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    Nelson Sargento: ‘a saudade só é um castigo para quem não preza a vida’

    Sambista de 96 anos morreu com Covid-19 no Rio; Ele falava de poesia e dizia que a “antiguidade não pode ser esquecida”

    Leandro Resendeda CNN

    Foi Nelson Sargento o autor da mais marcante frase de um aniversário celebrado em abril de 1981, no Morro da Mangueira: “Cartola não viveu, foi um sonho que a gente teve”, disse o pintor, escritor e sambista em lembrança ao amigo Angenor de Oliveira, encantando a todos os presentes. Este é um resumo da sensibilidade que marcou a vida do homem que, aos 96 anos, deixou nesta quinta-feira (27) o Brasil órfão de sua firmeza,  genialidade e do último elo com a geração de sambistas que inventou a Estação Primeira de Mangueira e deu forma ao samba tal qual conhecemos hoje.  O sambista morreu em decorrência de complicações da Covid-19. 

    Este jornalista teve a oportunidade de assistir, conversar e até esbarrar (literalmente) com Nelson Sargento algumas vezes nos últimos anos. Durante uma conversa em 2019, o sambista celebrou a homenagem que lhe fora prestada pela edição daquele ano do Rock in Rio – nos encontramos nos bastidores do festival. “Estou sendo homenageado em evento internacional, meu filho. A antiguidade, em qualquer aspecto da vida, não pode ser esquecida”, me disse. “Tenho 95, por enquanto. Ainda estou funcionando um pouco”, e riu. 

    Não foi uma conversa só sobre samba. Falamos de pecados capitais, como inveja e vaidade. “Se a vaidade soubesse quantos adeptos tem, ela talvez viesse a ser vaidosa também”. Perguntei-lhe sobre suas saudades e o que de bom ele andava escutando. “Arlindo Cruz! É um poeta. Você já ouviu a obra dele inteira, garoto?”, devolveu. Falamos até da imprensa. “O samba e a imprensa! São duas coisas úteis do Brasil”, enfatizou. Em meia hora de papo citou, em pelo menos oito situações, a palavra “poesia”.  

    O sambista me contou que tinha grande apetite para leitura apesar do pouco tempo nos bancos escolares. Perguntei-lhe sobre suas referências literárias e ele preferiu citar as musicais. “Ary Barroso, Ataulfo Alves. Mas Cartola foi o meu grande professor. Eu não tenho diploma, só fiz o ginásio. Mas lia muito, separando as palavras que me agradavam para, depois, fazer samba”, disse o sambista, que também era escritor. 

    Nascido Nelson Mattos no morro do Salgueiro, zona norte do Rio, mudou-se para Mangueira com a mãe, Maria Rosa, e o padrasto, Alfredo Lourenço, que lhe ensinou a pintar paredes. Talentoso e sensível, Sargento tornou-se pintor de arte naif, retratando o samba e a favela em suas telas. 

     

    Da Mangueira correu o mundo, tornou-se cultuado no Japão e lutou pela vida. Sobreviveu a um câncer de próstata, mas, aos poucos e diante da idade, passou a se locomover e falar com dificuldades. Tomou as duas doses da Coronavac contra a covid-19, mas acabou infectado. Diante de um quadro de saúde debilitado, provocado por desnutrição e desidratação (razões de sua internação), a doença foi devastadora. Este obituário abre espaço para uma explicação necessária, do diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações Renato Kfouri, que reforçou a importância da vacinação ser combinada com medidas que reduzam o número de casos. 

    “Nenhuma vacina é 100% eficaz. A capacidade de proteção da vacina depende da capacidade imunológica das pessoas, ou seja: a vacina vai ser muito mais capaz de prevenir casos graves e mortes em pessoas mais saudáveis. Estamos em um cenário onde o número de casos cresce diariamente e o de vacinados não acompanham. Então sem outras medidas, outros vacinados com condições graves de saúde também podem adoecer. Mas é raríssimo”.  

    Agoniza, mas não morre 

    Compositor da Verde e Rosa desde 1942, emplacou seu primeiro sucesso histórico em 1955, assinando com Jamelão e o padrasto. “Ó primavera adorada/ Inspiradora de amores/ Ó primavera idolatrada/ Sublime estação das flores”, dizia o refrão do samba-enredo daquele ano. 

    Em nossa conversa, pedi pra Nelson comentar os sambas-enredos recentes. “É o que estou te dizendo. Samba é poesia. Letra de samba tem que ser poesia musicada. Hoje é uma outra literatura”, afirmou. Sargento lembrou do samba do Império Serrano de 1949, em homenagem a Tiradentes, líder da Inconfidência Mineira. “Aquele homem foi massacrado porque falava em emancipação. O Brasil de hoje se preocupa ligeiramente com o passado”. 

    Ainda assim, pensava o mestre, “a juventude se aprimorou em muitas coisas”. Sem que eu perguntasse, passou a falar de política e imitou o jeito de falar de Getúlio Vargas. “Uma porção de coisa ruim aconteceu no nosso país.. Ditadura… O Tiradentes também teria morrido”. 

    A partida de Nelson Sargento joga luz sobre a necessidade de preservação da memória da cultura brasileira. Foi o que ele fez, por exemplo, com a obra de Cartola. Desde meados da década de 1970 que Nelson foi considerado um guardião das histórias da Mangueira, da favela e da escola. “A saudade só é um castigo para aqueles que não prezam a vida”, me disse. 

    “Negro, forte e destemido”. É como Nelson Sargento descreveu o samba, mas poderia ser um verso autobiográfico. Ficam as lembranças e a certeza de que autor e obra, gênero e compositor, são indissociáveis: agonizam, mas não morrem.