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    Com “Ressurrections”, Matrix volta em um mundo que questiona a própria realidade

    Em seu aguardado quarto filme, a cultuada franquia de ficção científica pode confirmar sua eterna relevância

    Pablo Miyazawacolaboração para a CNN

    O mundo voltou a questionar sua própria realidade na última quinta-feira (9), após a chegada do primeiro trailer de “The Matrix Resurrections”.

    Com lançamento previsto para 16 de dezembro no Brasil (seis dias antes da estreia no mercado norte-americano), o filme da cultuada franquia multimídia traz de volta a dupla de protagonistas Keanu Reeves (Neo/Thomas Anderson) e Carrie-Anne Moss (Trinity), além de novos nomes como Yahya Abdul-Mateen II, Jessica Henwick, Priyanka Chopra Jonas, Christina Ricci e Neil Patrick Harris.

    Outros integrantes marcantes da trilogia original, como Laurence Fishburne (Morpheus) e Hugo Weaving (Agente Smith), ficaram fora.

    “Resurrections” (de acordo com o estúdio Warner, o título não será traduzido no Brasil – em português, seria “Ressurreições”) é o quarto capítulo cinematográfico da saga criada pelas irmãs Lana e Lilly Wachowski, que ganhou extensões de sua história em videogames, quadrinhos e curtas-metragens animados.

    O primeiro filme, “The Matrix”, de 1999, chocou o mundo ao misturar ficção científica de pesado cunho filosófico a estonteantes cenas de ação com técnicas avançadas de filmagem.

    Arrebatando quatro prêmios Oscar e figurando em listas de “melhores de todos os tempos”, tornou-se uma obra influente, cultuada pelo público fã de blockbusters e respeitada por especialistas.

    “A estética de Matrix foi imitada, mas nunca suplantada por nenhum filme, influenciando quase todo o cinema de ação do século XXI, de “X-Men” a “Batman””, afirma Roberto Sadovski, crítico de cinema e colunista do site UOL. “Visualmente e tecnologicamente, foi uma revolução de fato.”

    As partes dois e três, “Matrix Reloaded” e “Matrix Revolutions”, foram lançadas em 2003 com um intervalo de seis meses entre uma e outra, sofrendo com as críticas negativas e a queda significativa nas bilheterias.

    Desde então, a marca permaneceu adormecida, como se esperasse a hora ideal para despertar em um mundo no qual seus questionamentos fizessem ainda mais sentido.

    Neo e Trinity em cena de “Resurrections”: filme deve explicar como personagens se reencontram após acontecimentos do fim da trilogia original / Reprodução/Warner Bros

    “É curioso que o estúdio Warner não investiu muito em Matrix nos últimos anos, talvez por não querer fazer nada sem a participação das Wachowski”, opina Sadovski. “Esse distanciamento foi bom para a franquia. Não só o primeiro filme envelheceu bem, como o segundo e o terceiro ganharam musculatura narrativa e criativa com o tempo”, completa.

    E se as questões existencialistas levantadas pela trama já faziam sentido há quase duas décadas, sob as confusas lentes de 2021 tal sinergia se torna mais evidente.

    Um novo Matrix parece servir como uma luva no contexto de hoje, em que a distinção entre realidade e realidade virtual é ainda mais estreita e somos tão dependentes da tecnologia para a sobrevivência.

    Há também o atual momento político-social global de tantas polarizações, transições e incertezas, que estabelece um cenário ainda mais convidativo para o lançamento do primeiro filme da franquia em 18 anos.

    Para o jornalista e pesquisador Alexandre Matias, do site Trabalho Sujo, o momento é apropriado para um novo Matrix que insista em perguntas que se tornam cada vez mais pertinentes.

    “Se esse filme fosse lançado em 2011, não seria tão significativo, mesmo que a ideia da internet como um simulacro da sociedade já rolasse dez anos atrás”, ele diz. “Agora, Matrix pode se aprofundar, aproveitando que todo mundo projeta suas próprias personalidades em redes sociais e acredita nessas vidas online.”

    Reforçando que “houve um movimento de reavaliação de Matrix nos últimos anos”, Matias atribui o sucesso do filme original à popularização dos conceitos do movimento cyberpunk, que pregam que a internet é um lugar a ser habitado, “um ambiente em si mesmo, e não só um meio de comunicação”.

    O advento da conexão rápida em banda larga na virada do século, mesma época do lançamento do primeiro longa, também não foi mera coincidência: “A noção de que podemos habitar esse espaço ia se tornando cada vez mais palpável. E vinte anos depois, você tem essa mesma sensação”.

    “As questões filosóficas que permeiam as lutinhas de Matrix continuam mais atuais do que nunca”, concorda Sadovski. “O mundo está mais fragmentado hoje do que em 1999. A verdade se tornou uma moeda maleável em sua negociação, um alvo de questionamento.”

    Momentos de transição

    Enquanto os três filmes anteriores foram escritos e conduzidos pelos “Wachowski Brothers”, a direção de “Resurrections” é assinada apenas por Lana Wachowski, que se assumiu transexual alguns anos após o lançamento de “Matrix Reloaded”.

    Já Lilly, que também realizou a transição de gênero em 2016, preferiu não se envolver mais com a franquia para não “reviver um momento emocionalmente difícil” de sua vida.

    Curiosamente, em uma entrevista recente, Lilly confirmou que a intenção original de Matrix era mesmo ser uma metáfora sobre o processo de transição, só que o “mundo corporativo não estava pronto para esse tipo de discussão”.

    Tais mudanças profundas certamente estarão evidentes na nova trama e vão reverberar em como os conceitos complexos de Matrix serão digeridos pelo mundo de hoje.

    “As irmãs Wachowski estavam passando por grandes descobertas quando fizeram o primeiro Matrix, e isso resultou em transformações internas e externas”, opina Flávia Gasi, autora e pesquisadora especializada em Narrativa e Imaginário.

    “Hoje, a Lana Wachowski tem a chance de se mostrar muito mais ativa em certas questões de corpo político, que ela entende muito melhor do que quando criou o primeiro filme.”

    “A Lana tem uma visão bem clara do que quer, é uma pessoa que tem uma voz forte no universo transgênero, e de muitas formas, isso representa o futuro”, concorda o crítico Roberto Sadovski. “Tudo isso deve ser colocado nesse novo Matrix, que reacende questões de identidade que para ela são muito importantes.”

    Seguindo o coelho branco

    E o que esperar da história de “Matrix Resurrections”? Com o hype nas redes sociais já nas alturas, muitos fãs ponderam sobre a necessidade de mergulhar novamente na trilogia original (disponível em plataformas de streaming) para compreender os desdobramentos do novo filme.

    O trailer, apinhado de cenas de ação de tirar o fôlego e embalado pela sugestiva “White Rabbit”, clássico de 1967 da banda psicodélica Jefferson Airplane, oferece muito mais perguntas e pistas falsas do que respostas diretas e conclusões. Mais Matrix que isso, impossível.

    Na mesma sintonia, o site oficial whatisthematrix.com traz mensagens enigmáticas que apenas dão margens a especulações, o que parece ser exatamente a intenção da diretora, que co-assina o roteiro com David Mitchell e Aleksandar Hemon.

    Mesmo sendo difícil cravar um direcionamento, as evidências apontam uma “volta às origens” – no caso, o icônico primeiro filme. Várias cenas do teaser evocam momentos-chave da obra de 1999, contribuindo para aumentar uma sensação de “já vi isso antes”.

    A escolha entre a pílula vermelha e azul: referência clássica de Matrix reaparece em “Resurrections” / Reprodução/Warner Bros

    Não por coincidência, o conceito de déjà vu na mitologia Matrix significa algum tipo de anomalia no sistema. E mesmo que “Resurrections” insista nos pilares martelados ao longo da saga – escolha e destino, livre arbítrio e controle, causa e consequência –, o contexto atual poderá trazer novos significados a esses temas.

    “Eu adoraria que o novo filme não seguisse uma ‘jornada do herói’ tão clássica. Isso abriria as possibilidades e traria a história para fora do mundo binário”, opina Flávia Gasi.

    Torcendo por “um Matrix mais complexo, menos polarizado” e que melhor demonstre as nuances da sociedade atual, a pesquisadora crê que a absorção de conceitos do filme por movimentos de extrema direita é também uma prova da relevância da obra.

    “Eu adoraria ver a explicação real sobre as pílulas vermelha e azul, para esse tipo de simbologia não ser cooptada por um discurso simplista”, ela provoca, fazendo referência aos recentes memes popularizados por apoiadores de Donald Trump nos EUA sobre “buscar a verdade escolhendo a pílula vermelha” (algo sobre o que Lilly Wachowski respondeu à altura).

    Ainda que a filosofia existencialista permaneça como a espinha dorsal da narrativa de tudo o que envolve Matrix, o jornalista Alexandre Matias também aposta que Resurrections irá evocar questões políticas atuais em seu enredo:

    “Eu acredito que veremos ganchos sobre alt-right, neofascismo… alguma declaração que faça a gente dizer ‘é exatamente isso o que estamos vivendo hoje!’.”

    Politizado, filosófico, absurdo, incompreensível… seja associado ao adjetivo que for, Matrix é novamente parte de nossa realidade. “Depois de todos esses anos, voltar para onde tudo começou. Voltar à Matrix”, exclama o misterioso personagem de Jonathan Groff ao incrédulo Thomas Anderson na última cena do trailer.

    A provocação também é direcionada a nós, o público confuso e instigado, que não entende o que está presenciando e morre de vontade de saber mais. Assim como Neo, nós também estamos prontos para retornar à toca do coelho.

    Pablo Miyazawa é jornalista e foi editor-chefe das revistas Herói e Rolling Stone Brasil.

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