Evando Nascimento: “Sem as plantas, a chance de sobrevivermos é muito pequena”
Em entrevista à CNN, o filósofo falou sobre a inteligência, sensibilidade e ensinamentos das plantas, traçou relação com a literatura e explicou o que é “O Pensamento Vegetal”, título de seu novo livro
“Viver é ir entre o que vive”, escreveu João Cabral de Melo Neto no poema “O Cão Sem Plumas”. Incontáveis sentidos cabem nesse curto verso, que remete à interdependência de todos aqueles que habitam a Terra, à potência contida em cada organismo vivo e à centralidade da cooperação para o funcionamento do mundo.
Não à toa, o filósofo Evando Nascimento evocou as palavras de João Cabral quando perguntado sobre como o reino vegetal pode nos ensinar a ter uma existência melhor e mais longa no planeta.
Um dos curadores da 19ª Festa Literária Internacional de Paraty, Nascimento está lançando o livro “O Pensamento Vegetal: A Literatura e as Plantas”. No volume de ensaios, o autor dialoga com teóricos para refletir sobre a inteligência e sensibilidade próprias das plantas.
Nascimento joga luz sobre o lugar das plantas na literatura de todos os tempos, questionando a pouca atenção que a crítica literária deu ao assunto e refletindo sobre a visão equivocada que temos sobre as plantas, observável inclusive na linguagem.
“Em quatro idiomas que eu pesquisei – português, espanhol, inglês e francês -, o verbo vegetar significa estar em coma, não viver propriamente, estar quase morto. Poucas pessoas sabem que, em latim, a palavra que deu origem ao verbo vegetar significava algo oposto: dar vida, vivificar. A gente não sabe em que momento esses idiomas transformaram o ‘vegetar’ numa coisa negativa. Agora a tentativa é de usar esse verbo num sentido positivo, pra subverter essa ideia. Vegetar é viver”, defendeu o filósofo em entrevista à CNN Brasil.
A 19ª Flip começou no último sábado (27) e segue até este final de semana, com debates em torno da temática “Literatura e Plantas”.
O evento convoca o público a debruçar-se sobre um tema bem menos frequente e mais específico do que os recorrentes meio-ambiente e natureza – que, de tão utilizados, talvez não despertem aquela dose mínima de estranhamento que nos leva a pensar sobre o que eles de fato significam. Então, por que falar de plantas?
Evando Nascimento, pioneiro no estudo da relação do texto literário com o universo vegetal, nos responde.
CNN Brasil: Por que falar de plantas na Flip, especificamente, e não de natureza ou meio-ambiente?
Evando Nascimento: As questões do ambiente e da natureza são vastas e bastante discutidas. Nós desconhecemos como as plantas existem e funcionam biologicamente, no entanto elas desempenham um papel fundamental em relação ao meio ambiente – que compreende os humanos, os vegetais, os minerais etc.
A planta é uma parte decisiva deste todo: ela representa 85% da biomassa do planeta. As plantas regulam a questão climática, sabemos da importância da Amazônia nesse sentido. As plantas são doadoras de alimento, porque nenhum animal é capaz de produzir alimento a partir do sol, então todo o mundo animal se alimenta das plantas. Quem come carne está comendo um herbívoro que comeu plantas.
A grande massa orgânica do planeta é a produção fotossintética vegetal. Sem falar que elas são curativas, usadas desde a tradição antiga e indígena até a medicina tradicional.
É preciso conhecer o mundo vegetal, não basta falar genericamente de natureza e meio ambiente. A biologia foi muito montada em cima do modelo humano e animal, e as plantas são cidadãs de terceira categoria. Então estamos trazendo elas para o plano principal, para mostrar que preservá-las é uma das primazias da vida. Sem elas, a chance de sobrevivermos é muito pequena.
No texto curatorial desta edição da Flip, vocês afirmam que “chegou a hora de pensar e aprender com as plantas”. Por que esse tema neste momento?
Precisamos aprender a inteligência de sobrevivência que as plantas têm. Nós ocupamos várias partes do mundo praticamente inabitáveis, houve um momento em que a humanidade deu uma prova imensa de inteligência. Mas desde a metade do século passado, quando houve as primeiras explosões atômicas, nós nos mostramos os viventes menos sábios deste planeta, porque não somos capazes de compatibilizar avanço tecnológico com bem-estar social.
Acho que o maior aprendizado das plantas é que elas são coletivistas, colaborativas, doadoras. O humano parece querer consumir tudo agora, e azar para o que vem no futuro. Mas nós também temos essa inteligência coletivista.
Nossos aprendizados são refinados através de muitas gerações. O humano se inventou ao longo de no mínimo 300 mil anos, quando os primeiros homo sapiens surgiram no planeta. A inteligência humana também é coletiva, a gente que acha que é totalmente individual. A inteligência da vida é crescer e multiplicar-se, a vida quer se preservar. Reproduzir, sobreviver e se manter pelo máximo de tempo possível.
De que modo a literatura pode facilitar esse aprendizado?
A literatura tem essa capacidade de nos levar a experimentar o lugar do outro, é o que Clarice Lispector chama de intertroca. Você não vai virar uma planta, mas vai vivenciar a experiência da planta, a experiência do outro. Quando você começa a olhar para a literatura sob esse viés, você descobre uma série de autores que trabalham com plantas, desde Esopo na Grécia Antiga, e a teoria literária nunca prestou muita atenção nisso.
De modo geral, as plantas entram como simbolismo: a rosa como símbolo do feminino, o lírio como símbolo da pureza. Mas o que nos interessa é perceber a literatura em que a planta é protagonista. Eu tenho dado um exemplo que eu acho maravilhoso para os tempos atuais, que é uma fábula de Esopo chamada “A Corça e a Videira”: a corça estava fugindo de caçadores e se esconde atrás de uma videira. Quando os caçadores vão embora, ela começa a comer as folhas da videira. Aí os caçadores retornam e ela está desprotegida. E ela diz “bem feito pra mim que fui destruir minha protetora”. É o que estamos fazendo hoje, destruindo nossas protetoras.
Diversos povos originários das Américas e de outras partes do planeta sempre tiveram as plantas como aliadas. Esses povos colocam as plantas e os animais dentro da sua mitologia, e não fora. A Flip abriu neste ano com cantos Guaranis. Tivemos um grupo de indígenas cantando e dançando na sua língua original. Aquilo é literatura, literatura oral.
A relação com as plantas também aparece na literatura ocidental. Você encontra referências às plantas praticamente em toda a literatura de Clarice Lispector. Todo mundo conhece um conto apenas de Clarice, que é “Amor”, em que a personagem Ana, que é uma dona de casa típica dos anos 1950, uma mulher que só tinha o lar e o cuidado com os filhos, vai parar um dia no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, e lá ela tem uma experiência de êxtase, de reconexão com aquele ambiente vegetal, animal e mineral, com a sensorialidade que existe naquele espaço. É um redespertar da vida para aquela mulher, é um novo vegetar.
Hoje, na contemporaneidade, você tem uma série de poetas, como Leonardo Fróes, Edmilson Pereira, Julia Hansen, Ana Martins Marques, Luise Glück. Na literatura de qualquer tempo, os vegetais estão presentes.
No seu livro “O Pensamento Vegetal”, você argumenta que não somos tão diferentes das plantas quanto pensamos. O que temos em comum com elas?
Algumas mitologias indígenas consideram animais e plantas como nossos ancestrais. Antes de mais nada, temos em comum com as plantas o fato de sermos fenômenos da vida, e originalmente, na história evolutiva, era uma única vida. As plantas surgiram das primeiras células vivas que ganharam autonomia orgânica para sobreviver num ambiente muito problemático, foram elas que deram origem a tudo o que existe. A ideia de separação entre os humanos e os outros viventes não leva em conta uma perspectiva histórica da evolução do planeta.
As plantas não têm os nossos órgãos, mas têm outros mecanismos de sensibilidade: dispositivos celulares que permitem a captação de luz e a resposta a essa percepção, e algumas têm inclusive um tipo de audição, elas captam sons ao modo delas e respondem a essas sonoridades. As raízes percebem a que distância delas há umidade e se dirigem para lá. Isso são formas de percepção. Elas tomam decisões fundamentais para a sobrevivência.
Tanto no seu livro quanto na mesa “Literatura e Plantas”, da qual você participou com o botânico italiano Stefano Mancuso, você lembra que os seres humanos estão no planeta há pouco tempo em relação a outras espécies animais e vegetais. Como o pensamento vegetal pode nos ensinar a viver mais e melhor na Terra?
O homo sapiens existe há 300 mil anos, e a vida existe há mais de 3 bilhões de anos. Olha a disparidade. O homem moderno, o homo sapiens sapiens, existe há apenas 40 mil anos. É um segundo em termos de vida no planeta e um microssegundo em relação ao cosmos como um todo. João Cabral de Melo Neto tem um verso que eu acho belíssimo: “Viver é ir entre o que vive”. Não existe vida isolada.
O eremita que vive numa caverna vai ter que se alimentar de plantas, ou de animais, pode ter um cão de companhia, vai conviver com pássaros. Ele não vai estar sozinho nunca. Ele pode estar sem os outros humanos, mas ele vai estar sempre próximo de outros viventes para poder sobreviver.
A vida depende da vida sempre. E quase todas as formas de vida dependem das plantas.
Há muita colaboração na floresta, muita simbiose. Muita troca entre as plantas e os insetos. A planta dá o néctar, o açúcar, e o inseto ajuda a polinizar, a fertilizar uma outra flor. Os fungos estão nas raízes também trocando, dando proteção e tirando o alimento das raízes. A floresta é um conjunto de negociações, de trocas maravilhosas. Há competição, mas é menos do que se imagina. Há muito mais colaboração entre plantas, animais e até humanos, como os povos originários, do que essa competição selvagem, terrível, devastadora que se criou em torno da ideia de selva selvagem.
É possível aprender com as plantas de forma prática e empírica? Como podemos exercitar esse olhar no cotidiano?
De várias maneiras. Uma delas é realmente frequentar parques e jardins, florestas, tanto quanto possível. Quem mora em zonas urbanas sempre tem alguma área na cidade que remete à vegetação.
Acho que é fundamental começar com as crianças. Durante a minha mesa na Flip houve uma pergunta de uma educadora sobre como levar esse assunto para as crianças. Eu acho que é fundamental que desde cedo a criança seja educada a entender minimamente a importância das plantas, que se leve plantas para dentro da escola – para a sala de aula, não só para o pátio ou jardim.
Os pais também podem ter plantas dentro de casa e o cuidado de sensibilizar o olhar delas para esses seres. A convivência com esse mundo vegetal é imprescindível. Por que não ter uma horta se você tem um quintal? Por que não produzir seus próprios legumes e verduras? Às vezes a gente não tem tempo, mas será que uma pequena horta dá tanto trabalho assim, será que não pode ser um hobby?
Por que não ter um pet planta, uma planta de estimação, e envolver as crianças nesse cuidado? Vamos verdejar a vida, esverdear um pouco mais o mundo. A criança é o adulto de amanhã, é quem vai cuidar da floresta da Terra.
Quando se fala em tecnologia, costumamos pensar em máquinas, estas desenvolvidas pela inteligência humana. Mas há uma série de soluções, como a economia circular e a agricultura sustentável, que se baseiam muito na inteligência da natureza ao propor modelos de produção cíclicos e regenerativos. Há tecnologia nas plantas?
Sem dúvida alguma, a tecnologia está ligada à própria vida. A vida inventou técnicas de sobrevivência, a fotossíntese é uma delas. Conseguir produzir o orgânico através do inorgânico é uma tecnologia sofisticadíssima. E não é apenas o indivíduo já composto que tem formas de tecnologia, as células em si também, elas são centros energéticos de alta sofisticação.
Não existe vida sem alguma forma de tecnologia, não é só no humano e nos animais. Quando uma trepadeira, por exemplo, sobe numa árvore maior dentro da floresta, é porque ela está utilizando essa outra árvore como uma espécie de escada para atingir a luz, pois ela precisa de luz para sobreviver.
Tem também aquela planta que chamamos no Brasil de sensitiva, Maria-fecha-porta, dorme-dorme ou dormideira, mimosa pudica é o nome científico. Quando você toca, ela se encolhe toda. Foram feitas experiências desde os séculos 17 e 18 com essa plantinha, e ela impressionava os botânicos porque aquela reação não é simplesmente mecânica. Se você jogar água em cima dela, ela vai se fechar, mas se depois de um tempo você continuar jogando água nela, ela vai perceber que não é nada maléfico e vai parar de se fechar.
Agora, se você jogar outra coisa que não seja água, ela vai se fechar. Ela se recolhe como um bichinho que quer se proteger. Esse experimento foi feito durante um tempo, e se descobriu que ela pode guardar por alguns meses essa memória do perigo ou da ausência do perigo.
Tem uma série de coisas que aparentemente são mecânicas, mas na verdade são estratégias muito inteligentes desenvolvidas por milhares de anos, assim como nós, humanos, desenvolvemos as nossas. Quando a gente come uma fruta e joga a semente em algum lugar, a gente está semeando uma planta.
Você acha que é por acaso que as frutas são doces, que os legumes são nutritivos? É para que a gente se alimente deles e reproduza esses vegetais através da semeadura. É uma estratégia de sobrevivência delas.
Tem alguma planta em especial que tenha chamado sua atenção ou marcado um aprendizado importante na sua trajetória pessoal?
Tenho observado várias, ainda mais nesses últimos anos, quando me envolvi com as pesquisas para o livro “O Pensamento Vegetal”. Mas eu diria que se há alguma planta que foi decisiva na minha vida foi o cacau, exatamente por ter nascido na região de cultivo.
O cacau é uma monocultura que depende de outras plantas para sobreviver. Se você destrói a floresta para plantar cacau, ele não vai sobreviver, porque ele precisa da sombra. Se ele recebe luz solar direta, ele não sobrevive.
O cacau é uma fruta incrível, porque ela não só dá o grão que vai se tornar o chocolate, que todo mundo aprecia no mundo inteiro e é uma fonte energética extraordinária, mas ela também tem a polpa que é deliciosa. É uma planta realmente fundamental.
Outra planta que também me marcou é a goiabeira, porque no fundo do quintal lá de casa tinha uma goiabeira sobre a qual eu me recostava para ler. A goiabeira tem uma característica que ela é quase um sofá, um divã, ela é repousante, tem uma maneira de você sentar nela, recostado, e você pode ficar horas lendo lá em cima.
Foi uma planta fundamental para desenvolver minha sensibilidade vegetal e literária ao mesmo tempo. Eu passava tardes inteiras lendo poetas como Vinicius de Moraes e Carlos Drummond de Andrade em cima dessa goiabeira.
O livro que você lançou se chama “O Pensamento Vegetal”. Por que este título? O que seria o pensamento vegetal?
Eu tive outros títulos possíveis, mas escolhi esse porque é um título provocativo. A própria editora colocou na orelha do livro: uma planta pensa? O que pensam as plantas?
É um título em aberto, cada um interpreta como achar melhor, mas como autor eu comento pelo menos três significações para o “pensamento vegetal”. Uma delas é no sentido de saber que as plantas pensam. Elas têm uma inteligência, que não é verbal, mas elas têm uma linguagem própria e tomam decisões, seja por espécie ou individualmente.
Se elas se dirigem para a luz solar, se elas se afastam da luz solar quando esta pode ser excessiva, se elas buscam a água através das raízes, se elas criam associações com pássaros, é porque tem um pensamento existencial que permite sua sobrevivência, tal como nós fazemos também. Então sim, há pensamento nas plantas, só que não é pensamento em linguagem verbal.
Um segundo sentido é o senso comum que se tem sobre as plantas. A visão que as pessoas têm de que um vegetal é algo meio morto, que é possível abater de qualquer jeito, que gera o desrespeito em relação às plantas. No fundo é a ignorância sobre as plantas.
E o terceiro sentido é exatamente o pensamento que nós, humanos, podemos desenvolver sobre as plantas a partir da filosofia, da botânica, da literatura.
Então é fundamental esse pensamento vegetal, fazer com que ele floresça, verdejar nossas vidas, florestar nossas cidades, criar novas paisagens urbanas – menos secas, menos estéreis, menos cimentadas e asfaltadas. É abrir nossos corações, nossas mentes e nossos corpos para que eles vegetalizem cada vez mais.
É tornar nosso corpo mais vegetal, coisa que ele já é na sua origem. Ter essa percepção íntima de que temos um vegetal dentro de nós, que ele pode se comunicar diretamente, sem palavras, em silêncio, com as plantas.
O pensamento vegetal é uma proposta, não é um manifesto, não é uma luta propriamente, mas é um desejo de que nós desenvolvamos um conhecimento, um saber que já existe nos indígenas, nas pessoas com essa sensibilidade, nos jardineiros, nos botânicos mais sensíveis.
Então, que nós nos juntemos e façamos o mundo florescer. Vamos transformar o mundo numa grande floresta e deixar que nossas cidades sejam invadidas por esta floresta. Que cada um de nós cultive uma árvore, um canteiro, um jardim, um vaso, sobretudo dentro de nós mesmos.
Serviço
“O pensamento vegetal: a literatura e as plantas”, Evando Nascimento
Editora: Civilização Brasileira
350 páginas – R$ 64,90