‘Sou um escritor que traduz’, diz tradutor de Eduardo Galeano e García Marquéz
O tradutor e escritor Eric Nepomuceno, de 72 anos, conta da sua relação com os clássicos autores latinos e se classifica como uma "mão invisível" dos livros


“Eu entendo que a escrita é como a música, tem tom, intensidade, acordes, andamento. Traduzir é como interpretar uma partitura”.
O lirismo ao contar a própria história, por telefone, enquanto acende um cigarro e questiona “você tem tempo pra essa nossa conversa?”, é de Eric Nepomuceno. Aos 72 anos, tradutor, escritor e jornalista, é um dos expoentes desse ofício que é como uma mão invisível mas que, sem a qual, clássicos da literatura mundial nunca teriam chegado às prateleiras do Brasil.
Traduzir um livro é como absorver a mente e as emoções de uma outra pessoa e encontrar o verbo correto para que elas toquem mais gente. Eric é o responsável por trazer para a língua portuguesa todos os livros do renomado escritor uruguaio Eduardo Galeno, morto em 2015.
Numa conversa exclusiva com a CNN, ele conta sobre as dores e delícias do trabalho com o poeta, com quem tinha, para além da relação profissional, uma amizade em várias línguas.
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“Eu não sou um tradutor profissional, sou um escritor que traduz. Traduzo o que eu quero, amigos, gente que eu gosto”, diz. E o “gosto” por Galeano tornou-se uma marca indelével por meio de uma última tradução. No livro “O Caçador de Histórias”, Eric Nepomuceno faz uma homenagem com linhas de desabafo sobre ter, pela primeira vez, traduzido um livro de Galeano sem sua benção final. O escritor uruguaio havia morrido antes do fim do processo.
“De todos os autores que traduzi, ele foi o único a revisar comigo cada linha, negociando palavra por palavra […] Foi imensa a dor de saber que não negociaríamos nenhuma palavra, nenhuma frase: naveguei no breu”, diz no prefácio que, em nossa conversa, afirma não ter lido mais desde a publicação. “Eu negociei com a memória do Eduardo, um processo extremamente doloroso”.
A negociação com o autor, ele admite, enriquecia e transformava as obras. “Se você ler os livros do Galeano em português do Brasil, eles eram cada vez mais diferentes porque ele mesmo sugeria muitas mudanças, ele ia aprimorando em português o que não dava para fazer mais em espanhol”.
Eric também traduziu obras do vencedor do prêmio Nobel, Gabriel Garcia Marquéz. Ganhou até um Jabuti pela tradução de “Cem anos de Solidão”, o maior clássico do mestre latino-americano. “Uma vez consultei o Garcia Marquéz sobre uma palavra que eu tinha dúvida. Ele me respondeu com um fax escrito várias vezes ‘consulte o dicionário, consulte o dicionário’ eu respondi ‘Gabo, vai à merda’, pronto”.
Ao alternar as traduções dos amigos com seus livros próprios (em 2008 publicou “O Massacre”, sobre o ocorrido em Eldorado dos Carajás), Eric leva a sério a tradição de fazer apenas o que quer. Exceto por uma vez, em que teve de ceder.
“Uma amiga do meu filho, dona de uma editora muito simpática aqui do Rio de Janeiro me encontrou na rua e disse que queria que eu traduzisse algo para ela. Eu de cara já falei que não tinha tempo, que estava cheio de coisas, menti, claro. Mas aí ela disse que era uma novela pornô do Pedro Almodovar. Na hora disse que estava livre e que podia fazer sim”.
Eric ri ao contar da passagem. Tempos depois, encarou o cineasta numa festa na casa de Caetano Veloso. “Descobri que o Caetano tinha me indicado para aquele trabalho e me chamou para festa querendo que eu conhecesse o Almodovar”.
O encontro – e os prêmios, elogios e histórias – não envaidecem o escritor. No final de nossa conversa, ele diz com a serenidade dos experientes qual é a sua vaidade. “O verdadeiro prêmio para mim é quando alguém lê o livro e diz ‘nossa, nem parece uma tradução’, esse é meu prêmio.”