A difícil arte de manobrar os maiores navios do mundo
Os navios de cruzeiro que transitam pelo Canal de Suez ou por outras vias navegáveis estreitas enfrentam muitos dos mesmos desafios que os porta-contêineres
A parada de emergência é uma manobra familiar para a maioria dos condutores. Um perigo se apresenta à frente do veículo em movimento, o motorista pisa no freio e agarra o volante, o carro para bruscamente, e espera-se que tudo esteja sob controle.
Mas o que acontece quando o veículo que você dirige é do tamanho de uma cidade pequena e não vem equipado com freios?
É esse o cenário enfrentado por aqueles que comandam centenas de gigantescos navios de cruzeiros e porta-contêineres em nossos mares e hidrovias.
A capacidade de manobra desses titãs dos oceanos chegou às manchetes nos últimos dias, quando um porta-contêineres do tamanho do edifício Empire State Building, de Nova York, encalhou no Canal de Suez, uma das vias navegáveis mais importantes do mundo.
O Ever Given – que cumpria a rota Malásia-Holanda – colidiu com a lateral do canal na terça-feira (23) quando, de acordo com a Autoridade do Canal de Suez, foi engolfado por ventos de 40 nós e uma tempestade de areia que comprometeu a visibilidade. Em meio à luta para empurrar o navio de volta ao curso normal, dezenas de embarcações ficaram presas em um engarrafamento marítimo.
Dado o tráfego intenso no Canal de Suez – em tempos normais, a média é de 106 porta-contêineres e navios de cruzeiro por dia – talvez seja até surpreendente que esse tipo de incidente não aconteça com mais frequência.
A pergunta que fizemos é: como é conduzir os maiores navios do mundo através do Suez e além. A CNN Travel conversou com especialistas no tema para saber mais.
A perspectiva do capitão
O capitão Yash Gupta é um dos comandantes desses navios porta-contêineres que cruzam os oceanos do mundo. Ele trabalha no mar há quase 20 anos. Gupta chama a vida marítima de “imprevisível, mas muito interessante”.
“Se você está no mar em operações normais, é relaxante”, afirmou à CNN Travel. “Mas nunca dá para saber o que vai acontecer a seguir. Um dia, a água está calma e o navio, firme como uma rocha. Então você acorda de manhã e vê uma tempestade chegando e ondas de até oito metros. Nunca se sabe”.
Segundo o capitão, a chave é planejar. A bordo, Gupta comanda cerca de 20 a 25 tripulantes, que trabalham sob contratos com duração de quatro a nove meses. Junto com sua equipe, Gupta mapeia cuidadosamente a rota antes do início da viagem, levando em consideração as condições das marés e do clima ao longo do trajeto.
O vento é um fator particularmente importante para esse tipo de navegação, porque os contêineres são empilhados a uma altura estonteante. “Eles formam uma parede sólida e o efeito do vento é incontrolável, porque não é possível pisar no freio como se fosse um carro em movimento”, explica Gupta.
Quanto tempo é necessário para parar um navio de contêineres?
Para responder a essa pergunta, Gupta aponta para a demanda extremamente alta por frete marítimo. “Olhe ao seu redor, onde quer que você esteja. Tudo o que você vê, ou toca, esteve em um navio em algum momento”.
Ele diz que essa alta demanda significa que os porta-contêineres são construídos para acomodar a aceleração e a desaceleração no menor tempo possível, para evitar atrasos.
Mas a escala dos navios se traduz em grandes números.
Um navio de contêiner em velocidade máxima percorre quase 3 quilômetros no mar antes de parar totalmente. Isso leva de 14 a 16 minutos, com os propulsores desligados.
Os mecanismos de direção variam de navio para navio, com alguns dirigidos por mostradores, botões e alavancas. Mas os timões ainda são comuns – só que não os gigantes de madeira que antes manobravam navios a vela.
“É um timão com muitos componentes eletrônicos envolvidos”, explica Gupta. “Quando a pá propulsora é girada, ela dá sinais eletrônicos ao leme, que gira de acordo com o comando dado”.
Ao navegar no Canal de Suez, os navios viajam em comboio e devem navegar mais ou menos na mesma velocidade que as embarcações à sua frente. A travessia pelo canal nesse ritmo cuidadoso dura de 12 a 16 horas.
“Não dá para simplesmente aumentar a velocidade, porque isso reduziria a distância entre as embarcações e aumentaria o risco de colisão”, explica o capitão.
Ao se aproximar do canal, seja pela entrada norte ou pela sul, um navio só pode prosseguir depois de embarcar um piloto representando a Autoridade do Canal de Suez.
“Esses pilotos assumem a manobra, auxiliando o capitão na travessia”.
No entanto, a responsabilidade geral pelo trânsito seguro do navio ainda é do capitão, diz Gupta.
O ponto crucial é que os pilotos do Suez são especialistas na topografia da área. Eles conhecem as marés, conhecem a profundidade da água, estão familiarizados com a largura do canal.
Durante a travessia, as ultrapassagens são desaconselháveis, embora em alguns pontos o canal seja mais largo e até permita essas manobras. Nesse caso, porém, os pilotos se comunicam uns com os outros via rádio para discutir a operação.
“Um piloto pede espaço para a ultrapassagem e o outro diminui a velocidade e abre caminho”, explica Gupta.
Também está envolvido nesse processo o que Gupta chama de uma central de controle do tráfego em Suez, equivalente às que existem nos aeroportos.
“Eles têm um radar maior e um equipamento de navegação mais potente, monitoram a movimentação de todos os navios como um todo e coordenam as atividades”.
Os rebocadores estão atualmente auxiliando o Ever Given. Gupta diz que essas pequenas embarcações são frequentemente usadas para ajudar grandes navios a navegar no Suez.
“Em algumas áreas mais estreitas do canal, os rebocadores são normalmente usados como ‘escoltas’ de grandes navios. Eles navegam junto e permanecem disponíveis para ajudar caso surja algum problema”, conta.
Perspectiva do navio de cruzeiro
Os navios de cruzeiro que transitam pelo Canal de Suez ou por outras vias navegáveis estreitas enfrentam muitos dos mesmos desafios que os porta-contêineres. Afinal, eles também são extremamente altos.
“Quanto mais alto o navio, mais suscetível aos efeitos do vento ele fica, de modo que tudo isso deve ser levado em consideração”, explica o capitão David Bathgate, que comanda os navios da Seabourn Cruise Line, uma linha de cruzeiro de luxo da Carnival.
Bathgate tem décadas de experiência marítima em seu currículo, tendo comandado navios de carga geral, graneleiros, navios porta-contêineres e petroleiros ao longo de sua carreira. Ele detém o título de capitão nas últimas duas décadas.
“Estar no comando do navio é uma experiência extremamente gratificante e satisfatória”, disse Bathgate à CNN Travel.
Assim como Gupta, ele trabalha com sua equipe de bordo no plano de viagem. Cada plano, segundo ele, abrange quatro etapas: avaliação, planejamento, execução e monitoramento.
A avaliação envolve garantir que a equipe tenha as cartas certas, avisos de navegação e condições meteorológicas atualizadas. “Daí vem o planejamento, estabelecendo a melhor rota. Depois a execução, que é fazer o trabalho de fato, levar o navio de um ponto a outro”. E o monitoramento envolve manter o controle da embarcação durante a rota e certificar-se de que ele está no caminho certo, e tomar quaisquer ações corretivas se necessário.
Bathgate diz que cada plano de viagem é verificado por pelo menos quatro pessoas, incluindo oficiais de navegação e um oficial ambiental.
Antes de navegar por uma passagem estreita, como o Suez, a equipe de Bathgate checa se todos estão cientes da profundidade e largura do canal e do que ele chama de “qualquer perigo de navegação adicional”.
Isso pode incluir áreas rasas, curvas, cantos ou margens.
Embora não seja provável que essas condições topográficas mudem, o tempo imprevisto pode ter um efeito inesperado.
“O clima é um dos aspectos mais importantes dessas passagens em águas restritas, pois determina a velocidade do vento e o nível de visibilidade”, diz Bathgate. “No Suez, por exemplo, um dos principais riscos são as tempestades de areia, que chegam muito rapidamente e sem aviso, com ventos muito fortes que podem arrastar uma quantidade significativa de areia e reduzir a visibilidade”.
Bathgate também observa como os navios transitam pelo canal em um comboio numerado; portanto, quando se aproximam do canal, ancoram e aguardam a confirmação de seu intervalo de tempo.
“Nos navios de cruzeiro, geralmente recebemos o número um no comboio e somos seguidos pelos grandes navios porta-contêineres que estão em um cronograma crítico”, conta.
O capitão do navio porta-contêineres, Gupta, explica que os navios de cruzeiro costumam ter prioridade por causa do número de passageiros e porque estão trabalhando em prazos apertados. Segundo ele, este é o padrão em Suez e em outras hidrovias também.
Normalmente, dois ou três pilotos do Canal de Suez embarcam em um navio de cruzeiro para ajudar no trânsito, e Bathgate observa que às vezes os pilotos podem mudar no meio do caminho.
E com que facilidade um navio de cruzeiro pode desacelerar ou acelerar? Os números são muito semelhantes aos de um navio porta-contêineres.
“Em velocidade máxima, apenas desligando os motores e deixando o navio deslizar, levaria 15 minutos e 2,8 quilômetros para pararmos”, diz Bathgate.
“No entanto, se quiséssemos fazer uma parada de emergência colocando os motores totalmente à ré, levaríamos pouco menos de cinco minutos, e a distância que viajaríamos seria de apenas 1,2 quilômetro. Portanto, para o tamanho do navio, são números bastante impressionantes”.
Perspectiva do passageiro
Enquanto os capitães dos cruzeiros estão trabalhando arduamente para garantir uma passagem tranquila pelo Suez, os passageiros apreciam o comboio engarrafado de suas varandas.
A britânica Pam Broadhead, que transitou pelo Canal de Suez em novembro de 2019, no Marella Discovery, um navio de cruzeiro de 11 andares da companhia britânica TUI, conta que a travessia é sempre um espetáculo. Viajando de Málaga, na Espanha, para Dubai, o navio entrou pela entrada norte e viajou no sentido sul.
“Nosso navio foi o primeiro a navegar, então coloquei o alarme cedo para ver o nascer do sol no convés”, relatou a turista à CNN Travel, lembrando que os passageiros bebiam café e comiam croissants enquanto viam o sol aparecer no horizonte.
“Depois de ver o nascer do sol nos sentamos na varanda com os cafés vendo os barcos (todos porta-contêineres) passarem por nós em comboio constante. Estavam quase totalmente carregados com contêineres”.
De vez em quando, os passageiros avistavam barcos de pesca locais, superados em tamanho pelo Marella Discovery e pela maioria dos outros navios do comboio.
“Acho que eles gostaram muito de acenar para nós, assim como nós para eles”, lembra.
Broadhead e seu marido esperavam uma boa visão da Ponte da Paz Mubarak – uma ponte rodoviária que cruza o canal e liga a Ásia à África – mas a neblina da manhã atrapalhou as fotos.
“De todo modo, só o fato de passar sob ela já foi emocionante, até porque sou de uma geração que acompanhou a crise de Suez”, conta. “Em um ponto, a visibilidade era de apenas alguns metros em um banco de nuvem branca, tornando impossível ver as bordas do canal ou mesmo a água ou outros navios, mas continuamos navegando silenciosamente”.
Quando o navio alcançou a saída sul, foi retido por um tempo antes de deixar o canal. Broadhead e seus companheiros de viagem puderam apreciar toda a viagem pelo canal, que terminou ao pôr do sol no Golfo de Suez.
(Texto traduzido, clique aqui e leia o original em inglês)