Por Jesús, pelas vítimas da Covid e pelo casamento: o ouro repartido de Isaquias
Baiano de 27 anos tinha feito história no Rio ao vencer três medalhas em sua estreia e agora conquista pela primeira vez o título olímpico
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O espanhol Jesús Morlán era um homem dos números. Treinador de perfil estudioso, extremamente detalhista e acumulador de papéis, tabelas, arquivos de computador. O típico técnico “chato”. Um obcecado pelo esporte que não sabia remar como seus atletas, mas poderia lhes dar o caminho para se meter na elite da canoagem mundial. Contratado para comandar a equipe brasileira em 2013, a meta era clara: medalhar nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, dali três anos. E vieram logo três pódios.
Naturalmente, a próxima meta era o ouro. Claro, primeiro seguir competindo entre os melhores, mas quando se sai dos Jogos Olímpicos com duas pratas e um bronze conquistados com uma equipe jovem era inevitável projetar voos maiores. O problema é que Jesús, conhecido como Suso, descobriu um câncer no cérebro ainda naquela temporada, pouco depois da jornada olímpica. Ele morreu dois anos depois, em 2018, deixando o plano de treinos rumo a Tóquio. O resultado? Isaquias Queiroz, 27, medalha de ouro nas Olimpíadas de 2020.
“[Ele está] Acima de mim, do Lauro, de toda a equipe da canoa. Era ganhar as medalhas do Jesús. Eram duas, mas a gente conseguiu realizar o sonho que ele queria”, disse Isaquias após a prova, acompanhado de Lauro de Souza, o auxiliar que virou técnico e vestia uma camiseta com o nome Suso Morlán. “Eu chorei porque a gente tinha obrigação de ganhar as medalhas aqui, que é o que ele queria. Ele se dedicou até o último dia da vida dele para ganhar essa medalha. É tudo por ele e pela família dele”, acrescentou, já depois de pódio, nas entrevistas às TVs brasileiras Globo e Bandsports.
Com a conquista, Isaquias se juntou a Gustavo Borges, da natação, e Serginho, do vôlei, como os brasileiros que têm quatro pódios olímpicos. Só Robert Scheidt e Torben Grael têm mais, com cinco. Isaquias queria chegar no topo já no Japão, mas se o ouro veio na individual C1 1000m, nas duplas, categoria C2 1000m, ele e Jacky Godmann terminaram no quase, em quarto lugar. Ficou para Paris em 2024.
Brasil: sofrimento com Covid-19 e apoio
Isaquias contou depois do título que recebeu apenas mensagens positivas, de apoio, depois de não chegar entre os primeiros na disputa por duplas dias antes. Em tempos em que se debate tanto o discurso de ódio das redes e a pouca valorização de resultados que podem parecer frustrantes, torcedores anônimos espalhados pelo Brasil reconheceram o trabalho do maior nome da canoagem do país.
“O Brasil passou por muitos desafios ao longo desses anos, com Covid. Dedico muito a todas famílias que perderam entes queridos. Depois do C2 eu recebi muitas mensagens de carinho, nenhuma me criticando, e isso me ajudou bastante”, colocou.
“É diferente ganhar uma medalha de ouro. Mais feliz ainda por estar deixando vocês no Brasil felizes. Eu prometi para vocês que eu ia ganhar”.
Tranquilidade para viagem e casamento
“Uma coisa curiosa que eu tinha. Eu vou descansar, tem uma viagem em Cancún de férias com minha esposa e depois vou casar na Bahia. Eu não queria casar sem a medalha. Eu tinha que ganhar esse ouro para fazer as férias sossegado, casar sossegado, aguentar as horas de voo e poder comemorar em casa”, contou Isaquias.
Não é novidade que a vida de um atleta desse nível acaba totalmente influenciada pelo calendário esportivo, como um passeio turístico depois de uma competição importante. Mas com Isaquias e Laina a canoagem entrou em casa em outro nível, com o filho do casal, nascido em 2017, ganhando o nome do grande rival do pai nas águas: Sebastian Queiroz, em homenagem ao alemão Sebastian Brendel, para nunca esquecer o campeão a ser batido.
Brendel tem três ouros olímpicos, em Londres e no Rio, vencendo as duas provas em que Isaquias terminou em segundo. Também tem mais de 20 títulos entre Mundiais e Europeus. Um grande nome do esporte que começou com o terceiro lugar na competição por duplas em Tóquio, mas foi só o décimo colocado geral na tentativa de defesa do título individual, terminando em segundo na final B. Restou parabenizar Isaquias, novo dono da prova.
“É a realização de um sonho. Parece até um pouco repetitivo, só que é um trabalho longo para esse pedacinho de metal. É a consagração de uma vida inteira. Larguei tudo na minha vida, amigos e minha cidade para me dedicar na seleção. Minha esposa vindo morar comigo em Lagoa Santa [sede da seleção, na região metropolitana de Belo Horizonte]. Não é a mesma coisa que estar na sua terra”.
“Dedico para minha família, Ubaitaba [onde nasceu, na Bahia], Lagoa Santa, nação rubro-negra. Eu tinha a medalha de ouro mundial representando o Flamengo e agora tenho também o olímpico”, finalizou Isaquias.
Com as quatro medalhas de Isaquias em Jogos — uma em parceria com Erlon de Souza, que está lesionado e não foi a Tóquio –, a canoagem precisou de apenas duas edições para se colocar em posição importante na tabela histórica das conquistas olímpicas brasileiras. A modalidade igualou o tiro e está a um pódio do basquete, por exemplo.
Em termos gerais, a contribuição é para o melhor desempenho do Brasil nas Olimpíadas. O ouro de Isaquias foi a 17ª medalha do país no Japão, mas já com a garantia de que as 19 do Rio de Janeiro serão superadas em finais marcadas para essa reta final de evento.