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    Por que a Arábia Saudita está investindo tanto dinheiro no futebol?

    Com craques recém-contratados, campeonato nacional começa nesta sexta-feira (11) e terá transmissão para o Brasil

    Neymar deixou o PSG e assinou com o Al-Hilal por duas temporadas
    Neymar deixou o PSG e assinou com o Al-Hilal por duas temporadas Al-Hilal/Twitter

    Beatriz Consolinda CNN

    A liga da Arábia Saudita movimentou mais de 188 milhões de euros (R$ 1 bilhão) em contratações na atual janela de transferências. Os investimentos no futebol fazem parte de um grande projeto do governo para mudar a imagem do país, a “Visão 2030” — o que envolve não só o mundo dos esportes, mas também do entretenimento.

    Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo e autor da newsletter Tarkiz, sobre Oriente Médio, José Antonio Lima explica o conceito por trás do plano.

    “Idealizado pelo príncipe Mohamed [bin Salman], [o Visão 2023] é a estrutura de toda a estratégia. Diversificar a economia, aumentar a participação do setor privado, reduzir desemprego, aumentar participação das mulheres no mercado de trabalho, não deixar o país à mercê da volatilidade do petróleo. Além de mudar a vida no reino, ampliar o entretenimento e fazer com que os sauditas gastem dinheiro dentro do país, não em outras regiões do Golfo como ocorre atualmente”, afirma à CNN.

    Marcos Motta, sócio da Bichara e Motta Advogados, escritório que representa a liga árabe no Brasil, tem acompanhado de perto o processo de investimentos no futebol e como isso está está inserido dentro da Visão 2030.

    “As contratações [para os clubes de futebol] fazem parte de um projeto bem mais ambicioso da Arábia Saudita. E começa com a reestruturação dos clubes de futebol“, contou Motta em entrevista ao programa CNN Esportes S/A.

    Primeiro, é preciso entender como os clubes recebem esses investimentos e como eles são distribuídos. Diferentemente do Brasil, na Arábia Saudita, a principal — e às vezes única — fonte de renda é o aporte financeiro do governo.

    Origem dos investimentos

    Na Arábia Saudita, o Fundo de Investimento Público (PIF) é o principal fundo de riqueza soberana do país. Por meio do Ministério do Esporte, ele distribui o dinheiro para os clubes.

    Dirigentes dos próprios clubes e empresários também investem, mas eles também investimentos do PIF para os seus negócios e são ligados ao atual regime do país. Ainda assim, a liga é marcada por bastante desigualdade financeira.

    O aporte inicial para o surgimento do fundo soberano veio do petróleo, principal produto exportador da Arábia Saudita. No entanto, o príncipe herdeiro e governante da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, busca diversificar cada vez mais a economia do país.

    O portfólio do PIF foi ampliado, e conta com investimentos em empresas das áreas de infraestrutura, energia, farmacêuticas, entre outras.

    Sob o governo do príncipe, o PIF deixou de ser um sonolento fundo de riqueza soberana e passou a ser um veículo de investimento global, com apostas bilionárias em empresas de tecnologia, como a Uber, bem como outros investimentos de capital.

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    Controle dos clubes

    Desde junho deste ano, o PIF passou a assumir o controle dos quatro maiores clubes da liga local: Al-Ahli e Al-Ittihad, ambos da capital Riad, e Al-Hilal e Al-Nassr, de Jeddah, cidade portuária na costa do Mar Vermelho.

    O fundo de investimento é dono de 75% do capital desses clubes. Esse mesmo fundo comprou 80% do Newcastle em outubro de 2021 e também patrocina a Superliga Africana.

    A escolha do quarteto para receber as maiores quantias, inclusive, gerou ressentimentos em torcidas de outros clubes, como foi o caso do Al-Shabab, equipe da primeira divisão que não foi escolhida pelo fundo soberano. Nas redes sociais, torcedores se manifestaram insatisfeitos com a decisão.

    A lógica de como a renda é distribuída aos quatro principais times (percentuais e valores) ainda não é muito clara, uma vez que o país não divulga os dados detalhados de investimento.

    Outros clubes além desses quatro ainda são ligados ao Ministério do Esporte e usam renda estatal, mas de forma menos direta e com percentuais menores.

    Privatização ou estatização?

    O governo anunciou o controle do fundo soberano nacional sobre os clubes como uma espécie de privatização, o que não é exatamente como ocorre na prática.

    “O argumento do governo é que o fundo soberano não é parte do Estado. Na minha avaliação, não é correto. Eles vendem como uma privatização, porque o fundo soberano seria uma entidade supostamente privada, ou uma empresa pública, não estatal. Mas, na prática, é o governo que lidera o projeto e controla os clubes. Importante fazer essa diferenciação entre o que o governo vende e o que é na realidade. Não há, na prática, diferença entre fundo soberano e a monarquia saudita”, explica José Antonio Lima.

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    O real motivo dos investimentos

    O termo “sportswashing” foi criado para descrever o comportamento de regimes autoritários que fazem investimentos em esportes para melhorar a imagem pública e mascarar os abusos cometidos.

    José Antonio Lima, no entanto, acredita que isso seja um elemento presente nesse processo, mas não o motivo final, que envolve algo muito maior do que apenas “maquiar” problemas.

    “Evidente que o príncipe herdeiro quer que, quando as pessoas falem de Arábia Saudita, falem do Cristiano Ronaldo, não das arbitrariedades. Na minha análise, porém, esse não é o motivo principal, ainda que exista. Tenho dificuldade em ver a necessidade de limpar a imagem. O regime saudita mantém até hoje um conflito armado no Iêmen que provocou centenas de milhares de mortos e não abalou em nada a relação com os Estados Unidos, por exemplo”, conta.

    Os investimentos ajudam a manter a segurança do regime ditatorial e demonstrar poder e atratividade econômica para o mundo.

    Existem várias razões para utilizar o futebol nessa estratégia, que envolve tanto o público nacional quanto economias internacionais.

    Fatores domésticos

    Conquistar o próprio povo. A principal ameaça a uma ditadura não está nas grandes potências do exterior, mas sim dentro do próprio país. Preocupado com isso, o príncipe herdeiro quer se legitimar aos olhos do povo.

    Desde 2015, quando o pai se tornou rei, Mohammed bin Salman vem centralizando o poder e quer renovar a legitimitade da monarquia apostando no nacionalismo, e menos na religião. Para isso, utiliza também o futebol e a seleção.

    “É uma atualização do contrato social. A ideia é conceder à população algumas liberdades, em especial no campo social, jamais político. Houve aumento de impostos. A ideia é levar a Arábia Saudita para a contemporaneidade. É um país em que até pouco tempo atrás não existia cinema”, conta o cientista político José Antonio Lima.

    “Há uma população jovem cansada das restrições sociais impostas pelo regime por conta dos religiosos, que continuam sendo a base. O investimento no futebol é parte disso. Uma forma de mostrar que os jovens na Arábia Saudita podem desfrutar dos mesmos elementos positivos que a juventude do Ocidente.”

    Marcos Motta, representante da liga saudita no Brasil, fala sobre como essa mudança na sociedade pode ser observada nos costumes e também no esporte.

    “Existe uma abertura, um movimento cultural do país. Quem teve oportunidade de visitar a Arábia Saudita há dez anos vê uma mudança de paradigma, não só na sociedade. É uma geração jovem liderada por um monarca, é um reino. A gente chama de reino da Arábia Saudita. E essa mudança no futebol que vem a rebote”, afirma.

    Fatores internacionais

    Outra importante forma de assegurar a manutenção de um regime autoritário é a demonstração de poder. Principalmente se atrelado a grandes empresas internacionais de países do Ocidente. A estratégia é utilizada pelo Catar, que já chegou a comprar uma participação majoritária na Volkswagen, além de lojas de luxo e outras empresas.

    “A Arábia Saudita vem tentando uma estratégia parecida: conectar a economia com governos ocidentais. A compra do Newcastle, clube da Inglaterra, é um exemplo. O que ajuda a criar uma camada extra de proteção em uma região que é altamente instável”, explicou José Lima.

    A contratação de grandes estrelas, como Cristiano Ronaldo, demonstra aos olhos do mundo o poder e a capacidade de investimento do país.

    “Hoje, Riad é uma capital praticamente internacional, tem todos os restaurantes, todas as lojas, as grandes corporações estão lá, as cadeias de hotel”, conta Marcos Motta à CNN.

    Copa do Mundo

    “Não tenho como cravar essa informação, mas tudo leva a crer que haverá uma movimentação naquela região para levar a Copa do Mundo de 2030, depois dos Estados Unidos”, disse Motta em entrevista ao CNN Esportes S/A.

    O plano de sediar uma Copa do Mundo está inserido como mais uma das estratégias do projeto maior, já que o evento congregaria todos os objetivos buscados pelo regime.

    Seria atrativo para a juventude do país, reforçaria o nacionalismo com a seleção jogando em casa, atrairia fundos que ajudariam a diversificar a economia e ainda demonstraria a importância política e diplomática da Arábia Saudita, bem como estreitaria laços com o Ocidente.

    “Grandes eventos esportivos, mais do que esportivos, são políticos. Todos os países, ocidentais ou orientais, têm interesse em receber, porque traz grande projeção internacional para o país”, afirma Arthur Murta, professor de Relações Internacionais da PUC-SP.

    “Quando um país usa o esporte para ‘limpar a imagem’, nunca é uma ação sozinha. É parte de um conjunto estratégico para que ele possa se inserir em uma comunidade internacional. Também por uma via econômica, militar e diplomática. Ele quer se colocar e se abrir para o mundo. Quando tenta utilizar um evento esportivo (Copa do Mundo ou Olimpíada) para se projetar, mas não consegue outros acordos internacionais, o evento não vai surtir efeito”, explica.

    Direitos Humanos

    No país, a relação afetiva entre pessoas do mesmo gênero ainda é proibida. Segundo José Antonio Lima, doutor em Relações Internacionais, não há nenhuma movimentação com o objetivo de mudar essa realidade — o que também não representa um desejo forte da população, que também é conservadora. Mesmo que o príncipe quisesse, ele sofreria resistência de parte da sociedade local.

    “Esse é um ponto em que o regime teria enorme dificuldade em promover mudança. O discurso é de que a comunidade LGBTQIAPN+ é bem-vinda, mas é bem-vinda nesses grandes eventos esportivos, enquanto a comunidade doméstica é duramente perseguida”.

    Quanto às mulheres, a situação é diferente. O príncipe herdeiro tem enfrentado parte da comunidade religiosa para inserir maior participação das mulheres na sociedade, como por exemplo a liberação para que elas possam dirigir e frequentar estádios de futebol — a última mudança, ocorrida em 2018.

    Essas ações fazem parte do plano de Mohammed bin Salman de se legitimar perante o povo, uma vez que as mulheres formam quase metade da população.

    Visão de outras ligas

    Perguntado sobre a ascensão da liga saudita, o chefe-executivo da Premier League, Richard Masters, disse não temer a movimentação árabe.

    “Algo novo está acontecendo. Eles estão investindo em jogadores e gerentes para tentar aumentar o perfil da liga e dos clubes. Levamos 30 anos para chegar à posição que temos. Não ficaria muito preocupado no momento, mas, obviamente, os clubes da Arábia Saudita têm tanto direito de comprar jogadores quanto qualquer outra liga”, afirmou o mandatário da liga inglesa à “BBC Sport”.

    Diego Alonso, representante de LALIGA no Brasil, usou o caso do Barcelona, que teve problemas para inscrever jogadores por ter estourado o orçamento e infringido o fair play financeiro, como alerta para os gastos excessivos dos clubes árabes.

    “A gente não vai entrar nessa. Parte fundamental do crescimento de LALIGA foi o fair play financeiro. O caso do Barcelona é um bom exemplo de que a gente é rígido no controle financeiro. A gente tem denúncias de “clubes-Estados”, vamos dizer assim, de que não é um dinheiro orgânico do futebol. No nosso campeonato não pode. O Campeonato Espanhol não é para isso. Não pode jogar todo dinheiro que tem, porque altera todo o equilíbrio”, explicou

    Alonso comentou ainda sobre a possibilidade da liga árabe se estabelecer como um campeonato forte no cenário mundial.

    “Pode ser que aconteça como na China, que fez movimento parecido, com dinheiro do governo, que teve um prazo de validade. Ou pode continuar por dez anos. Aí modifica totalmente o mercado. Não estão contratando só aqueles caras que já vão aposentar, estão contratando jogadores de 27, 28 anos, vamos acompanhar e fazer o nosso trabalho”, diz.

    Leonardo Ferreira, também delegado de LALIGA no Brasil, afirma que a movimentação árabe não preocupa.

    “Os jovens do Brasil e do resto do mundo continuam indo para LALIGA. Endrick para o Real Madrid, Vitor Roque para o Barcelona. O campeonato principal, o sonho do jogador ainda é LALIGA, não Arábia. Os jogadores estão indo, mas os clubes estão prontos? Os estádios estão adaptados? A qualidade do produto é boa? Câmeras, audiovisual, como está o campeonato? É o primeiro ano, a gente vai acompanhar, mas acredito que ainda não preocupa”, afirma.


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