Quem é Carla Madeira, a segunda escritora mais lida no Brasil em 2021
Com seu livro de estreia "Tudo É Rio", publicado em 2016 e relançado neste ano, a escritora mineira cria um "livro-viral" sobre um triângulo amoroso formado por uma prostituta e um casal
No ranking dos livros de ficção mais vendidos de 2021, um título em especial tem chamado a atenção. Logo atrás de “Torto Arado”, grande sucesso editorial, do baiano Itamar Vieira Junior, que vendeu mais de 200 mil exemplares, “Tudo é Rio”, da mineira Carla Madeira, ocupa o segundo lugar, com mais de 40 mil exemplares vendidos.
O título é um relançamento. Ele foi lançado a primeira vez em 2014, pela editora Quixote, e este ano voltou ao mercado sob a chancela de uma grande editora, a Record. Na nova casa, Carla Madeira lançou este ano seu terceiro livro, “Véspera”, e ainda vai relançar, em 2022, o segundo título, “A Natureza da Mordida”, que atualmente está esgotado.
“’Tudo é Rio’ já vinha fazendo essa trajetória de ficar entre os primeiros lugares, mas era meio pontual. Agora isso consolidou em termos de Brasil, com o lançamento pela Record”, diz Carla Madeira, em entrevista à CNN.
Nome forte na área de publicidade em Belo Horizonte, a autora mineira de 57 anos migrou da pequena Quixote para a Record a convite da vice-presidente da editora, Roberta Machado.
“Quando li ‘Tudo é Rio’, percebi na hora que era um ‘livro-viral’, do tipo que quem lê precisa desesperadamente de mais pessoas lendo para poder comentar, sofrer junto. Esse tipo de obra se beneficia muito do poder de distribuição e de divulgação de uma editora grande. Você precisa esbarrar por ele em todo canto do país”, explica Roberta, ao falar sobre decisão de contratar Carla.
Roberta afirma que não é tão raro um livro ser relançado no mercado com sucesso de vendas. No caso da próprio grupo, ela cita o caso de Eduardo Spohr, que já era autopublicado bem-sucedido, mas que, depois de entrar para a editora – e contar com sua estrutura de divulgação e distribuição –, alcançou a marca de 1 milhão de livros vendidos.
“Carina Rissi também teve esse efeito quando entrou na ‘Verus’. Lembro também quando relançamos ‘O Leitor’, de Bernard Schlink, para a ocasião do lançamento do filme com a Kate Winslet. Lya Luft é outro bom exemplo que estourou”, complementa.
Mulheres na Literatura
“Tudo é Rio” tem uma história potente, poética, imagética. Centra-se no triângulo amoroso formado pela prostituta Lucy, a mais requisitada da cidade e que adora sexo, e o casal Dalva e Venâncio, cuja vida é marcada por uma tragédia. Com forte protagonismo feminino, o livro traz questões ligadas à família, abuso, violência doméstica.
Na construção de personagens longe de serem maniqueístas, a autora se aprofunda na complexidade deles e nos extremos que regem suas vidas, como amor e ódio, acolhimento e abandono, felicidade e desencanto.
O livro começou a ser escrito por Carla no final dos anos 1990, quando uma situação dramática envolvendo Dalva e Venâncio paralisou sua escrita, que foi só retomada 14 anos depois, de forma intensa. Em “A Natureza da Mordida” e “Véspera”, a autora volta a investir em histórias instigantes protagonizadas por personagens femininas.
O sucesso de Carla Madeira faz a escritora Dirce Waltrick do Amarante destacar um aspecto importante no atual mercado editorial quando se fala em autoras mulheres. “Tivemos muitos lançamentos de livros escritos por mulheres (muitos também traduzidos por mulheres). Parece que nós, mulheres, estamos começando a ficar interessadas em nos ouvir, saber o que pensamos e o que e como escrevemos”, avalia Dirce. “A propósito das mulheres na literatura, as cinco finalistas do prêmio Jabuti na categoria poesia deste ano foram mulheres”, completa.
A seguir, Carla Madeira fala sobre o sucesso de “Tudo é Rio”, que em breve vira série com a ajuda do ator e diretor Murilo Benício, os percalços que enfrentou ao escrevê-lo e como uma publicitária de formação como ela virou escritora sem planejar:
CNN Brasil: Como é ver seu livro de estreia, ‘Tudo é Rio’, que foi lançado há 7 anos, estar na lista de mais vendidos de 2021?
Carla Madeira: É uma superalegria, dá um contentamento enorme perceber que o livro está fazendo sentido para as pessoas, está tendo ressonância. Por isso, costumo dizer que a coisa mais importante é a experiência do processo criativo, porque, a partir do momento que você coloca o livro no mundo, não sabe mais como vai ser. Cada pessoa vai ler com seus recursos, com sua visão.
Então, é um acontecimento muito bacana você ver que o livro está produzindo uma inquietação, um desejo de compartilhar. Isso é uma coisa que é da história de ‘Tudo é Rio’: ele está entre os mais vendidos muito por causa do boca a boca, porque uma pessoa que lê vive uma experiência que ela quer compartilhar.
Que tipo de gatilhos você acha que essa história desperta nas pessoas?
Tem uma questão que é colocada que é o tempo emocional que a gente tem diante de uma agressão. De você perceber essas camadas, essa possibilidade do bem e do mal que convive dentro da gente. A gente tem essas potências de violência e afeto, de perdoar, de vingar. A questão de que pode-se perdoar o imperdoável, o que significa isso.
Compreender que perdoar não é o contrário de punir, que você pode perdoar, mas isso não libera o agressor da punição. Ficar presa a uma história de amor que é também uma história de violência. E pensar: existe amor quando existe violência? Então, acho que todas essas questões vêm à tona, só que percebo claramente que o livro tem camadas.
Então, por exemplo, tem a questão da sexualidade, que é uma questão tão difícil às vezes, da mulher nesse lugar do desejo explícito. Embora Lucy tenha uma sexualidade muito fálica, muito do controle, acho que ela expressa esse gatilho: por que a mulher não pode estar nesse lugar do prazer pelo prazer? Ela coloca essa discussão.
As pessoas têm empatia pela prostituta Lucy?
Percebo que ela vai se humanizando ao longo da história. Ela não quer compaixão de ninguém, então ela passa por esse lugar até que entende que a sexualidade, esse controle via sexualidade, não pode tudo. Ela não pode com essa dor dela do não amor, de ter perdido a mãe e o pai, de ter encontrado uma tia que não a fez sentir incluída nem amada. Então, ela vai revelando essa fragilidade. É esse lugar não maniqueísta, ela não é só isso, ela também é uma figura complexa com suas dores, suas carências.
“Tudo é Rio” vai virar série?
Acho que sim. Eu e (ator e diretor) Murilo Benício temos tido conversas já tem um tempo. Estamos tentando fazer acontecer. Estamos vivendo uma situação de muita mudança nessa coisa de produção, governo, pandemia, que deu uma fragilizada imensa neste momento. Então, as coisas estão mais lentas do que a gente gostaria. Mas existe essa conversa.
A partir de “Tudo é Rio”, como você vê sua escrita em “A Natureza da Mordida” e “Véspera”?
Quando lancei “Tudo é Rio”, meu primeiro livro, foi um jorro. Fiquei 14 anos meio paralisada, sem escrever, depois que escrevi a cena do Venâncio com o bebê (momento trágico do livro). Voltei ao livro, eliminei todo uma primeira parte que existia e comecei daquilo que tinha me paralisado por tanto tempo: seja lá o que for, é aqui que eu quero mergulhar.
É um livro muito transbordamento, levei oito meses escrevendo num fluxo insano de produção. Quando terminei, falei: não vou escrever outro livro. Não tinha mais nada dentro. Mas aí quando comecei a me interessar a escrever “A Natureza da Mordida”, eu tinha muito claro que queria outra história, outra linguagem. Eu queria uma linguagem menos poética, outro tipo de narrativa.
O livro tem dois narradores diferentes, vozes diferentes. É um livro muito diferente de “Tudo é Rio”. E foi muito legal perceber que, em momento nenhum, eu me preocupei em repetir “Tudo é Rio”, porque ele estava se mostrando um sucesso. Entendi que a coisa mais importante é proteger meu processo criativo. Não posso nem me encantar muito com os elogios nem me perturbar muito com as críticas.
O importante para mim, o lugar que a literatura tem para mim, tem a ver com conseguir fazer esses mergulhos, muito no meu interior, acessando questões que são de profundo afeto para mim. E eu tenho conseguido fazer isso.
E com “Véspera”?
Engraçado como “Véspera” foi mais difícil de proteger, por causa da pandemia. A pandemia foi uma intromissão muito forte num certo silêncio que eu preciso para entrar nesse outro lugar. O silêncio para escuta. Então, com a pandemia, as minhas emoções estavam muito misturadas: meu marido é uma pessoa de risco para Covid-19; a minha mãe, mais velha; minha empresa tem 90 pessoas e, em uma semana, a gente colocou todo mundo em casa.
Um processo de aprendizado muito violento e muito intelectual. Não era uma coisa física, era uma coisa na cabeça. Isso foi muito barulhento. Na hora que você para e se propõe estar em outro lugar, na pele de outras pessoas, tentando entender como elas lidariam com determinadas situações, estava muito difícil eu sair da jogada e deixar aquela personagem tomar forma. Saí muito cansada, mais do que em ‘Tudo é Rio’. É outra natureza de cansaço.
Você chegou a cursar matemática e largou a faculdade para fazer Jornalismo e Publicidade. Como a literatura se torna algo “profissional”?
A literatura é tão mais do que isso, é tão mais eu com a vida. E graças a Deus, por não depender da literatura para viver, isso me dá uma liberdade enorme para produzir, experimentar. Isso é um lugar de privilégio. Mas a história é que venho de uma família de matemáticos. Meu pai é matemático, meus irmãos todos são da área de exatas.
Mas também é uma família de muita música, muita arte. Meu pai era um intelectual e minha mãe mal completou o primário, mas era uma artista, de olhar para nuvem, fazer poesia, criou a gente cantando. Então, eram duas energias tão fortes para mim e eu cresci gostando muito dessas coisas.
Minha paixão pela palavra veio através da música e não pela literatura. Foi Chico Buarque, Caetano, Gil, Clube da Esquina. Passei a adolescência tendo banda, fazendo show, cantando em bar, achando que eu ia ser cantora. E, quando chegou a hora de decidir qual curso superior eu iria fazer, como eu gostava de matemática e existia o temor na minha que eu fosse totalmente artista, fui para a matemática. Fiz dois anos e meio. Um dia, cheguei em casa e disse que não ia mais fazer. Fui para a comunicação. A publicidade usa todas as linguagens artísticas: a música, o cinema, a literatura. Eu fazia roteiro para filme, muitos tipos de textos. Isso me deu um treino de síntese, imagético, e acho que a minha literatura se beneficiou com isso.
E como entra seu primeiro livro nisso?
Só virou um livro pela paixão, pelo arrebatamento do processo criativo. Não foi uma decisão fazer um livro. Fui fazendo um livro, porque me encantei por aquilo. Até que cheguei à cena de Venâncio com o filho e me paralisou.
Percebi que era mais que só o prazer de exercitar a linguagem, escolher a palavra. Veio a porrada no sentido de: isso aqui também é outra coisa muito potente, tem uma dor que está vindo. Diante daquela cena, eu não sabia sair dela. Senti uma dor tão louca, um susto tão grande de ser capaz de imaginar aquilo.
Eu estava tentando engravidar na época (ela é mãe de dois filhos), e foi assim uma coisa tão sem saída que larguei para lá. Fiquei parada por 14 anos. Quando retomei o livro, eliminei a primeira parte e comecei o livro com a história da Lucy. Voltei no capítulo 4, que é um capítulo de uma palavra só, escrito “Dor”. Foi quase que um ritual de passagem. Como se eu tivesse colocado um ponto nisso e falado: agora vou encarar.