Acusado de treinar militares chineses, ex-fuzileiro naval dos EUA luta contra extradição
Daniel Duggan está preso na Austrália desde outubro do ano passado
O ex-fuzileiro naval Daniel Duggan pilotou jatos Harrier para os Estados Unidos, decolando e pousando em porta-aviões da Marinha durante missões internacionais como parte do Esquadrão de Ataque Marítimo 214, baseado em Yuma, no Arizona.
Isso foi há mais de 20 anos, mas sua atividade desde que deixou o serviço agora é objeto de uma acusação dos EUA, que alega que ele usou suas habilidades especiais para ensinar pilotos chineses a pousar aviões em porta-aviões. Duggan nega.
Desde outubro do ano passado, o ex-fuzileiro está detido em uma prisão de segurança máxima na Austrália enquanto seus advogados lutam contra uma ordem de extradição, aprovada pelo procurador-geral do país, para devolvê-lo aos EUA e enfrentar o julgamento por acusações que incluem lavagem de dinheiro e conspiração para exportar serviços de defesa dos norte-americanos.
Nesta terça-feira (25), os advogados de Duggan pediram a suspensão da extradição enquanto o Gabinete do Inspetor-Geral de Inteligência e Segurança (IGIS, em inglês) da Austrália investiga as acusações de ação imprópria da Organização Australiana de Inteligência de Segurança (ASIO), incluindo que Duggan foi “atraído” da China, onde vivia, para o país da Oceania, onde os EUA têm alcance legal para prendê-lo .
O caso ocorre quando os EUA e seus aliados buscam se unir contra a China no Indo-Pacífico, onde Pequim vem fortificando ilhas com instalações militares que temem que um dia possam ser usadas em um conflito regional.
Do Centro Correcional de Lithgow, onde está detido, Duggan disse à “Australian Broadcasting Corporation (ABC)” que estava “vivendo um pesadelo”. “Eu rejeito vigorosamente a acusação em sua totalidade”, expôs.
A esposa de Duggan, Saffrine, quer que as autoridades australianas bloqueiem sua extradição. Ela e alguns de seus seis filhos ficaram do lado de fora do tribunal, segurando cartazes pedindo sua libertação.
“Estamos horrorizados que algo assim possa acontecer, não apenas para nós, mas para qualquer um”, citou Saffrine Duggan.
“Eu nunca teria pensado que isso poderia acontecer na Austrália, muito menos em nossa família. Minha família é corajosa e forte, assim como nossos amigos, e meu marido também, mas estamos todos terrivelmente separados”, prosseguiu.
As alegações
Depois de completar sua missão final como major com os fuzileiros navais dos EUA, Duggan mudou-se para a Austrália em 2002. Ele conheceu Saffrine em 2011 e, um ano depois, tornou-se cidadão australiano, renunciou à cidadania americana e a família mudou-se para a China.
Saffrine e os filhos voltaram para a Austrália em 2018, e Duggan se juntou a eles em setembro de 2022, depois de receber autorização da segurança australiana para uma licença de aviação, dizem seus apoiadores.
Mas dentro de semanas, essa autorização foi revogada e ele foi levado sob custódia.
As acusações referem-se a um período entre novembro de 2009 e novembro de 2012, quando Duggan – então cidadão dos EUA – teria treinado pilotos militares na China, de acordo com uma acusação de 2017, que foi revelada em dezembro do ano passado.
A acusação dizia que “já em 2008”, Duggan recebeu um e-mail do Departamento de Estado dos EUA informando que ele deveria se registrar na Diretoria de Controles de Comércio de Defesa e solicitar permissão para treinar uma força aérea estrangeira.
Em vez disso, afirma que o ex-fuzileiro conspirou com outros – incluindo a Academia de Teste de Voos da Africa do Sul (TFASA) – para exportar serviços de defesa em violação de um embargo de armas à China.
Em comunicado à CNN, a TFASA disse que cumpre as leis de todas as jurisdições em que opera.
O comunicado disse que Duggan assinou um contrato de piloto de teste para a empresa na África do Sul entre novembro e dezembro de 2012 e “nunca trabalhou para a TFASA em nenhum de seus mandatos de treinamento na China”.
A acusação alega que Duggan negociou diretamente com uma empresa chinesa para fornecer outros serviços de defesa por um valor, incluindo “a avaliação de pilotos estagiários, teste de equipamentos relacionados à aviação naval, instrução sobre táticas, técnicas e procedimentos para lançar aviões e aterrissar em um porta-aviões naval”.
Duggan disse à “ABC” que nenhum dos treinamentos envolvia a divulgação de informações secretas ou de propriedade alheia. “É tudo de domínio público, informações de código aberto que qualquer um, se estiver interessado, pode pesquisar no Google ou na Wikipedia”, explicou.
O treinamento oferecido pela TFASA supostamente envolvia o uso de um T-2 Buckeye, um avião bimotor de asa reta, adquirido nos Estados Unidos e exportado para a África do Sul, sem autorização dos Estados Unidos.
Em sua declaração à CNN, a TFASA declarou que apenas alugou o avião de um parceiro de negócios na África do Sul e nunca tentou comprá-lo. Duggan voou o T-2, entre outros aviões, durante seu contrato, mas a empresa parou de usar a aeronave quando abordada por funcionários da Embaixada dos EUA na África do Sul, acrescentou a TFASA.
Treinando pilotos chineses
Duggan não nega o treinamento de pilotos chineses, mas afirma que eles eram civis – entusiastas de aviões que buscam melhorar suas habilidades ou membros em potencial da indústria de aviação da China, então em rápida expansão.
Glenn Kolomeitz, ex-membro da Força de Defesa Australiana e advogado, que defende a família, disse à CNN que é “muito, muito comum as pessoas deixarem o exército e irem trabalhar no exterior”.
“Dan era apenas um instrutor, apenas um treinador de pilotos. É isso”, citou Kolomeitz à CNN.
“Ele não fazia parte da empresa (TFASA), não estava de forma alguma envolvido em nenhuma administração, gestão, e como poderia ter pensado, ou mesmo considerado que haveria alguma ilegalidade nisso, quando há tantas pessoas, incluindo altos escalões da RAF, a força aérea britânica, envolvidas neste treinamento.”
Em 18 de outubro, três dias antes de Duggan ser preso na Austrália, o Ministério da Defesa do Reino Unido emitiu um comunicado alertando que estava tomando “medidas decisivas para impedir os esquemas de recrutamento chineses que tentam caçar pilotos em serviço e ex-pilotos das Forças Armadas do Reino Unido”.
No dia seguinte, o ministro da Defesa da Austrália, Richard Marles, informou que havia pedido a seu departamento para investigar relatos de que ex-pilotos militares australianos também haviam sido recrutados pela TFASA para trabalhar na China. E um porta-voz da Força de Defesa da Nova Zelândia confirmou à Reuters que quatro de seus ex-pilotos militares foram recrutados pela empresa.
Dois dias depois, Duggan foi levado sob custódia perto de sua casa na zona rural de New South Wales e só soube das acusações contra ele 62 dias depois, contou Saffrine. Ele pode pegar até 65 anos de prisão se for considerado culpado.
“Tem sido devastador. As crianças e eu ficamos perturbados. É apenas uma luta. É uma luta diária. As crianças têm muitas perguntas. Lágrimas constantes. Quero dizer, é horrível”, disse ela à CNN.
Desde a prisão de Duggan, o Reino Unido e a Austrália passaram a endurecer as leis para ex-militares que treinam forças estrangeiras.
“A nova legislação que está sendo desenvolvida removerá quaisquer dúvidas sobre a aplicação dessas leis em todos os nossos segredos de defesa”, justificou um porta-voz de Marles.
Em um discurso em fevereiro, Mike Burgess, diretor-geral de Segurança da Austrália e chefe da ASIO, expôs que um número “pequeno, mas preocupante” de veteranos australianos estava disposto a colocar o “dinheiro antes do país”.
“Esses indivíduos são lacaios, mais ‘ferramentas de ponta’ do que ‘armas de ponta’. Vender nossas habilidades de combate não é diferente de vender nossos segredos – especialmente quando o treinamento e as táticas estão sendo transferidos para países que os usarão para fechar lacunas de capacidade e poderão usá-los contra nós ou nossos aliados em algum momento no futuro”, prosseguiu.
O Buckeye T-2
A notícia da prisão de Duggan se espalhou pelas fileiras dos ex-fuzileiros navais dos EUA, conta Ben Hancock, um coronel aposentado que serviu um posto acima de Duggan no final dos anos 90, quando foi destacado para missões que o levaram ao Golfo Pérsico e ao redor da Ásia, com uma parada final em Townsville, na Austrália.
“Ele era o que chamávamos de instrutor de armas e táticas, que é a mais alta qualificação de instrutor que você pode obter no Corpo de Fuzileiros Navais”, expressou.
“É um curso muito caro, você tem que ser escolhido a dedo para ser encaminhado. E, então, quando você retorna, você se torna o guru do treinamento para todos os outros no esquadrão”, continuou. “Ele era o máximo. Eu confiei nele com a minha vida.”
Hancock revelou ainda que Duggan deixou o serviço como um “honrado fuzileiro naval” e, embora não tivesse falado com ele desde sua prisão, eles mantiveram contato por e-mail esporadicamente ao longo dos anos.
Hancock disse que o T-2 Buckeye foi usado por muitas gerações pelos pilotos da Marinha e do Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA para aprender manobras em um navio — como catapultar e prender aeronaves, bem como fazer pousos interrompidos.
Ele disse que era “incomum” ver um T-2 Buckeye em uma escola de aviação civil, porque a maioria deles havia sido “desativada”, mas o descreveu como uma ótima aeronave introdutória para treinamento militar.
“É um ótimo avião acrobático se você quiser ensinar um cara a pilotar um jato bimotor, como lidar com jatos, a velocidade do jato sobre aviões a hélice e depois fazer acrobacias e séries de estol… É um ótimo avião para treinar qualquer pessoa em ambientes de vôo extremos que permitem recuperar o avião com segurança”, explicou.
Ainda foi relatado por Hancock que não foram vistas evidências contra Duggan.
Entretanto, ele questiona por que ninguém mais foi acusado e diz que a grande maioria da experiência de Duggan foi pilotar Harriers que decolam e pousam verticalmente, o que requer uma abordagem diferente.
“Como pilotos do Harrier, durante todo o nosso tempo no mar, fizemos decolagens curtas usando a capacidade do Harrier, não uma catapulta. Pegaríamos por conta própria e então faríamos cada pouso verticalmente. E os chineses não têm esses tipos de jatos”, justificou. “Então Dan não tinha expertise, na minha opinião, para treinar caras para isso. É o tipo errado de aproximação e pouso.”
Em sua declaração à CNN, a TFASA negou ter ensinado técnicas de abordagem e pouso de porta-aviões para pilotos militares chineses.
“A TFASA fornece treinamento para pilotos de teste, engenheiros de teste de voo e pilotos de instrutores operacionais básicos sob condições de segurança rigorosamente controladas. Todos os aspectos e materiais de treinamento são estritamente não classificados e fornecidos de código aberto ou dos próprios clientes. Nenhum treinamento envolve táticas classificadas ou outras informações, nem quaisquer atividades de linha de frente”, manifestou por comunicado.
Os defensores de Duggan acreditam que ele foi pego em uma abordagem endurecida dos aliados ocidentais em relação à China sob o líder Xi Jinping, que nos últimos anos expandiu as forças armadas e expressou sua intenção de “reunificar” a ilha democrática de Taiwan com o continente, apesar de nunca tê-lo controlado.
Na época em que Duggan supostamente treinava pilotos militares chineses, Xi estava entrando no cenário internacional, visitando os EUA para se encontrar com o então vice-presidente Joe Biden e propondo fortalecer sua cooperação.
Vários anos depois, sob o comando do ex-presidente Donald Trump, as relações se deterioraram quando os dois países se envolveram em uma guerra comercial e os laços permanecem profundamente tensos até hoje.
A prisão de Duggan em 2022 ocorreu quando os EUA, o Reino Unido e a Austrália formaram um vínculo de segurança mais forte sob um acordo que assinaram em 2021 para unir forças no Pacífico para conter uma China cada vez mais assertiva.
Kolomeitz, o apoiador da família, diz que Duggan está sendo usado para enviar uma mensagem a Pequim para desistir de contratar seus ex-militares.
“Não recrute ex-militares ocidentais – é disso que se trata. Certo?” expresou. “Ele está enviando uma mensagem para a China e está ajudando a impulsionar as agendas legislativas dessas agências.”
O tribunal foi adiado nesta terça-feira com nova data marcada para 24 de novembro para a audiência de extradição de Duggan. Até lá, aguardando qualquer pedido de fiança, o ex-piloto americano estará detido por mais de 12 meses.