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    Alice Walker na Flip: Energia ancestral queria que estivéssemos aqui juntas

    Em encontro histórico mediado por Djamila Ribeiro, escritora norte-americana dialoga com a brasileira Conceição Evaristo sobre as vozes negras na literatura

    Debora Sandercolaboração para a CNN

    Não podemos ir a lugar algum sem nossas ancestrais. Se tentarmos, ficamos instantaneamente perdidas

    Alice Walker, escritora norte-americana

    A fala da escritora norte-americana Alice Walker logo no início de sua participação na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) é uma boa síntese dos debates que marcaram a mesa Em Busca do Jardim, que ela dividiu com a escritora brasileira Conceição Evaristo na noite de sábado (4).

    O título da mesa é inspirado no livro “Em busca dos jardins de nossas mães: Prosa mulherista”, obra da escritora norte-americana recém publicada no Brasil. Mediado pela filósofa e escritora Djamila Ribeiro, o encontro histórico e inédito reuniu três mulheres negras em um diálogo carregado de identificação e proximidade.

    As autoras dos premiados “A Cor Púrpura” e “Ponciá Vicêncio” conversaram sobre sua relação com a ancestralidade e a linguagem, e sobre os avanços na publicação de autoras negras no mercado editorial dos Estados Unidos e do Brasil, e concordaram sobre a importância de a população negra criar espaços de disseminação da própria produção criativa.

    Ao responder à primeira pergunta feita por Djamila Ribeiro, a respeito da importância do feminino ancestral na literatura, Conceição Evaristo destacou: “A fala que prefacia nossos textos é a fala das nossas ancestrais. É como se elas nos dessem essa possibilidade de falar. Falar sem elas seria falar no vazio. A voz primordial, a voz matriz é delas. Vozes que na maioria das vezes se realizaram no silêncio. A gente pega o silêncio das nossas ancestrais e transforma esses silêncios em gritos”.

    Veja a íntegra do painel de Alice Walker e Conceição Evaristo na Flip:

    Pouco depois, a brasileira apontou semelhanças entre seu trabalho e o da colega de mesa, afirmando que ambas buscam nas vozes daquelas que vieram antes o fundamento de seus textos.

    “Perceber isso na literatura de Alice e perceber que nosso caminho como escritoras negras é muito semelhante ao dela, acho que isso comprova essa filiação dos povos diaspóricos. O texto de autoria negra das mulheres brasileiras às vezes tem mais diálogo com as mulheres afro-americanas, das Antilhas, cubanas e africanas, do que com o texto produzido por outras autoras brancas dentro do Brasil”, ressaltou.

    Em seguida, Alice Walker lamentou seu desconhecimento do português, que a impede de estudar com mais profundidade a produção literária de autoras negras brasileiras.

    Outro tema bastante comentado foi o espaço para publicações de autoras negras no mercado editorial. A escritora norte-americana relatou sua experiência ao lançar o romance vencedor do Prêmio Pulitzer “A Cor Púrpura”, em 1982, em que ela aborda questões de discriminação racial e sexual.

    “Depois que publiquei ‘A Cor Púrpura’ e fui atacada, eu entendi que em vez de brigar com as pessoas que não entendiam meu dom, eu ia começar a minha própria editora, e assim publiquei outras autoras negras”, declarou.

    “Vejo isso como parte do que as mulheres negras fazem como nosso modo particular de resistência. Independentemente do que as pessoas estejam falando sobre você, fazendo por você, do quanto elas estejam condenando a sua voz, do quanto elas gostariam que você calasse a boca, o seu trabalho como mulher negra é lembrar por que você está aqui neste planeta.”

    E, associando sua fala com o tema da 19ª Flip, Literatura e Plantas, completou: “O planeta não tem nenhum problema conosco, o planeta nos ama. É nossa responsabilidade florescer da maneira que o planeta floresce. Nosso florescimento são as nossas criações.”

    Falando do contexto do mercado editorial brasileiro, Conceição Evaristo afirmou o avanço na publicação de autoras negras desde a década de 80. “Nós não ganhamos isso de presente. Ganhamos pela insistência, pela cobrança, por chegar nos lugares sem ser convidadas, por marcar a nossa presença.”

    A escritora destacou o trabalho do Grupo Quilombhoje, voltado a debates da literatura afro-brasileira, fundado em 1980, além das editoras Nandyala e Malê, especializadas em literatura negra.

    A autora de “Ponciá Vicêncio”,  vencedor do Prêmio Jabuti, também discorreu sobre o preconceito linguístico que se coloca como obstáculo à disseminação da literatura negra, trazendo o exemplo da escritora Carolina Maria de Jesus, conhecida pela escrita marcada pela oralidade.

    “Se há um aspecto de negação da nossa humanidade enquanto negros foi justamente o estereótipo de que a gente não sabe falar. O que diferencia o animal do ser humano, segundo dizem, é justamente isso. Quando negam nossa capacidade de linguagem, negam nossa capacidade de pensamento, de produzir saber, nossa capacidade de relação humana”, refletiu.

    “Nossa literatura passa muito por isso, é essa afirmação de uma linguagem nossa que nos coloca nesse lugar de sujeitos humanos”, pontuou. “E criadores”, completou Alice Walker, reiterando o argumento de Conceição Evaristo.

    Em pleno diálogo, as escritoras encerraram a mesa celebrando o encontro com metáforas que remetem à temática debatida nesta edição da Flip.

    “Pensando em que parte do plantio nós estamos juntas, eu acho que é um pouco na colheita, né Alice? Acho que a gente está colhendo o que plantou na literatura. Eu estar aqui com você pra mim é uma colheita”, afirmou a escritora brasileira.

    Em concordância, Alice Walker definiu a mesa como a realização de um sonho.

    “Quando estávamos [os negros escravizados] nos campos trabalhando para os outros, estávamos sonhando, tentando imaginar como poderíamos chegar a isso. Sinto toda a energia ancestral que queria que estivéssemos exatamente nesse momento aqui juntas. É uma época incrível. Fico muito feliz e sou extremamente grata”, concluiu.

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