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    Séries “true crime” podem gerar confusão entre realidade e ficção, acreditam especialistas

    CNN conversou com um sociólogo e uma psicóloga sobre a produção de séries e podcasts sobre crimes reais no Brasil, além de Ilana Casoy, autora de livros sobre a morte de Isabella Nardoni e o assassinato dos Richthofen

    Imóvel onde vive Margarida Bonetti, conhecida como "a mulher da casa abandonada", no bairro de Higienópolis, em São Paulo.
    Imóvel onde vive Margarida Bonetti, conhecida como "a mulher da casa abandonada", no bairro de Higienópolis, em São Paulo. ESTADÃO CONTEÚDO

    Fernanda Pinottida CNN

    em São Paulo

    A popularidade do recente podcast “A Mulher da Casa Abandonada”, produzido por Chico Felitti para a Folha de São Paulo, reacendeu o debate sobre como nós tratamos histórias de crimes reais no Brasil.

    De memes no TikTok à transformação da casa em ponto turístico, a impressão que fica é que alguns ouvintes do podcast parecem se esquecer da seriedade do crime retratado pelo jornalista.

    A reportagem em áudio revela a história de Margarida Bonetti, que foi investigada pelo FBI nos Estados Unidos por ter mantido sua empregada doméstica em regime análogo à escravidão durante 20 anos.

    Após o alcance do podcast, o casarão antigo de Margarida, em um dos bairros mais ricos de São Paulo, passou a ser frequentado quase diariamente por pessoas que tiram selfies e esperam conseguir avistar a acusada pelas janelas.

    A casa recebeu pichações e foi atingida por um tiro, segundo depoimento da irmã de Margarida Bonetti à polícia. Já a pomada branca no rosto, característica da mulher, chegou a virar fantasia nas redes sociais.

    Se, por um lado, os chamados “true crimes” – produções que retratam crimes reais – podem servir como forma de conscientizar sobre a criminalidade, também é possível que essas obras contribuam para um processo de banalização da violência.

    É o que acredita o sociólogo Wellington Lopes, que explicou à CNN que a sociedade brasileira convive com a espetacularização da violência há séculos – a punição de acusados em praça pública, por exemplo, era comum no passado.

    No entanto, esse aspecto assume outras proporções com a chegada da tecnologia. “Os meios de comunicação de massa e a internet conseguem produzir, em nível muito acelerado, um universo de informações sobre vários casos”, disse.

    Enquanto produções de “true crime” em formato narrativo tem um nicho mais restrito de fãs, os programas da televisão aberta que acompanham ao vivo operações policiais já têm audiência cativa entre os brasileiros. Lopes ressaltou que o interesse do público pelo crime caminha lado a lado com a expectativa de uma punição igualmente violenta.

    Ele também lembrou a diferença de atenção que os casos recebem, a depender de quem os protagoniza. “Enquanto serial killers impressionam pela frieza e pela repetição do formato da violência. É muito comum que policiais cometam crimes hediondos e repetitivos sem que isso cause choque.”

    Para Lopes, estamos tão acostumados a conviver com a violência, que ela vai de “fetiche” – quando pessoas comuns cometem crimes hediondos – à “parte da paisagem” – quando a violência parte de instituições do Estado.

    O que desperta a curiosidade sobre um caso específico, segundo a psicóloga Mariana Pinheiro, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), tem a ver com uma certa identificação. “É a ideia de que o horror mora ao lado, de que o nosso semelhante pode ter uma vida subjetiva tão conturbada”, explicou.

    A escritora e criminóloga Ilana Casoy é autora de livros sobre a morte de Isabella Nardoni e o assassinato do casal Richthofen, além de ser responsável pelo roteiro dos filmes que retrataram este caso: “A menina que matou os pais” e “O menino que matou meus pais”.

    Ela considera que o interesse em suas obras é movido pela vontade de entender o funcionamento da mente humana.

    “O público que gosta desse assunto ficou muito mais exigente, quer análises de comportamentos das pessoas envolvidas com o crime, tanto quem comete como quem investiga. Eles refletem sobre o caso sem o maniqueísmo de policial bom e criminoso mau”, disse à CNN.

    A linha que separa a realidade da ficção

    Ilana Casoy explicou que se ater aos fatos é essencial para que as obras não caiam no sensacionalismo. “Existe um limite ético para quem produz. Tem que usar o processo jurídico, porque o que não constar ali é especulação. Ao falar sobre violência, você não pode reduzir ela a entretenimento e sim trazer reflexões e discussões sobre”, disse.

    Wellington Lopes frisou que a maneira como os crimes são retratados tem a ver com o impacto no público: “A forma como uma história é narrada pode gerar uma confusão entre a linha que separa a realidade do espetáculo.”

    Quando as pessoas consomem a história de um crime como se fosse ficcional, fica mais difícil compreender a seriedade e a importância do tema e é mais fácil normalizar a situação.

    Em entrevista ao Em Alta CNN, Chico Felitti falou sobre como a repercussão de seu podcast não deveria ofuscar o problema do trabalho análogo a escravidão, que persiste no Brasil. “A gente precisa lembrar que é uma história de verdade. As pessoas que vão visitar a casa, fazer selfies ou gravar dancinhas para o TikTok parecem ter esquecido disso”, disse.

    Felitti explicou que ele espera que o podcast sirva para gerar discussões sobre esse tipo de crime e como evitar que ele volte a ocorrer. “Se for ficar algo desse podcast, espero que seja sobre como é preciso denunciar se você desconfia de algo.”

    A escritora Ilana Casoy disse que a reação das pessoas é imprevisível, mesmo quando a abordagem da série é feita de forma responsável. “Você tem responsabilidade sobre o que é narrado, mas a reação do público é incontrolável. Até a Bíblia já foi usada como motivação para a violência”.

    Quando produzido de forma responsável, o “true crime” pode servir para conscientizar a população sobre a criminalidade e a importância de denunciar casos de violência.

    Uma produção que fale sobre um caso de violência doméstica ou feminicídio, por exemplo, pode ajudar as pessoas a entenderem mais sobre o que caracteriza este tipo de agressão e incentivar a denúncia de casos similares.

    Após a popularização do podcast sobre “A Mulher da Casa Abandonada”, Chico Felitti divulgou em suas redes sociais que o número de denúncias de suspeitas de trabalho doméstico análogo à escravidão feitas ao Ministério Público do Trabalho (MPT) subiu em 67%.

    Casoy explicou porque ela considera que as produções do gênero costumam ter um saldo benéfico na maior parte das vezes: “A melhor maneira de gerar uma mudança na cultura é por meio da arte.”

    A mesma história por trás de quase todos os crimes

    Os “true crimes” também podem desempenhar um papel importante em nos fazer repensar a forma como lidamos com o crime e a punição enquanto sociedade. O podcast “Praia dos Ossos”, produzido pela Rádio Novelo, por exemplo, conta a história de Ângela Diniz, assassinada pelo namorado na década de 1970.

    Durante a narrativa, o podcast propõe uma reflexão sobre como o caso foi tratado na época, e como o machismo influenciou não apenas a opinião pública, como também a sentença recebida pelo assassino.

    Os diretores do documentário “Pacto Brutal – O assassinato de Daniella Perez”, Tatiana Issa e Guto Barra, falaram à CNN sobre o objetivo de mostrar os fatos sobre um caso que repercutiu, nos anos 1990, através de especulações alimentadas pela mídia e versões do acontecido narradas pelos assassinos.

    A atriz Daniella Perez foi morta por um colega de profissão, com quem contracenava na época, e por sua esposa. Os documentaristas escolheram não entrevistar os assassinos e conduzir a série através dos autos do processo e das evidências coletadas pela mãe de Daniella, Gloria Perez.

    “É uma história em que houve a culpabilização da vítima pelo crime, coisa que ainda acontece constantemente com mulheres que sofrem violência”, disse Tatiana Issa.

    Para Ilana Casoy, ao vermos a um crime na televisão, tendemos a “despersonalizar” as pessoas envolvidas, que passam a ser apenas criminosos, vítimas ou investigadores. Ao contar a história por trás destes crimes, é possível entender quais motivações ou condições externas os levaram a acontecer.

    “Não quer dizer que, ao entender a mente de um criminoso, ele deveria ter uma pena menor. Não é isso. Mas apenas entendendo as motivações nós podemos ter políticas públicas contra o crime mais eficientes”, explicou Casoy.

    O sociólogo Wellington Lopes reiterou a importância das políticas públicas como forma de prevenir a criminalidade, já que a ocorrência de determinados crimes seguem um “padrão”. O assassinato de mulheres por seus cônjuges, a exploração de pessoas negras por pessoas brancas, a violência urbana como reflexo da desigualdade social.

    “Quantos desses crimes poderiam ter sido evitados com a ajuda de políticas públicas?”, finaliza Lopes.