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    Lançado há 40 anos, romance de Loyola Brandão previu crise ambiental

    "Não verás país nenhum", livro que começou a ser escrito nos anos 1970 e só lançado em 1981, narra um Brasil distópico com a Amazônia em chamas e invadida por garimpeiros, com animais extintos e pessoas passando fome

    Rodrigo Simon de Moraescolaboração para a CNN

    Uma das mais belas imagens utilizadas para explicar o poder da literatura remete a uma pequena chama que se acende em meio à escuridão. Sua luz não é capaz de iluminar todo o ambiente, mas permite ao leitor perceber a dimensão da escuridão na qual está imerso.

    Nestes dias em que a Flip, maior evento literário do país, volta seu foco à natureza, à crise climática e aos mortos pela Covid-19, é importante relembrar que quatro décadas antes um escritor brasileiro riscava um fósforo em meio ao grande breu.

    Há exatos 40 anos, chegava às livrarias “Não verás país nenhum”, romance em que Ignácio de Loyola Brandão, “Personalidade Literária” do ano no Prêmio Jabuti 2021, narra como seriam nossos dias se a Amazônia sucumbisse à destruição.

    Em uma São Paulo futurística e distópica, as pessoas passam fome, o calor é inclemente, os animais foram extintos, e a única fonte de água disponível é aquela produzida a partir da urina de seus moradores. Se hoje tal cenário não parece assim tão absurdo, naquele momento o escritor surgia com uma grande novidade.

    Como se sabe, a natureza sempre teve papel central não apenas na literatura brasileira, mas em toda a América Latina, a ponto do escritor venezuelano Pedro Grases chegar a dizer ser ela própria, a natureza, o verdadeiro personagem a se impor sobre os homens em nossos romances.

    Em “Não verás país nenhum”, no entanto, a natureza deixa de ser “a vegetação inimiga”, da qual fogem Fabiano e Sinhá Vitória em “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, e assume posição de vítima do mesmo processo que destrói vidas humanas.

    Apenas o fato de antever os rumos do cada vez mais acelerado processo de desmatamento da floresta, em uma época que, é bom lembrar, apenas alguns poucos cientistas denunciavam tal ameaça, já seria fato suficiente para comprovar que bons escritores são como sismógrafos a registrar as vibrações na sociedade muito antes que elas sejam perceptíveis.

    Mas em “Não verás país nenhum”, Ignácio de Loyola Brandão vai ainda além.

    “Não verás país nenhum” (1981)/ Reprodução

    Ao acompanhar as desventuras do protagonista, Souza, velho professor universitário aposentado compulsoriamente, o leitor vai conhecer um governo que, garantindo ter acabado com a corrupção (a “Era da Grande Locupletação”), libera a Amazônia para a exploração dos garimpeiros e incentiva a derrubada de suas árvores para exportação de madeira.

    Aqueles que ousam se opor são chamados de “negativistas”, vítimas da “paranoia científica”.

    De volta a seus postos de comando após a última ditadura, os “militecnos” ocupam os melhores postos de trabalho, controlando empresas e ministérios.

    Documentos são postos sob sigilo por duzentos anos. E como as universidades públicas já não existem, os professores passam a ter suas aulas gravadas e as escolas militares formam seus alunos com base na “neutralidade ideológica”.

    Escrito em uma época em que a internet não passava de um sonho futurístico, o país criado por Loyola Brandão parece também antecipar em quase trinta anos o palavrório hoje tão comum nas redes sociais.

    Nesse cenário sombrio, quando uma denúncia é levantada contra o governo de turno, a ordem passa a ser falar, falar e falar até que o caos de opiniões faça com que verdade e mentira se misturem e as denúncias caiam no vazio.

    Sem querer responder acusações, os comandantes culpam as más notícias por tudo que vier a dar errado. Aqueles que ainda ousam protestar são classificados como “Intolerantemente Aborrecidos”.

    Não por acaso, Souza logo chegará à conclusão que apenas “duas coisas eram pior que o câncer para a Alta Hierarquia do Novo Exército: os espíritos negativistas e os comunistas”.

    A realidade prevista em “Não verás país nenhum” chega até mesmo a apontar fatos que só viriam a ser comprovados por cientistas muitos anos depois. Em outubro de 2019, por exemplo, em um evento realizado pelo Brazil LAB da Universidade de Princeton, foram apresentados os resultados de um estudo dos pesquisadores Stephen Pacala e Elena Shevliakova.

    Produzido nos supercomputadores do Laboratório Nacional de Previsões Climáticas dos Estados Unidos, ele mostra que, entre outras catástrofes, até mesmo São Paulo, a mais de três mil quilômetros de distância, padeceria com a falta de chuvas se a Amazônia deixasse de existir.

    Exatos 38 anos antes, Souza já dizia:

    “As secas definitivas vieram logo após o grande deserto amazônico. Um ano sem gota de água e as represas de São Paulo esgotaram. Apavorado, o povo fazia promessas, enchia as igrejas”.

    Ignácio de Loyola Brandão, em Não verás país nenhum

    Lançado em 25 de novembro de 1981, “Não verás país nenhum” começou a nascer oito anos antes, ainda sob o título provisório “A Marquise Extensa”.

    Insatisfeito com o resultado inicial, Loyola Brandão dispensou o original, mas decidiu aproveitar a primeira ideia em um de seus contos mais conhecidos, “O Homem do Furo na Mão”, que sairia na segunda edição de “Cadeiras Proibidas”, em 1979, pela Codecri, editora do jornal “O Pasquim”.

    O tempo ia passando, mas a ideia de narrar uma história que se passa quando a última árvore é derrubada no Brasil seguia fustigando a imaginação do escritor.

    Ao longo de anos, Loyola Brandão tomou notas e reuniu notícias de jornais e revistas em um gigantesco arquivo com quase oitocentos itens. Em 1979, agora sob o título “O Corte Final”, chegou finalmente o momento de reunir tudo e concluir o trabalho iniciado havia quase uma década.

    Lançada em uma quinta-feira, na então badalada livraria Capitu, na rua dos Pinheiros, em São Paulo, a primeira edição saiu com 3 mil exemplares – esgotados em 5 dias.

    Naquela altura, Ignácio de Loyola Brandão já era uma figura reconhecida no universo das letras. Jornalista com passagem por publicações como o jornal “Última Hora” e a revista “Realidade”, seu romance “Zero”, início de uma trilogia que seguiria com “Não verás país nenhum”, fora festejado como grande inovação na literatura brasileira – não sem antes ter seguido por um verdadeiro périplo.

    Concluído em 1973, mas recusado por diversas editoras brasileiras, sua primeira versão viria a público somente em 1974, na Itália, com tradução do escritor Antonio Tabucchi e graças à ação da professora Luciana Stegagno Picchio, da Universidade de Roma.

    Lançado no Brasil apenas em 1975, no ano seguinte foi censurado pela ditadura militar. A chegada definitiva às livrarias só aconteceria em 1979.

    “Zero” surgiu na esteira do advento do que foi chamado romance-reportagem. Nele, jornalistas brasileiros passaram a buscar, através da literatura, contornar todas as limitações impostas pela censura na imprensa e, assim, poder lidar com a realidade bruta do regime militar em voga.

    Em muito inspirados pelos ventos que sopravam dos Estados Unidos com seu New journalism de Norman Mailer e Truman Capote, no Brasil o gênero pecava ao buscar tratar de grande questões nacionais a partir de casos específicos.

    Em uma espécie de retorno ao naturalismo, os livros resultavam em narrativas alegóricas marcadas sempre pela existência de um herói, muitas vezes encarnado na figura do próprio jornalista em busca da “verdade”. Mediadas pelo formato reportagem, as experiências deixavam a desejar ao se voltarem muito mais para fora que para o mundo que abdicavam de criar e problematizar no interior do romance.

    Ignácio de Loyola Brandão foi homenageado como “Personalidade Literária” no Prêmio Jabuti 2021 / Global Editora/Divulgação

    “Zero” no entanto, conseguiu se contrapor à lógica corrente ao colocar em questão não apenas a figura heroica mas também os meios de comunicação de massa.

    Se boa parte de seus colegas de geração parecem não terem dado ouvidos a Theodor Adorno, para quem o romance precisa se concentrar naquilo de que não é possível dar conta por meio do relato, em seu romance Ignácio de Loyola Brandão fez ecoar também outra conclusão do filósofo alemão, a de que os antagonismos não resolvidos da realidade retornam às obras de arte como problemas imanentes de sua forma.

    De um país fragmentado pela ditadura militar, só poderia mesmo surgir uma narrativa igualmente fragmentada.

    De volta a “Não verás pais nenhum”, se uma das mais notáveis características das grandes obras da literatura é sua capacidade de seguir atual ao longo dos tempos, aos 40 anos o romance de Ignácio de Loyola Brandão mostra ser, assim como “Zero”, um dos momentos chave da cultura no Brasil.

    Iniciada há quase meio século, a trilogia se fechou com o lançamento de “Desta terra nada vai sobrar”, a não ser o vento que sopra sobre ela. No romance, lançado um ano antes do surgimento da Covid-19, além de cidadãos vigiados todo o tempo por câmeras, uma epidemia causa destruição.

    Convém estarmos sempre atentos ao que diz Ignácio de Loyola Brandão.

    Confira os livros vencedores do Prêmio Jabuti 2021:

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