Atletas nas redes sociais: do pódio à eliminação no coração dos seguidores
Douglas Souza, do vôlei, e Arthur Nory, da ginástica, viveram os extremos da interação virtual; especialistas comentam como exposição digital afeta atletas


O ano de disputa não é o mesmo do nome oficial dos Jogos — apesar de estarmos em 2021, o brand desta edição olímpica é Tóquio 2020. A delegação brasileira entrou na cerimônia de abertura com quatro pessoas. Os assentos do estádio estavam em sua maioria vazios. As Olimpíadas de Tóquio começaram do avesso. Reflexo de um mundo com o eixo deslocado pela pandemia. Muitas coisas serão peculiares nesses Jogos por causa desse contexto. Mas o espírito esportivo de superar limites segue imutável. Assim como o desejo do público de interagir com seus ídolos e o dos atletas de receber o carinho de sua torcida.
Como em todos os outros aspectos da pandemia, a vida digital pode preencher um tanto essa ausência. Sem público na maioria das disputas e com a maior parte das transmissões acontecendo de madrugada, resta ao público brasileiro uma única maneira de se envolver com a competição: as redes sociais.
Nessa equação, atletas que já tem usado as redes há algum tempo para se aproximar dos fãs — e faturar com isso — podem ter em Tóquio um momento especial. De pódio ou de desqualificação, a depender dos humores dos seguidores. Na primeira semana de jogos, dois brasileiros experimentaram os extremos dessa interação virtual: Douglas Souza, do vôlei, e Arthur Nory, da ginástica.
Ouro em engajamento

Antes de embarcar para Tóquio, o jogador de vôlei Douglas Souza tinha 260 mil seguidores em seu Instagram. Não era um público desprezível. Na terça-feira (20), já no Japão, Douglas fez um ‘tour’ pelas instalações das moradias dos atletas na Vila Olímpica. Doze horas depois, já eram 350 mil. A influencer e ex-BBB Camilla de Lucas gostou e replicou para seus 11 milhões de fãs. Pronto. “Acordei no dia seguinte e dei uma assustada: já estava com 500 mil”, disse o atleta em suas redes. Antes de fechar a semana, passou dos 1,7 milhão. E continua a crescer.
Do alto dos seus 1,99 m, Douglas destoa da imagem que nos últimos anos esteve associada ao vôlei masculino brasileiro: o estereótipo de jogadores heterossexuais e conservadores politicamente. Ele – assumidamente gay, carismático e engraçado – brinca com a diferença: “Olha isso aqui (mostra os companheiros de seleção numa varanda confraternizando, na Vila Olímpica): os ‘boys’ ali, escutando um ‘pagodão’, fazendo uma festa na laje. Quem amou? Só essas músicas, né? Eu gosto mais do ‘popzão’, do‘funkzão’ nervoso, ‘rala a (…)’ no chão…” – e faz uma cara engraçada de frustração.
“Essa quebra de paradigma é o que faz as pessoas seguirem o Douglas”, diz Fátima Pissarra, presidente da Mynd, que gerencia a conta dos 250 maiores influenciadores do Instagram no Brasil. Na quarta-feira, 21, a Mynd, empresa da qual Preta Gil é sócia, anunciou que Douglas era seu mais novo agenciado. E muita gente começou a sentir cheirinho de armação.
No mercado de influenciadores, a Mynd é conhecida por ter perfis de fofoca em redes sociais que podem bombar ou cancelar uma celebridade em poucas horas. E uma das agenciadas é justamente Camilla de Lucas. No caso de Douglas, Fátima jura que não houve jogada ensaiada. “Gostaria muito que as coisas fossem assim, que eu conseguisse mobilizar os ‘influencers’ a esse ponto. Mas, na verdade, foi tudo espontâneo.”
No ramo dos influenciadores, essa é a palavra de ouro: espontaneidade. E é assim que a maioria começa na rede, por conta própria e dando a cara a tapa, segundo Rafaela Lotto, sócia da Youpix, uma consultoria de negócios desse mundo. “Douglas sempre foi esse figura, muito autêntico”, diz ela.
Natural de Santa Bárbara d’Oeste, Douglas, 26, é assim desde garoto. “Faz dez anos que sou empresário dele e ele sempre gostou de postar tudo”, diz Carlos Roberto Toaldo, ex-jogador e campeão da Liga Mundial em 1993. Foi Toaldo que, há um mês, procurou Fátima, na Mynd, para agenciar Douglas como influenciador.
A Mynd – que cuida de estrelas como os ex-BBBs Gil do Vigor, Babu Santana, Luccas Neto, as cantoras Alcione e Elba Ramalho, entre outros – orienta seus agenciados a dosar a espontaneidade com estratégias sobre o que postar, quanto, quando e onde. Mas, segundo Fátima, a principal missão da agência é ajudar os clientes a escolher melhor as marcas que pagarão para pegar carona em sua imagem. “O atleta é uma marca. Todo mundo é. Por isso é preciso estudar bem qual marca combina com o influenciador e sua proposta”, diz Fátima.
O propósito de Douglas nas redes, segundo ela, vai além de influenciar pessoas que gostam de esportes. Há também a questão da diversidade. “Ele passa essa mensagem de que esporte e respeito aos homossexuais podem andar juntos. E isso num meio super-machista, que é o mundo esportivo. Quantas vezes eu já não escutei: ‘ah, vou por meu filho para fazer esporte que é para ele não virar gay’”, diz a empresária.
Amor e ódio

Mas a internet e seu amor líquido, que de um instante para outro vira ódio, também pode “jogar contra”, como no caso do ginasta brasileiro Arthur Nory. Um vídeo de seis anos atrás, em que ele faz comentários racistas contra um colega de equipe, emergiu nas redes sociais, assombrando o atleta a poucos dias da sua estreia nas Olimpíadas.
Nory precisou encontrar um tempo entre os treinos e o descanso para responder sobre as acusações de racismo que recebeu. “Eu errei e eu assumi. Paguei por ele (erro) e, até hoje, pago por isso! Nunca escondi meu erro e sempre busquei conhecimento para me tornar uma pessoa melhor. Eu não sou o mesmo de cinco anos atrás.”
O ressurgimento do caso transformou Nory em um dos assuntos mais comentados do Twitter na quarta-feira (21) por conta das ofensas que ele desferiu contra Ângelo Assumpção, atleta negro, em 2015, enquanto almoçava com ele e outros colegas durante uma competição pela seleção brasileira.
Nory comparou a cor da pele de Assumpção com a de um saco de lixo. O vídeo viralizou à época e foi resgatado nesta semana, com uma ampla campanha contra a participação de Nory no time olímpico brasileiro. O caso se agrava porque Assumpção, a vítima dos ataques, não conseguiu mais se destacar depois do caso, mesmo sendo três vezes campeão sul-americano e seis vezes campeão brasileiro por equipe.
Neste sábado (24), Nory acabou eliminado em Tóquio no solo e na barra fixa e não tem mais chances de medalha no torneio individual. Havia a expectativa que ele disputasse ao menos um pódio — o brasileiro havia sido bronze no solo no Rio 2016 e campeão na barra fixa no Mundial de Stuttgart, em 2019. “Atleta, ser humano. A gente erra, a gente acerta”, disse Nory, na zona mista, após as eliminações.
Ele afirma que as críticas recebidas não tiveram influência direta no desempenho no Japão, mas admite que teve “muito medo de falar” após o episódio do racismo. “Com a internet, com toda essa visibilidade, o ódio vem muito grande. Vem ameaça, vem xingamento, vem tudo. E bloqueia”, disse Nory ao site Olimpíada Todo Dia. “Foi um ano bem difícil, desde o começo do ano, que eu tive burnout, tive depressão e aí precisei parar um tempo”, completou.
Em 2019, mesmo ano do título mundial de Nory, Assumpção foi demitido do Clube Pinheiros. Segundo ele, foi cortado por denunciar atos de racismo. Depois disso, não conseguiu mais clube para trabalhar. Assumpção também usou as redes sociais para expor as consequências do episódio. Em sua conta no Twitter, Assumpção questionou, no dia 31 de maio, sobre o porquê de todas as portas da ginástica olímpica terem se fechado para ele desde as denúncias. “Qual foi o crime que cometi para ser banido da ginástica?!”, disse.
Um pouco antes, em 19 de maio, ele havia postado que estava passando dificuldades financeiras por causa da falta de oportunidades. “Tá difícil viver assim e sem trabalho”. No ano passado, Assumpção recebeu ajuda de amigos por meio de uma vaquinha online para que pudesse comprar itens básicos e pagar as contas. Procurado para comentar as novas repercussões sobre o caso, Assumpção não respondeu à CNN.
Pedir perdão para sempre
Igor Fediczko, doutorando em política e tecnologia pela PUC-SP, diz que a recuperação do caso por veículos de imprensa e o apelo de assuntos como racismo e olimpíadas jogaram o nome de Nory para o topo dos assuntos mais comentados — a hashtag #Noryracista bombou na internet brasileira. “Perfis verificados, aqueles com selo azul, têm comentado. O Twitter privilegia esse tipo de perfil e os usuários dão mais atenção quando tem uma resposta deles”, diz o especialista — a artista Valeska Popozuda, por exemplo, foi uma das personalidades que contestou Nory. “Ninguém passa mais pano, não”, disse Valeska ao cobrar o ginasta.
Guto Gonçalves, sócio-diretor da Avocar e especialista em gerenciamento de crise, diz que foi acertada a iniciativa de Nory de pedir desculpas logo depois do acontecido ao lado de Assumpção e nas demais vezes em que o assunto foi abordado. Poderia ser uma pá de cal, “não fossem as redes sociais. Entramos na discussão recente sobre o direito ao esquecimento. Por que está voltando agora algo que já foi esclarecido? Ele vai passar a vida inteira pagando?”, disse o especialista.
Para o presidente da Associação Nacional da Advocacia Negra (Anan), Estevão da Silva, o desdobramento do caso poderia ter sido menos danoso a ambos, em especial, a Assumpção, se a atitude de Nory tivesse sido mais ativa, ajudando Assumpção em sua luta contra o racismo dentro das instituições e impedindo eventuais punições.
Sem processo contra ele, Nory tem enfrentado o julgamento do tribunal da internet. Silva alerta que o caso de Nory e Assumpção é delicado porque houve dano direto e talvez irreversível à carreira do atleta negro. Porém, quando as agressões não são direcionadas a uma pessoa em específico e com danos evidentes, existe a possibilidade de haver uma retratação eficiente. O perdão não é impossível.
Block ou #sdv?
Então, até que ponto a exposição nas redes pode ajudar ou atrapalhar um atleta em seu momento mais importante? Para o empresário de Douglas, as redes ajudam, e muito. “O Douglas sabe que vai ser sugado nesse momento e que depois vão esquecer dele. Mas ele está fazendo tudo isso conscientemente para faturar o que pode agora. Ser atleta de ponta custa caro, então ele tem que aproveitar agora, o momento”, afirma Toaldo.
Os dirigentes esportivos e muitos atletas têm ainda uma posição receosa em relação a redes sociais, segundo ele. “Acham que prejudica a concentração do atleta”, afirma Toaldo. Houve tempos, por exemplo, em que jogadores e comissão técnica ficavam totalmente isolados – até mesmo sem contato com as famílias, nas concentrações antes dos jogos. Nem com a imprensa alguns falavam. Com a internet, isso ficou impossível.
A mente de um atleta, porém, é treinada para repelir o que não faz parte de seu foco. Mesmo os “haters”? Os mais agressivos podem abalar a confiança de um atleta pelas redes, diz o psicólogo Wilson Montiel, especialista em comportamento social e em tratamentos por burnout. “Todo mundo que está nas redes quer ‘likes’. Quem disser o contrário está mentindo”, afirma. E junto com as curtidas vêm também inexoravelmente as provocações, as agressões.
Por isso, Montiel acredita que as mídias sociais, de alguma maneira, podem funcionar como uma corrida de obstáculos: quanto mais barreiras (as distrações, os comentários negativos), mais o atleta precisa se esforçar na corrida. Um treinamento de inteligência emocional. É nisso que se fia também Toaldo. “No meu tempo, a gente só tinha pai e mãe para dar suporte. Hoje, além de empresário, tem psicólogo, agências de influenciadores, uma equipe inteira para cada atleta.”
Dupla jornada
Um dos problemas criados pelas redes é que os atletas “influencers” precisam, além de se dedicar ao treino e competições, gerenciar suas carreiras e imagem nas mídias sociais. “Criar conteúdo virou performance, assim como bater meta”, diz Ana Paula Passarelli, cofundadora da Brunch, agência especializada em criadores de conteúdo. Então, segundo ela, um profissional ou um atleta que usa as redes precisa desenvolver suas habilidades de comunicação. “Mas acima de tudo precisa respeitar a sua profissão e não fazer algo só porque todos fazem ou por cobrança da empresa.” Ou da torcida.
Além disso, garante Fátima, da Mynd, durante os Jogos, Douglas não terá obrigação nenhuma de postar nada. Nem terá que cumprir um certo número de postagens. “O objetivo, agora, é ganhar a medalha. Depois, é outra coisa”, diz ela.
E claro, há o aspecto financeiro também. Redes sociais rendem grana. Toaldo, por exemplo, diz que se as marcas ou o governo tivessem uma política consistente de investimento no esporte, nada disso seria preciso. Mas como essa não é a realidade, as redes podem, sim, ser uma maneira de faturar. “O Data Volley, uma tecnologia que ajuda os atletas a analisar detalhadamente seus adversários e construir uma estratégia de jogo mais assertiva é caro. Procedimentos e tratamentos que fazem a vida ativa do esportista durar mais, também são. Então, as redes podem ser uma maneira de financiar tudo isso”.