Morre o cantor e ativista Harry Belafonte, aos 96 anos
Conhecido como "rei do calypso" – o gênero musical afro-caribenho –, as maiores contribuições de Belafonte provavelmente aconteceram fora dos palcos, como um apoiador indispensável do movimento dos direitos civis nos EUA
O cantor, ator e ativista Harry Belafonte, um apoiador indispensável do movimento dos direitos civis nos Estados Unidos, morreu na manhã desta terça-feira (25), informou seu publicitário, Ken Sunshine, à CNN.
Belafonte morreu aos 96 anos, por insuficiência cardíaca congestiva, segundo Sunshine.
Belafonte foi apelidado de “rei do calypso” após o sucesso do seu hit de 1956, “The Banana Boat Song (Day-O)”. Seu álbum de estreia – “Calypso” – leva o nome do gênero musical afro-caribenho que surgiu em Trinidad e Tobago no século 19.
Ele também se tornou uma estrela de cinema depois de atuar na adaptação cinematográfica do musical da Broadway, “Carmen Jones”.
Mas as maiores contribuições de Belafonte aconteceram fora dos palcos. Ele foi um estrategista-chave, arrecadador de fundos e mediador para o movimento dos direitos civis nos EUA. Ele continuamente arriscou sua carreira – e também a vida – por seu ativismo.
Belafonte era amigo íntimo do reverendo Martin Luther King Jr., que costumava visitar o apartamento do cantor em Nova York para conversar sobre estratégias ou se distrair da pressão de liderar o movimento pelos direitos civis.
Leitor voraz com um desdém ardente pela injustiça, a consciência política de Belafonte foi moldada pela experiência de crescer como o filho pobre de uma mãe jamaicana que trabalhava como empregada doméstica.
“Muitas vezes respondo a perguntas como: ‘Quando, como artista, você decidiu se tornar um ativista?'”, ele disse uma vez. “Minha resposta à pergunta é que eu era um ativista muito antes de me tornar um artista. Ambos servem um ao outro, mas o ativismo vem primeiro.”
O alcance do ativismo de Belafonte foi surpreendente. Ele via o movimento pelos direitos civis como uma luta global.
Ele liderou uma campanha contra o apartheid na África do Sul e fez amizade com Nelson Mandela. Mobilizou apoio para a luta contra a Aids e o HIV e tornou-se Embaixador da Boa Vontade da Unicef.
Também foi dele a ideia de gravar o hit de 1985, “We Are the World”, que reuniu uma constelação de estrelas do pop e do rock, incluindo Bob Dylan, Michael Jackson e Bruce Springsteen, para arrecadar dinheiro para combater a fome na África.
Belafonte não abrandou sua luta à medida que riqueza e fama cresciam. Ele atraiu críticas depois de chamar o presidente George W. Bush de “o maior terrorista do mundo” por liderar a invasão do Iraque, e atacou celebridades negras como Jay Z e Beyonce por não assumirem posições mais ousadas na justiça social.
Ele criticou tanto Barack Obama durante a primeira corrida presidencial do então senador em 2008 que Obama perguntou a ele: “Quando você vai me dar uma folga?”.
“O que te faz pensar que não é isso que eu tenho feito?” Belafonte respondeu.
O herói e mentor de Belafonte
Harold George Belafonte Jr. nasceu em 1º de março de 1927 na cidade de Nova York, filho de imigrantes caribenhos pobres.
Seu pai trabalhava como cozinheiro em navios mercantes e abandonou a família quando Belafonte era jovem. Belafonte também passou parte de sua infância na Jamaica, a ex-colônia britânica e país natal de sua mãe, onde testemunhou as autoridades brancas inglesas maltratando negros jamaicanos.
Ele voltou para o bairro Harlem da cidade de Nova York em 1940 para morar com sua mãe, Melvine, que lutava para manter a família unida em meio à pobreza extrema.
“Foi ela quem ensinou a ele que não se deve deixar o sol se pôr sem lutar contra a injustiça”, diz Judith E. Smith, autora de “Becoming Belafonte: Black Artist, Public Radical”, sobre a mãe de Belafonte.
Belafonte teve uma infância tumultuada e muitas vezes teve que se defender sozinho.
“A época mais difícil da minha vida foi quando eu era criança”, disse ele a um entrevistador de revista. “Minha mãe me deu carinho, mas, por eu ter ficado sozinho, também muita angústia.”
Belafonte abandonou o ensino médio e se alistou na Marinha dos Estados Unidos em 1944. Ele foi relegado ao trabalho braçal no navio e não assistiu ao combate, mas a experiência provou ser profunda. Ele conheceu homens negros com formação universitária que lhe deram uma exposição mais ampla ao mundo, conversando com ele sobre grandes questões como segregação e colonialismo.
A experiência de lutar contra o facismo no exterior enquanto voltava à segregação em casa irritou Belafonte, assim como muitos veteranos negros da Segunda Guerra Mundial.
Ele entrou no campo do entretenimento quase por acidente. Belafonte trabalhava como zelador em Nova York quando assistiu a uma peça no American Negro Theatre. Ele ficou tão empolgado com a performance que decidiu se tornar um ator.
Ele finalmente estudou atuação em um workshop frequentado por colegas como Marlon Brando, Tony Curtis e Bea Arthur. Ele também começou a cantar em boates e participou de uma banda que incluía grandes nomes do jazz, como Charlie Parker e Max Roach. Até que conseguiu um contrato de gravação em 1949.
Belafonte tinha um carisma natural, no palco e atrás do microfone. Ele ganhou um prêmio Tony por sua atuação na Broadway e foi o primeiro afro-americano a ganhar um prêmio Emmy por seu show de variedades de 1959.
Belafonte também procurou uma maneira de unir seu ativismo com sua carreira e encontrou um mentor e amigo em Paul Robeson. O ator negro de teatro e cinema era um homem renascentista, um atleta famoso e um intelectual educado na Ivy League que se tornou um ativista dos direitos civis e um crítico da política externa dos Estados Unidos. Robeson acabou sendo colocado na lista negra do governo dos EUA por seu ativismo durante a era McCarthy.
Belafonte chamou Robeson de parte de sua “bússola moral”.
“Para mim, o Sr. Robeson era o pardal. Ele foi um artista que fez aqueles de nós nas artes entenderem a profundidade desse chamado, quando disse: “Os artistas são os guardiões da verdade. Somos a voz radical da civilização.”
Sua amizade com Martin Luther King
Belafonte também construiu uma amizade com King, outro poderoso líder negro. King costumava voar para a cidade de Nova York para arrecadar dinheiro para o movimento e encontrar os principais conselheiros.
Durante uma viagem, ele ligou para Belafonte, cumprimentando-o com: “Nós nunca nos conhecemos, então você pode não saber quem eu sou”.
Os dois homens se conheceram em uma igreja de Nova York onde King estava falando e se retiraram após o evento para um porão para conversar.
“Éramos apenas nós em uma mesa de jogo com cadeiras de encosto reto”, lembrou Belafonte. “O que era para ser alguns minutos se transformou em quase quatro horas. Gostei da sua coragem, dos seus pensamentos, das suas ideias e da sua missão. Eu me comprometi com ele depois disso.”
O relacionamento de Belafonte com King seria crucial. Belafonte tinha o poder de uma estrela, conexões e, mais importante, uma vontade de arriscar tudo para ajudar o movimento dos direitos civis.
Ele levantou dinheiro para a Southern Christian Leadership Conference, a organização que King co-fundou e liderou. Belafonte também ajudou a resgatar ativistas que haviam sido presos durante campanhas pelos direitos civis e ajudou a organizar a Marcha de 1963 em Washington.
Ele arriscou mais do que sua carreira às vezes. Em 1964, Belafonte e seu amigo e também ator Sidney Poitier viajaram ao Mississippi para entregar uma maleta de médico com US$ 70.000 para apoiar os esforços de registro de eleitores. Belafonte diz que a dupla foi perseguida e baleada pela Ku Klux Klan, mas acabou conseguindo entregar o dinheiro em mãos.
Belafonte também prestou ajuda crucial à família de King. Ele pagou por empregadas domésticas e babás enquanto King viajava pelo país. E ele fez um seguro de vida para o líder dos direitos civis que se tornou uma das principais fontes de apoio financeiro da família após o assassinato de King.
“Sempre que tivemos problemas ou quando uma tragédia aconteceu, Harry sempre veio em nosso auxílio, com seu coração generoso aberto”, disse Coretta Scott King mais tarde em suas memórias.
Belafonte também se tornou um dos amigos de maior confiança de King. King costumava ficar no apartamento de Belafonte no Upper West Side e escreveu o esboço de um de seus discursos mais famosos – seu discurso de 1967 denunciando a Guerra do Vietnã – na casa de Belafonte.
King era um homem contido em público e que raramente baixava a guarda. Mas nas raras fotos que capturam King abrindo um sorriso enorme e desinibido, Belafonte costuma estar ao seu lado, abraçando-o e compartilhando alguma piada particular. Há um clipe maravilhoso no YouTube que mostra King contando uma piada para Belafonte quando o artista ocupou o cargo de apresentador do “The Tonight Show”.
Belafonte forneceu mais do que apoio emocional a King, no entanto. King confiava nele para conselhos e estratégias, diz Smith, autora de “Becoming Belafonte”.
“Ele (Belafonte) já era um radical e já pensava em como a libertação negra deveria se desenrolar”, diz Smith. “Ele já tinha estado nesses grupos onde todo mundo falava, o que fazer para se organizar? Como causar mudança?”.
Belafonte em seus últimos anos
Ser um radical era essencial para como Belafonte se definia. À medida que envelhecia, sua voz sedosa baixou para um sussurro grave e ele andava com uma bengala. Mas ele nunca perdeu sua aparência de estrela de cinema ou sua fome de mudança radical.
Em 2013, ele recebeu a maior honraria da NAACP, a Medalha Spingarn. Ele disse durante seu discurso de aceitação que o que faltava na luta contemporânea pela liberdade é o “pensamento radical”.
“A América nunca foi movida a aperfeiçoar nosso desejo por uma democracia maior sem que o pensamento radical e as vozes radicais estivessem no comando de tal busca”, disse ele.
Belafonte também recebeu o Kennedy Center Honor em 1989, a National Medal of Arts em 1994 e o Grammy Lifetime Achievement Award em 2000. Ele também se tornou um mentor para outros artistas, assim como Robeson o havia inspirado anos antes.
Ele falou com orgulho sobre os protestos raciais que se espalharam pelos EUA no verão de 2020 após a morte de George Floyd, escrevendo que “nunca tivemos tantos aliados brancos, para lutarmos juntos pela liberdade, pela honra, pela justiça que nos liberta a todos no final…”.
Um grupo de estudantes negros abordou Belafonte no Harlem em 2016 e perguntou se havia algo que ele ainda procurava, apesar de sua idade avançada.
“O que sempre busquei: Onde mora o coração rebelde?”, Belafonte respondeu. “Sem o coração rebelde, sem as pessoas que entendem que não há sacrifício que possamos fazer que seja grande demais para recuperar o que perdemos, estaremos para sempre distraídos com posses, bugigangas e títulos.”
Belafonte nunca perdeu seu coração rebelde. Abençoado com beleza, riqueza e fama, ele poderia ter se contentado em ser o “rei do calypso”, mas ele fez outra escolha. Ele fez suas maiores contribuições fora do palco.
Ele deixa sua esposa Pamela, seus filhos Adrienne Belafonte Biesemeyer, Shari Belafonte, Gina Belafonte, David Belafonte, dois enteados Sarah Frank e Lindsey Frank e oito netos.