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    Artistas trans relatam como o mercado de trabalho de entretenimento é acolhedor

    Por meio de suas histórias de vida, Laerte Coutinho, Marcia Dailyn, Glamour Garcia, Pepita e Tarso Brant mostram como o setor cultural pode transformar a vida de pessoas trans e travestis

    Felipe Carvalhocolaboração para a CNN

    “Entrei no Theatro Municipal de São Paulo pela primeira vez ainda muito nova, aos 17 anos. Lá estava Lúcia Camargo, diretora do corpo de balé, alguém que brigou com todos para que eu não fosse expulsa por ser uma garota transgênero. No meu primeiro dia, ela me perguntou o que eu queria e respondi: ‘ser artista’. Um dia depois, voltei para ter aula e ela disse a todos: ‘Essa é Márcia, a nossa bailarina’”.

    As lágrimas de Márcia Dailyn não param de escorrer pelo rosto enquanto conta sua história de primeira bailarina trans que pisou em um dos palcos mais importantes do mundo. Natural de Jales, a 586 km de São Paulo, ela sempre contou com o apoio da mãe, dona Selma, que foi sua primeira coreógrafa, ainda na adolescência, quando não tinha passado pela transição de gênero.

    Com 25 anos de profissão, a artista recorda que se sentia muito abraçada pelo mundo do entretenimento e, apesar da transfobia morar nos menores detalhes, olhou com bons olhos as oportunidades que recebeu na capital paulista.

    A atriz Glamour Garcia também sentiu esse mesmo acolhimento dentro do universo das artes. Quando ainda era muito jovem, antes da transição, descobriu a vocação para o palco, e a proximidade com a atuação a fez entender o seu próprio processo pessoal, além de inseri-la no mercado de trabalho.

    Recentemente, em 2019, ela foi a primeira atriz trans a ter um enredo de “mocinha” na novela das 9, “A Dona do Pedaço” (TV Globo) como a jovem Britney, que era apaixonada por um cozinheiro.

    “Isso é muito significativo e tem uma importância histórica grande na minha própria vida. O público pôde se sensibilizar com questões humanas e entender os desafios de um ser humano como qualquer outro. E, acima de tudo, para mim, foi um grande crescimento”, lembra.

    Glamour Garcia, a primeira “mocinha” trans da novela das 9/ Divulgação

    A passos lentos, as pessoas trans estão sendo inseridas no mercado de trabalho formal brasileiro. De acordo com dados da Transempregos, plataforma que disponibiliza vagas exclusivamente para a população transgênero, somente em 2021, 797 pessoas foram contratadas por empresas de diversos setores, um crescimento de 11% em apenas um ano. Contudo, esse número não reflete a realidade de anos atrás.

    Priscila Nogueira, mais conhecida no mundo do entretenimento como Pepita, é travesti, cantora e escritora e começou a dar os primeiros passos na carreira artística como dançarina de funk. Em 2014, um amigo lhe ofereceu uma música para que ela cantasse no palco e o desafio foi aceito. E foi naquele momento, no Rio de Janeiro, que nascia uma das artistas mais promissoras do funk carioca: Mulher Pepita.

    Pepita: a gente não é só uma letra [dentro da sigla LGBTQIA+]/ Divulgação

    “Queria muito falar que foi sorte, mas não foi. Eram pessoas que acreditaram em mim como profissional, então eu abracei todas essas oportunidades, algo que não existe com pessoas trans e travestis. Fiz o meu melhor, pois a gente não é só uma letra [dentro da sigla LGBTQIA+], somos boas em tudo que fazemos.”

    Pepita acredita que o entretenimento é importante na vida de pessoas trans e travestis. Lembra com carinho de outras mulheres trans que também pisaram pelos palcos brasileiros – não sem sofrer preconceito por onde passavam. Rogéria, que morreu em 2017, encantava o público com seus musicais Brasil afora e brilhava na televisão com papéis de novela escritos especialmente para ela.

    Paralelamente, Phedra de Córdoba, uma atriz trans cubana radicada no Brasil, fazia seu nome brilhar nos teatros de São Paulo e se tornou a “grande diva da Praça Roosevelt”, com espetáculos encenados no Teatro Satyros, existente até hoje no mesmo lugar.

    A artista morreu em 2016 e era amiga pessoal de Márcia Dailyn, que a interpretou no espetáculo “Entrevista com Phedra”, encenado em 2019, personagem que lhe rendeu uma indicação de melhor atriz ao prêmio Aplauso Brasil. “Chegar ali é dizer que tudo valeu a pena”, declara Márcia, em meio às lágrimas saudosistas.

    Emprego na mão

    Márcia Rocha é advogada, integrante da Comissão Especial da Diversidade Sexual da OAB/SP, e conta que se sentia uma pessoa diferente desde pequena. Na adolescência, aos 13 anos, ela começou a tomar hormônios para fazer a adequação física para uma mulher trans, mas foi descoberta pelo pai que a levou ao médico. Orientada a parar, ela viveu uma vida dupla, se formou em Direito e, somente aos 39 anos, conseguiu assumir a transgeneridade.

    Hoje, a advogada luta para que as mulheres trans e travestis tenham mais oportunidades de emprego dentro de qualquer setor, não somente no entretenimento. Foi daí que surgiu a plataforma Transempregos, que já tem mais de 21,4 mil currículos cadastrados e quase 1,5 mil empresas parceiras, de áreas como tecnologia, serviços, varejo e comércio, farmacêutico.

    O cenário de trabalho para pessoas trans está realmente mudando, mas tudo ainda é muito difícil.

    Márcia Rocha, advogada e mulher trans

    “Eu tenho como meta mudar a maneira como a sociedade nos vê. Ajudo com a minha própria imagem, como advogada e conselheira da OAB, e também como empresária e acadêmica. A gente vem mostrando casos de pessoas que conseguiram, que podem trabalhar, ter família e uma vida digna. Assim vamos mudando a maneira como a sociedade nos vê”, diz Márcia Rocha.

    “Nós precisamos mostrar pessoas trans em outras posições no mercado de trabalho. Só aí os pais não colocarão mais os filhos para fora, as empresas contratarão mais e o mundo como um todo para de nos matar, de nos perseguir. É uma questão estrutural”, acredita.

    Márcia explica que, na Transempregos, as empresas já estão preparadas para receber essa pessoa, com foco no nome social, com atendimento e RH preparados e ela mesma é quem ajuda na conscientização de um ambiente mais saudável para que a pessoa trans possa trabalhar.

    “Temos vagas em todos os setores e as empresas que anunciam na Transempregos são conscientizadas e preparadas para receber uma pessoa trans, basta ela querer.”

    Outra integrante da equipe de criação da plataforma é a cartunista Laerte Coutinho, que também passou pelo processo de transição em 2010. Ela acredita que as pessoas trans buscam a sobrevivência onde podem, frente a um muro de recusa e exclusão, e que a falta de oportunidades leva algumas para as ruas, na prostituição.

    “No entretenimento a coisa não é muito melhor. Quando falamos em Rogéria, Phedra de Córdoba ou Linn da Quebrada, estamos nos referindo a pouquíssimas pessoas que conseguiram uma posição sólida e de respeito – e mesmo assim bastante instável”, assinala.

    Dos palcos para os livros

    Laerte é dona de 31 prêmios, tem 14 livros publicados, com personagens icônicos como os Piratas do Tietê e, mais recentemente, cartuns com personagens trans. Ela explica em entrevista à CNN Brasil que perceber a transgeneridade em sua vida foi tão importante quanto a homossexualidade.

    “Do ponto de vista da construção de histórias de humor, exigiu (e exige, ainda) um bom esforço, porque o discurso humorístico se apoia bastante nos modos tradicionais de entendimento sobre a vida – e também se expressa dentro de uma maneira que deve parecer leve e espontânea. O processo pelo qual venho passando, ao contrário, me leva ao terreno da reavaliação permanente e de cálculos delicados a partir daquilo que expresso.”

    A cartunista Laerte Courtinho: “Sofri uns ataques, claro, mas meu público se expandiu como nunca”/ Divulgação

    Laerte é uma das poucas pessoas trans que conquistaram o título de escritora no Brasil, como Amara Moira e João Nery, que morreu em 2018. Ela acredita que, depois da transição, conseguiu abrir novos caminhos e conquistas novos públicos antes não explorados.

    “Sofri uns ataques, claro, mas meu público se expandiu como nunca. Algumas pessoas se ressentiram quando eu abandonei o uso de personagens e da comicidade tradicional, porém minha vivência de gênero me trouxe uma atenção muitas vezes maior do que qualquer abandono.”

    No campo das letras e das artes também está o ator Tarso Brant, que é um dos autores do livro “Vidas Trans”, em que relata o momento no qual percebeu que havia algo diferente com seu corpo e sobre o sentimento de inadequação perante os padrões exigidos pela sociedade, além do momento da transição.

    “Tive uma oportunidade no setor de cultura e entretenimento, um dos primeiros que abriu as portas para pessoas como eu. Esse setor tem um olhar diferente para minha condição e as pessoas são mais humanas, acredito. De todo modo, a representatividade ainda não é satisfatória porque a gente precisa de mais”, acredita.

    Setor de entretenimento as pessoas são mais humanas, diz Tarso Brant/ Divulgação

    Ele ressalta que ainda falta mais abertura para que homens trans trabalhem no mercado da cultura e do entretenimento, com papéis que fujam do óbvio e que marcam uma pessoa trans apenas como um corpo trans. Tarso acredita que os atores tenham um corpo neutro, capaz de se adequar a todos os tipos de personagens, sejam eles cisgênero ou não.

    “O ator trans é qualificado como qualquer outro, mas falta abertura das empresas para que pessoas façam parte dos seus castings. Não sinto preconceito, mas ainda sinto uma imposição da sociedade para que exista esse estereótipo do ‘grande empresário’, do ‘cara pegador’ ou do ‘cara que está sofrendo por amor’. É preciso evoluir a forma de demonstrar como as pessoas se expressam na sociedade hoje em dia”, sugere.

    Pepita também é escritora e lançou, há dois anos, o “Cartas pra Pepita”, uma reunião de mensagens recebidas de fãs com dúvidas sobre diversos assuntos. A obra nasceu do sucesso dos vídeos de mesmo nome para o YouTube e IGTV, no Instagram, e foi lançada na Bienal do Livro, no Rio de Janeiro, no mesmo ano.

    “Fiquei muito surpresa quando cheguei à Bienal e via muita gente. Desde a tia, a avó, prima e filha que me assistiam na tela de um telefone. Foi maravilhosa essa experiência. Já estou doida para fazer um novo livro contando a história da minha vida desde quando tudo começou”, conta Pepita.

    Quando se fala sobre arte ou cultura, não existe uma segregação de pessoas transgênero ou cisgênero e todos se alimentam da mesma fonte. 

    Pepita

    “Pessoas cis consomem travestis, sim. Tenho um público muito grande que me consome, que me defende, que me acompanha, que conta as histórias. Eu recebo muita carta de pessoas LGBTQIA+, mas também recebo de pessoas cis, que querem me contar, que querem dizer o que está passando. Isso para mim é muito incrível”, completa ela, que já tem planos para levar a temática do livro também para os palcos.

    E para quem deseja seguir os mesmos passos seja na música, dança, teatro ou nos livros, Glamour Garcia tem um conselho que promete ser infalível: “Seja feliz, estude, tenha coragem porque estudar arte é um desafio, sempre foi”.

    “Acho que as pessoas mais jovens hoje em dia contam com referências que não existiam antes. Hoje a gente pode ter orgulho de ser jovem, se dedicar à arte e se tornar leve, fazer parte da vida das pessoas. Se você tem o desejo de ser atriz, ator, fotógrafo, cantor, dançarino, bailarino ou escritor, se dedique. Acho que toda linguagem artística é plural. Se quiser ser artista, independente da linguagem, se entregue a todas as outras linguagens porque com certeza vai transformar a sua alma”, indica.

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