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    Afeganistão: Saída dos EUA ofusca protagonismo internacional prometido por Biden

    Presidente norte-americano disse que 'EUA estavam de volta' ao cenário global, mas episódio que culminou com ascensão do Talibã coloca isso em xeque

    Kevin Liptak e Kaitlan Collins, da CNN

    Ao viajar para Bruxelas, em junho, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, foi sincero em sua mensagem aos aliados norte-americanos.

    “Os EUA estão de volta”, declarou ele no saguão da sede da União Europeia (UE), repetindo um mantra que proferiu em quase todas as paradas de sua primeira viagem ao exterior, durante a qual os líderes o receberam como um contraponto aos quatro anos de angústia da era Trump.

    É extremamente do interesse dos Estados Unidos da América ter um ótimo relacionamento com a [Organização do Tratado do Atlântico Norte] Otan e com a UE”, disse Biden. “Tenho uma visão muito diferente da do meu antecessor.”

    Dois meses depois, o mesmo grupo de aliados agora está se perguntando o que aconteceu com aquele Biden. O fim humilhante da guerra no Afeganistão alimentou preocupações persistentes sobre uma política externa “América em Primeiro Lugar” que alguns aliados temem não ter desaparecido completamente. 

    E a queda caótica de Cabul, no Afeganistão, que pegou autoridades norte-americanas desprevenidas e gerou uma grande corrida dos EUA e de outros países para retirar diplomatas e afegãos que ajudaram nos esforços de guerra, afetou gravemente a promessa de Biden de restaurar a competência nas relações exteriores americanas.

    A retomada do país pelo Talibã levou a um destino incerto para mulheres e meninas afegãs, causando dúvidas sobre a insistência repetida de Biden – incluindo esta semana – de que os direitos humanos estarão no “centro da política externa [dos EUA]”.

    E alguns temem que o pandemônio causado pela saída norte-americana possa fornecer uma abertura para países como Rússia e China – os mesmos lugares onde Biden espera redirecionar a política externa dos EUA – semearem dúvidas sobre a confiabilidade de Washington.

    “China e Rússia estão em campo dizendo: este é o seu parceiro?” disse David Petraeus, general aposentado que comandou as forças no Afeganistão e serviu como diretor da CIA, descrevendo uma mensagem vinda de Pequim e Moscou com o objetivo de minar a posição global dos americanos. 

    “Os líderes europeus estão questionando (os EUA), apesar do sucesso da cúpula da UE e da reunião do G7 e tudo o mais, porque muitos deles, senão todos, queriam ficar.”

    ‘Essa não é a maneira como você trata seus aliados’

    Tudo se desenrolou com a escassa comunicação do próprio Biden, que esperou 48 horas após a queda de Cabul para falar com qualquer líder estrangeiro. Ele telefonou para o primeiro-ministro da Grã-Bretanha na tarde de terça-feira (17) e, na quarta-feira (18), falou com a chanceler alemã, Angela Merkel.

    A Casa Branca disse que ligações regulares estavam em andamento nos níveis mais baixos do governo com foco em questões logísticas ou operacionais. Mas os líderes de outros países ainda encontraram tempo para conversar – na quarta-feira, Merkel havia falado com os líderes da Grã-Bretanha, França, Itália, Paquistão, Catar e o alto comissário das Nações Unidas para os refugiados.

    A crise no Afeganistão ensinou aos norte-americanos e líderes em capitais estrangeiras algumas coisas sobre o ainda novo presidente, cujas quatro décadas na vida pública lhe deram um ar de familiaridade. 

    Algumas de suas características políticas mais marcantes, como empatia e otimismo, foram substituídas por uma realpolitik mais fria. Sua promessa de restaurar a competência do governo foi prejudicada por cenas de caos e previsões confiantes que se revelaram erradas.

    Saída norte-americana do Afeganistão frustrou aliados dos EUA
    Saída norte-americana do Afeganistão frustrou aliados dos EUA e derrubou popularidade de Joe Biden
    Foto: Leah Millis – 16.ago.2021/Reuters

    “É uma falta de comunicação, de honestidade, com o povo americano e com aliados ao redor do mundo que estão profundamente decepcionados com um governo Biden que achavam que seria muito mais multilateral, especialmente em uma questão em que os aliados têm lutado com os americanos há 20 anos”, disse Ian Bremmer, diretor do Eurasia Group. 

    “A decisão sobre como e quando partir foi tomada unilateralmente pelos norte-americanos e, francamente, não é assim que você trata seus aliados”, completou.

    Líderes mundiais questionam retirada dos EUA

    Já irritados com a maneira como Biden decidiu que a guerra terminaria, líderes de países que lutaram ao lado dos Estados Unidos agora questionam abertamente como a retirada foi executada.

    “Este é um desenvolvimento particularmente amargo. Amargo, dramático e terrível”, disse Merkel durante uma entrevista coletiva esta semana.

    Nos bastidores, pessoas familiarizadas com o assunto dizem que ela foi mais crítica em relação à decisão de Biden, dizendo aos membros de seu partido que “razões políticas internas” o levaram a decidir pela retirada.

    Na Grã-Bretanha, o primeiro-ministro Boris Johnson andou na corda bamba, na esperança de manter sua relação de trabalho próxima com Biden, ao mesmo tempo em que reconhece a raiva de muitos em seu partido – e até mesmo dentro de seu próprio governo – em relação ao plano de retirada dos Estados Unidos. 

    No Parlamento, na quarta-feira, o membro conservador que preside o comitê de relações exteriores ofereceu uma repreensão particularmente veemente à tentativa de Biden de culpar as forças de defesa do país pela situação no Afeganistão.

    “Ver seu comandante em chefe questionar a coragem dos homens com quem lutei, alegar que fugiram, é vergonhoso”, disse Tom Tugendhat, que serviu no Afeganistão. “Isso não precisa ser uma derrota, mas no momento parece que é.”

    Após a conversa de Johnson com Biden, Downing Street disse que o primeiro-ministro enfatizou “a importância de não perder os ganhos obtidos no Afeganistão nos últimos vinte anos, de nos proteger contra qualquer ameaça emergente do terrorismo e de continuar a apoiar o povo do Afeganistão”.

    O francês Emmanuel Macron já era um defensor vocal de uma política de segurança europeia que dependesse menos dos Estados Unidos. Ele advertiu em um discurso na segunda-feira que “a Europa sozinha não pode assumir as consequências da situação atual” e chamou a atenção ao dizer que a França deve “se proteger de uma onda de migrantes” do Afeganistão.

    E o canadense Justin Trudeau, que, como Macron, tentará a reeleição, já resistiu às críticas dos conservadores em seu país por “abandonar” os afegãos após a queda de Cabul para o Talibã. Ele ainda não falou com Biden, mas durante uma entrevista coletiva na quarta-feira procurou destacar suas consultas com outro líder americano: a ex-secretária de Estado Hillary Clinton.

    “(Hillary) compartilha nossa preocupação com as mulheres e meninas afegãs”, disse ele, descrevendo um telefonema que os dois tiveram nesta semana. “Ela deu as boas-vindas aos nossos esforços e instou o Canadá a continuar nosso trabalho.”

    EUA ‘criaram condições para decisão da Otan’ de deixar Afeganistão

    Biden deve enfrentar o G7 novamente na próxima semana durante uma reunião virtual que a Grã-Bretanha, que atualmente está liderando o grupo em sua presidência rotativa, agendou conforme a situação no Afeganistão se deteriorou.

    Duas outras grandes conferências globais estão programadas para o fim do ano: a Assembleia-Geral das Nações Unidas, que os EUA esperam que se torne praticamente virtual, e o G20 em Roma, onde Biden tentará novamente transmitir a liderança norte-americana no exterior.

    O presidente dos EUA ainda pode apontar para uma longa lista de maneiras pelas quais ele se distinguiu de seu antecessor, desde voltar ao acordo climático de Paris até abraçar totalmente a Otan, que Trump via com ceticismo. E o Afeganistão, embora atualmente o centro das atenções internacionais, dificilmente é o único assunto que Biden e seus homólogos estrangeiros enfrentam.

    Mas mesmo em outras áreas, Biden mostrou disposição para desconsiderar as contribuições internacionais. O anúncio do governo, na quarta-feira (18), de que doses de reforço da vacina contra Covid-19 serão oferecidas a todos os americanos foi em oposição direta ao apelo da Organização Mundial da Saúde (OMS) para que todas as doses disponíveis sejam enviadas para lugares onde até mesmo as primeiras doses estão demorando.

    “Biden é o presidente dos Estados Unidos para o povo americano, mas o nível de indiferença para com os aliados e o cidadão comum de fora dos Estados Unidos está começando a irritar muitos que estão com os americanos há muito tempo”, disse Bremmer.

    Outros analistas minimizaram o risco para a posição norte-americana representado pela situação no Afeganistão.

    “Acho que existe essa noção de que de alguma forma a credibilidade norte-americana foi fundamentalmente minada, ou permanentemente minada”, disse Aaron David Miller, ex-negociador do Oriente Médio e analista de assuntos globais da CNN

    “Não acredito mesmo nisso. Investimos 2.300 vidas norte-americanas, dezenas de milhares de afegãos, trilhões de dólares e lutamos bem… mas era hora de partir. E não consigo imaginar qualquer um, talvez com exceção do governo [de Ashraf] Ghani, que vá nos responsabilizar ao longo do tempo por esta partida.”

    Biden e sua equipe argumentaram repetidamente que deixar o Afeganistão nunca seria fácil ou sem problemas, mas fazer isso ainda era a decisão certa. E Biden disse aos norte-americanos que aceitará a responsabilidade pelas consequências, mesmo que coloque a culpa em outro lugar.

    Ainda assim, mesmo antes de o Talibã tomar Cabul e o colapso do governo civil afegão, aliados dos EUA no exterior reclamaram em particular que não serem devidamente consultados antes de Biden anunciar que retiraria as tropas dos EUA até 11 de setembro. 

    Alguns também questionaram como a segurança poderia ser mantida no país, quando As tropas americanas partem, principalmente do aeroporto internacional de Cabul e de outras instalações diplomáticas.

    Durante a reunião da Otan em Bruxelas em meados de junho, Biden afirmou que havia um “forte consenso” entre os líderes sobre seu plano de retirada. E um funcionário do alto escalão do governo disse a repórteres que havia “uma quantidade incrível de calor e unidade em torno de toda a agenda, incluindo o aspecto ‘dentro-juntos-fora-juntos’ da retirada do Afeganistão”.

    Mas, desde então, as autoridades enquadraram a decisão como essencialmente forçada pelos Estados Unidos.

    “Na verdade, era politicamente impossível para os aliados europeus continuarem no Afeganistão, dado o fato de que os Estados Unidos decidiram encerrar sua missão militar”, disse o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, ao “Novo Dia” da CNN americana na quarta-feira. “Entramos juntos, ajustamos nossa presença juntos e agora partimos juntos, após consultas rigorosas entre todos os 30 aliados.”

    Pressionado se isso significava que a decisão dos EUA tinha amarrado as mãos da Otan, Stoltenberg foi claro: “A decisão dos EUA, é claro, moldou ou criou as condições para a decisão da Otan.”

    (Texto traduzido; leia o original em inglês)

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