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    Como a Copa do Mundo mudou a maneira como o mundo vê o Catar

    País cresceu diante os olhos do mundo, mas também se envolveu em polêmicas repercutidas fortemente no Ocidente

    Issy Ronaldda CNN

    O Catar ficou no centro do mundo nas últimas semanas – e foi uma boa viagem.

    Para os cataris, a Copa do Mundo não só permitiu que o país demonstrasse a sua capacidade de organizar um torneio tão importante, como foi uma oportunidade para expor ao mundo a sua cultura, exibindo tudo do país, de sua arquitetura à hospitalidade do povo.

    Estar nos holofotes também colocou uma lupa no país e grande parte da cobertura, particularmente no mundo ocidental, se centrou nos casos de violações de direitos humanos do governo do Catar, incluindo as mortes e condições precárias a que foram submetidos os trabalhadores imigrantes que ergueram os estádios da Copa, e o desrespeito do país aos direitos LGBTQIA+ e das mulheres.

    Por que o Catar queria sediar a Copa do Mundo?

    O Catar é um país minúsculo – tem área pouco maior que metade do menor estado brasileiro, o Sergipe –, mas, apesar disso, tem-se afirmado como um ator global em termos políticos e econômicos nos últimos anos.

    Além de ser um dos maiores exportadores de gás natural líquido do mundo, o Catar tem assumido o papel de mediador internacional de conflitos, trabalhando para garantir a retirada das forças do Afeganistão em agosto de 2021 e sediando negociações indiretas entre autoridades norte- americanas e iranianas em Doha.

    O país também se destaca por abrigar a sede da Al Jazeera, a principal rede de mídia do mundo árabe.

    “Acho que o Catar não quer ser apenas uma grande potência energética. Acredito que esteja tentando ganhar projeção internacional ao se oferecer para ajudar nos esforços de resolução de conflitos mundiais”, opinou Anna Jacobs, analista sênior do International Crisis Group (ICG), especializado em assuntos do Golfo.

    Sediar uma Copa do Mundo tem um papel importante nessa diversificação.

    “Acho que o esporte representa uma ferramenta política para as relações externas do país”, afirma Danyel Reiche, professor associado visitante da Universidade de Georgetown no Catar, que está liderando uma iniciativa de pesquisa na Copa do Mundo de 2022.

    O mundo inteiro está agora com os olhos voltados para o Catar, comenta Haya Al Thani, de 32 anos, que trabalha para a Teach for Qatar, uma organização que ajuda a resolver problemas enfrentados por alunos das escolas locais.

    “Ao viajar, eu sempre precisava explicar onde fica o Catar, porque as pessoas não tinham ideia da localização do país. Agora ficou mais fácil”, disse Al Thani direto da Virginia Commonwealth University School of the Arts, no Catar.

    “Tem sido muito doloroso”

    No entanto, sediar a Copa do Mundo expôs a situação dos direitos humanos no Catar a um público muito mais amplo.

    “Não acho que o Catar tenha uma reputação campeã em direitos humanos em primeiro lugar. Mas é que seu histórico também não estava sob tanto escrutínio”, disse à CNN o doutor H.A. Hellyer, analista do Oriente Médio da Carnegie Endowment for International Peace da Universidade de Cambridge.

    É difícil verificar quantos trabalhadores imigrantes morreram como resultado do trabalho realizado em projetos ligados ao torneio.

    O jornal britânico “The Guardian” informou no ano passado que 6,5 mil trabalhadores do sul da Ásia haviam morrido desde que o país foi escolhido como sede da Copa em 2010.

    A maioria das vítimas estava envolvida em trabalho perigoso, muitas vezes empreendido sob calor extremo. A reportagem não ligou todas as 6,5 mil mortes a projetos de infraestruturas da Copa e não foi verificada de forma independente pela CNN.

    Em uma entrevista ao apresentador Piers Morgan, que foi ao ar no canal britânico TalkTV em novembro, Hassan Al- Thawadi, secretário-geral do Comitê Catar Supremo, a organização local encarregada de organizar a Copa do Mundo, disse que entre 400 e 500 trabalhadores imigrantes morreram como resultado do trabalho realizado em projetos ligados ao torneio – um número maior do que as autoridades do Catar haviam admitido anteriormente.

    Rothna Begum, pesquisadora sênior da Human Rights Watch, disse que seus relatórios documentando abusos de direitos humanos no país foram desencadeados por pessoas e mulheres LGBTQIA+ do Catar que procuraram sua organização.

    “A sociedade do Catar, que é bastante fechada, via a Copa do Mundo como uma oportunidade de fazer soar o alarme, com a esperança de que a exposição mundial do país pudesse permitir algumas mudanças”, analisou.

    No Catar, relações sexuais entre homens são proibidas e puníveis com até três anos de prisão. Um relatório da Human Rights Watch, publicado no mês passado, documentou casos recentes, de setembro último, das forças de segurança do Catar prendendo arbitrariamente pessoas LGBTQIA+ e submetendo-as a “maus-tratos na detenção”.

    O Comitê Supremo de Entrega e Legado do Catar (SC) disse à CNN no mês passado, antes do início do torneio, que a Copa do Mundo de 2022 seria “um torneio inclusivo e seguro” e acrescentou: “Todos são bem-vindos, independentemente da raça, origem, religião, sexo, orientação ou nacionalidade”.

    Mas essas garantias pouco fizeram para mudar a mente de alguns dos membros da comunidade LGBTQIA+.

    “Nós estaríamos fazendo campanha contra qualquer país sobre essas questões. Não é específico contra o Catar”, ressalvou Rishi Madlani, copresidente do Pride in Football, uma rede de grupos de torcedores LGBTQIA+ no Reino Unido.

    “À medida que fomos nos aproximamos do torneio, pudemos ver as pessoas ficando realmente em conflito. Tem sido muito doloroso. Em qualquer outra situação, se o país fosse simpático à causa LGBT, eu estaria lá, mas não me sinto confortável indo ao Catar”.

    Madlani se lembra de ouvir o embaixador da Copa do Mundo da FIifa no Catar – o ex-jogador Khalid Salman – dizer que a homossexualidade é “um dano na mente”. Foi a gota d’água em sua decisão de não ir para a Copa do Mundo.

    “Naquela fase eu ainda estava pensando em comprar os ingressos, mas quando ele falou que de ‘dano na mente’, a máscara caiu. Daí soubemos o que eles realmente pensam sobre nós”.

    Normalmente, qualquer interesse em questões de direitos humanos diminui quando o torneio começa.

    Begum lembra que sua organização relatou abusos de direitos humanos na Rússia antes da Copa do Mundo de 2018 e na China antes dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2022 – mas não no Catar, antes desta Copa.

    “Antes da partida de abertura, eles poderiam ter tomado esse momento para trazer soluções, dizer que compensariam os trabalhadores imigrantes, mas não o fizeram, o que significa que a campanha de todas essas organizações ainda iria continuar durante a Copa do Mundo”, lembrou Begum.

    Grupos de direitos humanos pediram à Fifa e ao Catar que estabelecessem um programa que incluísse uma compensação financeira facilmente acessível aos trabalhadores imigrantes e suas famílias.

    Na véspera da Copa do Mundo, a Fifa anunciou um Legacy Fund para “beneficiar as pessoas mais necessitadas”, mas sem nenhuma provisão para pagamento dos trabalhadores, apontam grupos de direitos humanos.

    O Ministério do Trabalho do Catar tem um Fundo de Apoio e Seguro aos Trabalhadores que começou a funcionar em 2020.

    Embora a coalizão de direitos humanos afirme que “o fundo não está atualmente configurado para oferecer compensação em escala significativa”, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) diz que desembolsou mais de US$ 350 milhões (cerca de R$ 1,8 bilhão) aos trabalhadores.

    No entanto, a coalizão de direitos humanos acrescentou que “as autoridades do Catar também não deram detalhes sobre os US$ 350 milhões que teriam sido reembolsados aos trabalhadores imigrantes por roubo salarial, apesar de repetidas solicitações da Human Rights Watch e da Anistia Internacional”.

    Dois trabalhadores imigrantes morreram durante a Copa do Mundo – John Njue Kibue Kibue, de 24 anos, do Quênia, que supostamente caiu enquanto trabalhava no Estádio Lusail, e um funcionário que morreu no resort usado pela Arábia Saudita durante a fase de grupos.

    Enquanto isso, a decisão da Fifa de ameaçar sanções para qualquer jogador usando uma braçadeira “OneLove”, que apresenta um coração contendo cores diferentes para promover a inclusão, criou uma fenda entre a federação e as sete nações europeias cujos capitães planejavam usá-lo – Inglaterra, Holanda, Bélgica, Dinamarca, Alemanha, Suíça e País de Gales. Também surgiram relatos de equipes de segurança que pediram às pessoas que tirassem itens de roupas coloridas com o arco-íris – um símbolo do orgulho LGBTQIA+.

    “Quando se trata de direitos LGBT, as autoridades não deram garantias sérias e tudo o que fizeram tinha mensagens contraditórias”, afirma Begum.

    “Criando bolhas”

    No entanto, alguns disseram que as críticas na mídia, embora fundamentadas em relação aos casos de abusos de direitos humanos, foram mais intensas do que aquelas dirigidas à Rússia em 2018 – outro anfitrião controverso da Copa do Mundo.

    Para Maryam Al Hajri, pesquisadora no Instituto de Estudos de Pós-Graduação de Doha, no Catar, parte da retórica tem se preocupado mais em alimentar um “discurso orientalista”, do que com as preocupações de direitos humanos.

    Os críticos citaram como exemplos uma piada de um jornalista francês sobre a presença de “muitas mesquitas” e uma legenda de fotos do jornal “The Times” de Londres que dizia que “os cataris não estão acostumados a ver mulheres em trajes ocidentais em seu país”.

    “Isso não deve ser lido como uma justificativa para deixar de criticar a condição de trabalhadores imigrantes no Catar”, disse Al Hajri à CNN no mês passado.

    “Em vez disso, deve ser interpretado como um argumento para a necessidade de contextualizar a situação desses trabalhadores como parte de uma ordem econômica globalizada construída sobre o colonialismo e o capitalismo racial”, continuou o estudante alemão Bengt Kunkel, de 23 anos, foi uma das centenas de milhares de fãs que viajaram ao Catar.

    Ele usava braço e pulseiras de cor arco-íris para o jogo entre a França e a Dinamarca, mas ouviu de seguranças que devia removê-los.

    Kunkel contou que foi parado mais quatro vezes antes de ser autorizado a usufruir de seu assento dentro do estádio usando os itens coloridos do arco-íris.

    “Eu acho que o próprio Catar é muito bom em criar bolhas e as pessoas não necessariamente sabem tudo sobre o país, porque querem criar a imagem perfeita de Doha”, filosofou. Mas ele diz que esse incidente não prejudicou sua experiência geral no torneio, falando de “pessoas que vêm de todo o mundo para celebrar o futebol”.

    Ele acrescentou que “o Catar é um país muito mais tolerante do que está sendo exibido e tentou fazer o seu melhor como anfitrião do torneio”.

    Arnov Paul-Choudhry, um estudante inglês de 21 anos, foi outro torcedor que viajou para o Qatar para a Copa do Mundo, permanecendo no país por duas semanas.

    Ele diz que “não tinha certeza do que esperar” de antemão, mas que ficar em Doha, conhecer fãs de todo o mundo e a hospitalidade dos catarianos lhe trouxe uma boa experiência.

    “Acho que a Copa recebeu uma atenção negativa, o que é compreensível, mas todos os torcedores com quem conversei lá adoraram a experiência”.

    “Um toque para a reconciliação”

    Em parte do caminho para a Copa do Mundo – de junho de 2017 a janeiro de 2021 – o Catar esteve no centro de uma crise diplomática, já que vários países – incluindo Arábia Saudita, Bahrein, Egito e Emirados Árabes Unidos – cortaram as relações diplomáticas com o governo catari , acusando-o de apoiar o terrorismo e desestabilizar a região. O Catar negou repetidamente as acusações.

    Nos últimos dois anos, houve um gradual descongelamento das tensões e a Copa do Mundo forneceu um símbolo tangível para esse degelo com o príncipe herdeiro saudita – e governante de fato – Mohammed bin Salman retratado usando um cachecol de Catar na cerimônia de abertura.

    Ao mesmo tempo, o emir do Catar, Tamim Al-Thani, retribuiu a gentileza ao usar o cachecol da Arábia Saudita sobre os ombros durante sua partida contra a Argentina. “É como colocar uma espécie de toque popular para a reconciliação”, notou Kristian Coates Ulrichsen, autor do livro “Qatar and the Gulf Crisis” (“Catar e a Crise do Golfo”, sem tradução no Brasil).

    “Até certo ponto, é selar um acordo político”. As equipes árabes tiveram um sucesso inédito na Copa, incluindo a surpreendente vitória da Arábia Saudita sobre a Argentina no início do torneio, e a histórica classificação de Marrocos para as semifinais.

    Al Thani chegou a dizer que “as pessoas estavam chorando, pulando” em Doha, após a vitória da Arábia Saudita. Receber centenas de milhares de fãs de toda a região e do mundo, que retornam para casa carregando histórias de assistir o “maior espetáculo da terra”, sem dúvida colocou o Catar firmemente no mapa.

    “O objetivo principal de cada pequena etapa é superar sua invisibilidade”, diz Reiche.

    “Acho que, para isso, pode-se dizer que a missão foi cumprida”. Mesmo assim, o enorme custo da Copa do Mundo e o escrutínio adicional colocaram em relevo, como nunca antes, o questionável histórico do país em direitos humanos.

    Este conteúdo foi criado originalmente em inglês.

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