USAID, Samantha Power, no domingo (30).
Na sexta-feira (28), o secretário-geral das Nações Unidas, Antonio Guterres, pediu a todos os lados que renovem o tratado: “Se alimentos e fertilizantes não chegarem aos mercados globais agora, os agricultores não terão fertilizantes na hora certa e a um preço que possam pagar à medida que a estação de plantio começa, colocando em risco as colheitas em todas as regiões do mundo em 2023 e 2024, com efeito dramático na produção de alimentos e nos preços dos alimentos em todo o mundo”.
“A atual crise de acessibilidade se transformará em uma crise de disponibilidade”, concluiu.
Motivos para a suspensão do acordo
Segundo o tratado original, ele deveria estar em vigor por pelo menos 120 dias e seria renovado em meados de novembro.
Porém, no sábado (29), o Ministério da Defesa da Rússia disse que o país estava abandonando o acordo por causa de ataques de drones na cidade de Sebastopol, na Crimeia.
Autoridades russas disseram que seus sistemas de defesa aérea “repeliram ataques de drones” à cidade, alegando que um dos equipamentos poderia ter sido lançado de um navio civil transportando grãos. A CNN não pode verificar independentemente o relato da Rússia.
A Ucrânia não confirmou que suas forças atacaram o porto, e a extensão dos danos aos navios russos ainda não está clara.
Moscou culpou o governo ucraniano pelos ataques, mas também acusou o Reino Unido de ajudar Kiev a planejá-los. A Grã-Bretanha, por sua vez, acusou a Rússia de “promover falsas alegações de escala épica”.
Andrii Yermak, chefe do gabinete do presidente ucraniano, acusou a Rússia de inventar “ataques terroristas fictícios” em suas próprias instalações na Crimeia, assim como suposta “chantagem”.
O governo russo há muito tempo ameaçava desistir do tratado, após reclamar que ele não havia produzido os benefícios prometidos para as exportações russas de grãos e fertilizantes. Como parte do acordo, a ONU e a Rússia assinaram um memorando de entendimento destinado a proteger as exportações russas de fertilizantes e outros produtos agrícolas dos impactos das sanções ocidentais.
No entanto, o país afirmou na semana passada que elas ainda estavam sendo obstruídas. Embora a União Europeia e os Estados Unidos tenham concordado em isentar essas exportações de seus embargos, sanções a instituições financeiras e proibições de navios ligados à Rússia significam que a capacidade do país de exportar esses produtos é limitada.
O presidente russo, Vladimir Putin, ameaçou na semana passada restringir a exportação da Ucrânia para a Europa, alegando que os países em desenvolvimento não estavam recebendo sua parte justa do grão.
Em comunicado à CNN, a ONU destacou que, sob a Iniciativa de Grãos do Mar Negro, cerca de 30% dos “grãos e outros alimentos” chegaram a países de baixa e média renda.
Reação do mercado
Os preços do trigo e do milho nos mercados globais de commodities subiram na segunda-feira (31). Os “futuros” de trigo na Bolsa de Chicago subiram 5,5% na segunda-feira, para US$ 8,74 por bushel.
Os contratos futuros de milho subiram 2,3%, para US$ 6,96 por bushel. As negociações de “futuros” de óleo de palma na Malásia também subiram, informou a Reuters, devido a temores sobre o potencial impacto nas exportações de óleo de girassol ucraniano.
Hanna Ziady, Julia Horowitz, Anna Chernova, Tim Lister, Isil Sariyuce, Sarah Fortinsky, Sharon Braithwaite, Jorge Engels, Uliana Pavlova, Sugam Pokharel, Dennis Lapin, Katharina Krebs, Jo Shelley e Victoria Butenko, da CNN contribuíram para esta reportagem.