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    ‘Achei que fosse morrer’: manifestantes de Mianmar descrevem torturas na prisão

    Mais de 4.400 pessoas foram detidas pelas forças de segurança de Mianmar desde que os militares tomaram o poder no dia 1º de fevereiro

    Helen Regan, Sandi Sidhu e Clarissa Ward e Salai TZ, CNN

    Os olhos do jovem de 19 anos estão tão inchados que ele mal consegue abri-los. Seu rosto está marcado por vergões e hematomas. Lacerações longas e escuras, que ainda não cicatrizaram, estão gravadas em seus ombros e costas.

    São feridas, disse ele, infligidas por oficiais militares de Mianmar. “Achei que fosse morrer”, disse o adolescente, que não quis ser identificado por motivos de segurança, sobre sua passagem por três dias em um campo de detenção militar, enquanto mostrava uma foto de seus ferimentos.

    Ele é uma das mais de 4.400 pessoas detidas pelas forças de segurança de Mianmar desde que os militares tomaram o poder no dia 1º de fevereiro, de acordo com o grupo de defesa Associação de Assistência para Prisioneiros Políticos.

    Os ferimentos fazem parte de uma repressão sistemática e sangrenta a qualquer oposição, que inclui políticos, manifestantes, jornalistas, trabalhadores, celebridades e até mesmo crianças e transeuntes. Muitas pessoas foram capturadas e mantidas em instalações secretas, após invasões noturnas ou sequestradas nas ruas.

    Pouco se sabe sobre as condições em que são mantidas, mas os relatos daqueles que foram libertados, bem como de desertores do exército e de familiares, detalham atos brutais de violência e tortura. O adolescente do início desta reportagem saiu de Bago em direção a Yangon em sua motocicleta até ser parado em um posto de controle militar no dia 9 de abril.

    Naquele mesmo dia aconteceu uma das mais violentas repressões contra os manifestantes, com mais de 80 mortos pelas forças de segurança da cidade, de acordo com a AAPP. Procurando em sua bolsa e telefone, os soldados encontraram imagens dele com um escudo em protestos. O jovem de 19 anos disse que foi levado a um complexo militar, onde foi espancado pelos guardas, que usaram cabos, coronhas de armas e garrafas de vidro.

    “O comandante amarrou minhas mãos nas costas e cortou minhas orelhas, a ponta do meu nariz, meu pescoço e minha garganta com uma tesoura pequena. [Ele] bateu na minha cabeça com uma garrafa de vidro e me espancou. Apontou armas para mim, mas as balas não saíram. Ele inclusive usou a arma para me ameaçar assim que cheguei ao posto deles. Quando se cansou deixou seus colegas me espancarem naquela noite”, relatou.

    Os soldados o acusaram de dar dinheiro ao Movimento de Desobediência Civil, no qual médicos, trabalhadores e funcionários públicos entraram em greve com intuito de pressionar o governo e derrubar a junta, liderada pelo general Min Aung Hlaing.

    “Eles me bateram com um cabo de aço. Dois, na verdade, já que os trançaram para torná-lo maior. Eles nos forçaram a ficar de joelhos, com as costas retas, e nos socaram e chutaram. Quando nós caímos no chão eles nos atingiram com o fio do cabo. Doeu muito. Eu até disse para me matarem ao invés de me torturarem. Foi muito doloroso”, disse o adolescente.

    Três semanas após sua soltura, ele continua escondido. As feridas estão cicatrizando, mas o jovem ainda tem dificuldade para andar e mexer nas mãos, como fechar os botões da camisa adequadamente.

    “Achei que ia morrer, mas tive que ficar forte. Não tinha fome, mas me obriguei a comer para me manter vivo”, contou. “Temos que ser libertados para podemos participar [dos protestos] de novo.” Suas cicatrizes, tanto físicas quanto mentais, são um lembrete constante da crueldade dos militares e da falta de consideração pelos civis a quem afirmam governar.

    Mais de 750 pessoas, incluindo um grande número de crianças e jovens, foram mortas pelas forças armadas desde que a junta militar tomou o poder, conforme documentou a AAPP. Um número crescente de mortos são manifestantes feridos que foram detidos pelos militares e que não receberam atendimento médico.

    Outros, incluindo membros destituídos da Liga Nacional para a Democracia que foram eleitos democraticamente, morreram sob custódia. Seus corpos também exibiam marcas da tortura.

    “Pessoas presas pelas forças de segurança têm maior probabilidade de serem submetidas a tortura ou maus-tratos durante a detenção”, disse Zaw Win, especialista em direitos humanos do grupo Fortify Rights.

    “Nossa equipe documentou casos de prisões arbitrárias, desaparecimentos forçados e espancamentos desde 1º de fevereiro. As táticas de prisão e maus-tratos feitas pelos militares estão criando um ambiente de terror e ansiedade no público. Mesmo assim manifestantes ainda estão indo às ruas para protestar pelo fim do regime militar.”

    A tortura foi amplamente documentada durante o regime militar anterior, que ensaiou uma transferência a sociedade civil em 2011. Apesar do governo civil de Aung San Suu Kyi e da Liga Nacional para a Democracia estarem no poder desde 2014, a Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura nunca foi assinado.

    A AAPP disse que a tortura em Mianmar ainda é comum durante interrogatórios e na prisão. O intuito é extrair confissões ou degradar e humilhar ainda mais os detidos.

    A CNN pediu aos militares de Mianmar para comentarem o assunto, mas ainda não obteve resposta. Na mídia estatal, a junta disse que está agindo com moderação ao lidar com “manifestantes rebeldes”. Eles os acusam de atacarem a polícia e prejudicarem a segurança e estabilidade nacional.

    Manifestante segura arma feita com canos durante protesto em Mianmar
    Manifestante segura arma caseira feita com canos durante protesto contra golpe militar em Mianmar
    Foto: Stringer/Reuters (3.abr.2021)

    Inimigo anunciado 

    Apesar das alegações de contenção, a junta militar não demonstrou vergonha em seus atos de crueldade – inclusive exaltaram tais atos como um aviso a qualquer um que ouse discordar. Todas as noites às 20h do horário local, âncoras de notícias bem penteadas anunciam uma lista de pessoas procuradas pelos militares na TV controlada pela junta.

    A lista inclui atores, músicos, jornalistas e médicos que entraram em greve como forma de protesto contra o golpe. Suas fotos e perfis nas redes sociais são diariamente divulgadas em todo o país.

    No dia 18 de abril, militares transmitiram imagens de seis pessoas que haviam prendido e acusado de fazerem bombas caseiras após uma série de explosões no dia anterior. Uma das mulheres, a professora de dança Khin Nyein Thu, de 31 anos, mal foi reconhecida pela sua própria mãe, de tão inchado e ensanguentado que estava seu rosto. A mãe, que não quis ser identificada por motivos de segurança, disse que Khin Nyein Thu foi presa durante um ataque noturno. Ela não sabe aonde está a filha, mas acredita que esteja detida em um centro de interrogatório.

    A última vez que se viram foi quando a filha estava sendo levada para a delegacia. “Ela claramente sentia dores, andava sem firmeza e, quando a chamei, ela se virou para olhar para mim. Foi nesse ponto que percebi que seu rosto estava muito inchado”, contou. “Uma pessoa que foi recentemente liberada me disse que ela foi muito agredida no rosto. Pelo que entendi, ela tem cortes no rosto e nos lábios, olhos machucados e perdeu um dente.”

    Ela descreveu sua única filha, Khin Nyein Thu, como uma pessoa criativa e artística, que adorava dançar, pintar, fazer kickbox e compartilhar o que sabe com os outros. Embora esteja detida desde o dia 17 de abril, Thu não foi acusada ou levada para a prisão. A mãe que acredita que a filha tenha sido transferida para outro centro de interrogatório.

    “Não consegui dormir a noite toda e tive uma sensação sufocante de medo. O pior foi pensar que não poderia a ver ou seguir “, disse a mãe sobre a noite em que sua filha foi levada. Desesperada para ouvir de sua filha, ela acrescentou: “Eu quero vê-la. Quero que ela receba tratamento médico o mais rápido possível.”

    “Eles vão matar quem eles quiserem”

    Mas nem todos os militares compactuam com essa repressão. Há soldados revoltados com a violência que estão sendo condenados a realizar contra seus compatriotas.

    Um ex-cadete do exército de 23 anos disse que desertou do serviço militar após suas experiências nos ataques noturnos. Ele disse que há uma cultura de intimidação e lavagem cerebral dentro do Tatmadaw (como é conhecida as forças militares de Mianmar). Desde o primeiro dia novos recrutas são informados de que o país só pode estar em paz se o exército estiver no comando. A CNN concordou em não identifica-lo por motivos de segurança.

    Recém-formado no treinamento militar em março, o jovem de 23 anos foi enviado para o município de Mingaladon, em Yangon, onde recebeu ordens de participar das missões noturnas e prender supostos manifestantes ou oponentes do golpe. Ele disse que todas as noites eles teriam de carregar dois cartuchos de munição, rifles de assalto, mapas detalhados de bairros e nomes de líderes de protesto de seus informantes.

     

    Me sentia triste todas as noites porque assistia militares batendo nas pessoas em suas próprias casas, incluindo crianças, e não podia fazer ou dizer nada. Isso me assombra todas as noites

    Ex-cadete do Exército de Mianmar, que teve a identidade preservada

     

    “Eles ordenam que atiremos quando a pessoa que queremos prender está fugindo”, disse o ex-cadete. “A certa altura, fomos prender dois líderes, um foi preso e outro tentava fugir. Atiramos nele no local.”

    Ele disse que, como a pessoa que foi baleada conseguiu escapar, prenderam sua filha, que também estava na casa. “As ordens dependem dos comandantes do grupo, se nos disseram para atirar, temos que atirar imediatamente”, acrescentou.

    O ex-cadete afirma que quebrou intencionalmente o rifle naquela noite para que não disparasse, mas não pôde evitar de participar dos espancamentos. Seu relato é uma visão angustiante das operações militares e condiz com o que é relatado pelos manifestantes e familiares dos detidos. “Eles choravam quando invadíamos suas casas e os espancávamos. Os vizinhos também sabiam, mas nenhum deles se atrevia a sair. Se alguém olha pela janela, pedimos que saia e bata neles também”, disse.

    Qualquer pessoa encontrada do lado de fora após o toque de recolher às 20h é imediatamente interrogada e espancada. Se fugirem, a ordem é que os militares receberam é de atirar. Ninguém é poupado desse tratamento, nem mulheres e crianças. “O mais novo que vi ser atirado tinha cerca de 10 ou 11 anos. Um menino”, contou.

    “Me sentia triste todas as noites porque assistia militares batendo nas pessoas em suas próprias casas, incluindo crianças, e não podia fazer ou dizer nada. Isso me assombra todas as noites.”

    O ex-cadete também descreveu o que muitos parentes e ativistas relataram: que manifestantes feridos estão tendo atendimento médico negado. Alguns morrem na prisão por causa de seus ferimentos, outros são abandonados para morrer sem ajuda para aliviar o sofrimento. “Quando as pessoas são baleadas e presas, não recebem nenhum tratamento. Vi algumas pessoas que ainda estavam vivas quando foram baleadas, mas, por não receberem nenhum tratamento, morreram logo pela manhã após perderem muito sangue. A família recebe apenas o cadáver”, disse.

    No quartel militar os militares não podem sair da base e apenas assistir ao canal militar na TV, segundo o ex-militar. “Eles fazem lavagem cerebral. Dizem que é apenas por causa da existência do Tatmadaw que o país é pacífico. Eles nos disseram que os grupos armados estão contrabandeando drogas e traficando pessoas, por isso que o Tatmadaw tem que lutar contra eles. Assim os civis não poderão mais viver em paz”, relembra.

    Atrocidades anteriores perpetuadas pelos militares mostraram que a doutrinação é feita há décadas de forma nacional. Abusos dos direitos humanos cometidos pelos militares, incluindo espancamentos, tortura, execuções extrajudiciais, trabalho forçado e violência sexual, foram documentados há muito tempo pela ONU e por grupos de direitos humanos, principalmente nas áreas de Kachin e Karen.

    Em 2017, a campanha militar de assassinato e incêndio criminoso contra a comunidade Rohingya no estado de Rakhine forçou mais de 740 mil pessoas a fugirem para o país vizinho, Bangladesh.

    Um caso de genocídio contra o líder militar e golpista Min Aung Hlaing está em andamento na Corte Internacional de Justiça. Agora, soldados, como os jovens ex-cadetes, estão apontando suas armas contra pessoas que poderiam ser seus vizinhos.

    O ex-cadete disse que foi a crueldade com as famílias dos manifestantes que “o quebrou”. “Não quero mais fazer isso, ter que sair todas as noites para espancar pessoas. Não posso continuar participando disso. Eles vão matar quem eles quiserem”, alega.

    (Esse texto é uma tradução. Para ler o original, em inglês, clique aqui)

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