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    Documentário da Netflix sobre Pelé consolida ou prejudica o legado do Rei?

    O documentário Pelé, da Netflix, aborda a figura mítica em campo, mas também o comportamento apolítico do Rei em um dos momentos mais sombrios do país

    Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, na Copa do Mundo de 1970
    Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, na Copa do Mundo de 1970 Foto: Divulgação / Fifa

    Glen Levy, da CNN

    Não é fácil assistir a um Pelé confuso, se embaralhando durante uma entrevista, precisando do auxílio de um andador, que o ex-jogador empurra com dificuldade.

    Essas cenas se confundem, no entanto, com outras do craque tamborilando livremente em uma caixa de engraxate ou rindo com os companheiros durante o almoço.

    Essas são algumas das cenas do documentário Pelé, exibido na Netflix.

    O codiretor David Tryhorn disse à CNN Sport que, embora Pelé tenha “feito dezenas de milhares de entrevistas em toda a sua vida”, uma vez que os cineastas explicaram o que queriam fazer, o jovem de 80 anos estava “muito focado em transmitir seu próprio legado nessa fase da vida dele.”

    “Frequentemente, você está lidando com a memória da memória”, acrescenta Tryhorn enquanto reflete sobre as questões que podem surgir ao tentar extrair de uma pessoa em sua nona década de vida histórias de uma vida cheia de coisas para contar.

    “Nosso desafio era tentar ir além das respostas padrão e fazer com que ele se aprofundasse um pouco mais na lembrança de coisas que frequentemente aconteciam há 50, 60 ou 70 anos.”

    O filme traça a ascensão do lendário atacante brasileiro, culminando, sem dúvida, na coroação da glória da carreira do Rei dentro e fora de campo: levar seu país a um terceiro triunfo da Copa do Mundo do México, em 1970.

    Aos 17 anos, ele venceu a Copa do Mundo na Suécia, em 1958, marcando seis gols, todos a partir das oitavas de final, incluindo dois na final na vitória do Brasil sobre os donos da casa por 5 a 2. O Brasil viria a vencer o torneio novamente quatro anos depois, no Chile, embora as contusões tenham encerrado prematuramente sua participação naquela Copa.

    Os paralelos com a recente série da ESPN sobre outro esportista que muitos colocariam no Monte Rushmore dos atletas, The Last Dance, que em português foi traduzido para Arremesso Final, de Michael Jordan, são muito evidentes: uma estrela global contando sobre antigas glórias no seu grande palco.

    Jordan costumava lidar com a política interna dentro do Chicago Bulls. A mistura entre esporte e a realpolitik também é abordada no documentário Pelé, com a menção ao período de ditadura militar no Brasil durante a Copa do Mundo de 1970.

    Embora os cineastas pudessem ter se concentrado no futebol, Tryhorn estava convencido “que uma figura icônica da estatura de Pelé merecia um documentário definitivo”.

    E como observa o outro diretor do filme, Ben Nicholas, ao ser chamado de Rei aos 17 anos, tornando-se assim o símbolo de um novo país e um catalisador dos anos dourados, “para lidar com isso, acho que ele criou esse personagem Pelé, alguém que quase abre mão de sua própria identidade para se tornar essencialmente o Brasil.”

    A primeira parte do documentário ilustra a ascensão meteórica de Pelé ao se tornar um adolescente vencedor da Copa do Mundo depois da derrota devastadora que o Brasil sofreu em casa para o Uruguai na final do torneio de 1950. Mais tarde, essa abordagem dá lugar a um retrato sobre a política nacional, com os militares brasileiros no comando a partir de 1964 usando o futebol como estratégia política.

    Quem é Pelé?

    Nicholas considera que as críticas dirigidas à maneira apolítica de Pelé de se posicionar em um período difícil para seu país não impactam a imagem do Rei, com sua figura se mantendo intacta, apesar de suas escolhas ou, melhor dizendo, suas não-escolhas.

    “Você via pessoas que desafiavam o sistema ganhando poder”, diz Nicholas. “Mas Pelé não era bem isso. Ele era alguém que, quando criança, teve uma formação que dizia que fazer parte do sistema seria uma coisa incrível. Ele é alguém que realmente não quer ser visto como rebelde ou divisionista. “Eu acho que ele é bem honesto porque ele está preso a essa condição de ser o Rei, ser o cara que traz alegria pelo que faz em campo”, diz o cineasta.

    Em determinado momento, Pelé diz: “Sou um cara que tem muito orgulho de representar o Brasil em casa e no mundo todo. E é nisso que sou bom. E é essa imagem que vou manter”. Nicholas diz que não acha que Pelé esteja mentindo sobre isso. “Acho que ele fez o que pensou ser melhor para ele. E para o Brasil. ”

    Embora aquela vitória de 1970 parecesse um sonho de um roteirista de Hollywood, a realidade das copas anteriores estava mais perto de um pesadelo. Depois de ter sido maldosamente machucado por seus adversários durante o torneio de 1962, e, de forma ainda mais grave, de 1966, Pelé estava aparentemente contente em não disputar mais nenhuma Copa, embora continuasse no futebol. “Não tenho sorte em Copas do Mundo”, diz Pelé, de maneira que é difícil para o espectador acreditar na fala de quem tem três títulos máximos do futebol.

    Para uma ditadura militar que priorizou a Copa do México de 1970 como uma “questão governamental”, essa disposição de Pelé em não disputar a competição era um problema.

    A solução, em grande parte, foi Pelé vestir a icônica camisa amarela com o número 10 nas costas.

    Como lembra Nicholas, à época, “havia algumas perguntas no ar: ‘Pelé pode se recuperar? Será que ele se lembra de quem era? Ele consegue se lembrar do que costumava representar? Como ele quer ser lembrado?’. E teve também, eu acho, a pergunta sobre que tipo de país o Brasil quer ser. E parece que todo mundo meio que faz uma escolha quando chega a Copa do México de 1970.”

    Quando questionado durante o documentário se sua visão da ditadura mudou ao longo do tempo, Pelé enigmaticamente deixa a pergunta pairando no ar: “Minha porta estava sempre aberta. Todo mundo sabe disso. Inclusive quando as coisas ficaram realmente ruins.”

    Em um final adequado para sua história na Copa do Mundo, Pelé lida com a pressão em todas as frentes e apresenta um nível sublime de desempenho ao longo de toda a competição.

    Chega a sua apoteose com a assistência que dá ao capitão Carlos Alberto na final. O passe para o que é possivelmente o maior gol da história da equipe nos minutos finais da vitória por 4 a 1 sobre a Itália. Lances como esse e a Copa como um todo ficou especialmente marcada na memória das pessoas e na história do futebol também pelo apelo de ter sido a primeira transmitida em cores.

    No entanto, apesar do frenesi, Pelé experimentou uma emoção muito diferente.

    “Há uma fala realmente reveladora no final do filme”, aponta Tryhorn, “onde você espera que Pelé nos dê talvez um ‘Pelé-ismo’, onde ele falaria sobre alegria e felicidade, mas na verdade ele fala sobre ‘alívio.'”

    ‘O rei’ ou a cabra?

    Os fãs de futebol vão sempre debater onde Pelé se encontra no panteão dos maiores nomes de todos os tempos.

    Ele é maior ou igual a Diego Maradona? Ou ele é um pouco inferior a Lionel Messi ou Cristiano Ronaldo devido à implacabilidade do jogo moderno?

    Seu vasto número de gols – o Guinness Book lista 1.279 – e o fato indiscutível de Pelé continuar sendo o único jogador a vencer a Copa do Mundo em três ocasiões não podem ser descartados facilmente, nem pelo documentário.

    Em 1971, Pelé fez sua última partida pelo país e, 50 anos depois, o documentário mostra o jogador brasileiro às lágrimas com as lembranças daquela época.

    Este é um homem que sofreu por sua arte, mesmo que não usasse pincel ou caneta, e tivesse como instrumentos a bola a seus pés.

    (Texto traduzido. Clique aqui para ler a versão original em inglês)